Na hora de filmar a cena, eu me concentro em registrar a realidade como se fosse um milagre. – Naomi Kawase
A proliferação de tecnologias e maior acesso às mesmas nas últimas décadas causaram um aumento da exposição, singularização e, em muitas situações, espetacularização da intimidade. Há uma quebra de fronteiras entre público e o privado e as narrativas contemporâneas adotam cada vez mais a forma de testemunho, autobiografia e metaficção, gerando leituras impactantes.
Resultado dessa geração tecnológica, vivemos cercados de informações e inovações, apresentando sintomas de uma inquietação interior comum. Por ser comum, aplica-se ao coletivo humano uma necessidade de preenchimento desse vazio “instalado pela era do excesso, do transbordamento, do acúmulo, do pessimismo”, como colocado por Isabelle Hattanda em Uma proposta de cinema contemporâneo transcendental.
Os filmes da cineasta japonesa Naomi Kawase têm forte presença de ausência e de perda; são experiências de vida que envolvem o aprendizado do corpo ao lidar com a dor, mas de forma leve, sem ressentimento. Essas características são ainda mais fortes em seus documentários, uma vez que se trata dela mesma lidando com suas próprias dores: o abandono dos pais, sua busca por eles, a morte iminente de sua tia-avó que a criou como filha. A ausência se faz presente em matéria fílmica.
Feitos através de uma pequena Super 8, seus primeiros filmes são registros de momentos de sua vida cotidiana na pequena cidade de Nara. Sua câmera é curiosa, inquieta, busca ver por dentro da própria imagem. A montagem é descontínua, deixando forte presença da autora.
Minhas obras, meus filmes, talvez fujam um pouco das formas mais padronizadas de cinema, mas acredito que existem outros realizadores que estão continuando também a fazer essa arte mais “humana”. Acredito, talvez, que posso de alguma forma estar dialogando com esse tipo de pessoa. De qualquer forma, não penso muito sobre movimentos cinematográficos. Na realidade, acho que se olhar para os meus passos, estarei tendo, isso sim, uma conexão com a natureza e o mundo antes de tudo. (Naomi Kawase, em entrevista para e Revista Cinética)
Além da poesia presente no fato de serem apresentadas sensações além do que foi filmado, há também a intenção de tatear, como em Caracol (Katatsumori, 1994), filme que contempla com afeto o cotidiano de sua tia-avó, Uno Kawase, na pequena cidade de Nara, e que seria o primeiro filme da chamada “trilogia da avó”. Na cena em que tateia o rosto de Uno depois de observá-la de longe pela janela, o ato de fazer do tato um gesto primordial traz o conceito da “câmera-pele”. É exteriorizada a necessidade de tocar alguém que se ama, e é através do tato que é sustentada a materialidade do que se perderia com a morte de sua tia-avó.
No segundo filme da trilogia, Viu o Céu? (Ten, Mitake, 1995), Kawase alterna o som com a imagem, trazendo uma experiência sensorial diferente da protagonizada em seus filmes anteriores, no qual o off e a fala de Uno conduzem a narrativa. O som de uma secretária eletrônica acompanha as imagens de sua tia-avó queimando papéis, em preto e branco e em câmera lenta. Ao acabar essa cena, Uno aparece cuidando de seu pomar, já em cores. Na sequência, Kawase divide as cenas em frames, constituindo um quadro a quadro com fotografias estáticas da tia-avó no jardim. No final do filme, que não dura mais do que 10 minutos, Uno é enquadrada apontando para o céu anoitecido, quando Naomi aparece e pula por cima da tia-avó. Ambas aparecem à vontade em frente à câmera e em contato com a natureza.
O terceiro e último filme da trilogia, Sol Poente (Hi wa katabui, 1996) é um média-metragem mais leve e despretensioso, no formato de “filme-diário”. Os offs são desabafos, comentários e inquietações. Os elementos da natureza seguem sendo o que move os filmes de Kawase: a câmera mostra o pomar da tia-avó e a chuva. Uno, já mais familiarizada com as filmagens, ri, brinca com a câmera. No entanto, há uma quebra na descontração quando a tia-avó a confronta, perguntando por que a relação com o avô é tão melhor que a que tem com ela. Mesmo nesse momento de tensão, a câmera segue ligada, acompanhando todo o processo de desentendimento entre as duas. No entanto, este filme é o primeiro filme em que o tio-avô é mencionado, como se até então inexistisse.
Essas características do poético e do contemplativo, presentes nos três filmes, já não eram novidade na época em que foram feitos, e muito menos hoje em dia, quando há cada vez mais diretores mostrando os mais diversos olhares sobre o mundo. O diferencial dos filmes de Kawase está na fidelidade com a ideia de registro e da sensação de parecer que ela se prende no cordão umbilical que não pôde desfrutar na inexistência da relação com a mãe. O carinho está presente na câmera que cola em sua tia-avó como que num esforço para tocá-la. Não somente a câmera se aproxima, ela caminha, vai até os personagens sem se preocupar que sua presença seja notada ou não. Nesse processo, portanto, a câmera treme, o foco está constantemente em ajuste, a câmera vai de encontro com objetos.
Eu não comecei a produzir filmes em homenagem a algum diretor ou algum filme. Os homens são únicos desde o nascimento. Por conta disso, às vezes sentem solidão no coração. Porém, na realidade, todos nós temos a experiência de ligação com alguém (ao menos a própria mãe). No final, as vidas são ligadas, conectadas. No início da minha carreira, eu produzia filmes para matar essa solidão… era isso. Agora, estou produzindo os filmes para retratar a beleza da ligação e conexão das vidas. (Idem)
O som nesses filmes aparece quase sempre em off, acompanhado por imagens do cotidiano de Uno em seu jardim, da natureza como ponto de equilíbrio e lugar de encontro. Sol Poente fecha a trilogia fecha desse ciclo da vida de Naomi, expondo que além de registrar imagens como memórias de boas lembranças, o cinema também é lugar de dor. A combinação de som e imagens não resulta em uma imagem dialética nem mesmo obrigatoriamente gera uma interpretação, mas sim retrata as buscas de uma mulher jovem que deseja conhecer sua própria origem, tentando completar a si mesma.
Os filmes de Kawase apresentam imagens que não têm a pretensão de ser simbólicas. O sentido aparece delas e permanece em suspensão, convocando à exploração da memória da cineasta. As sutilezas mais amplas ainda não percebidas são levadas em conta mais do que o próprio sentido. O ato de filmar é quase penetrar no que vê, seja algo como seus primeiros registros documentais, seja a pele de sua tia-avó. Em sua relação com a imagem, o afeto vem da imagem crua através do toque, do contato íntimo entre aparato e objeto.
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