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Amanda Volpe

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NOVE SEMANAS E MEIA DE ABUSO: A EROTIZAÇÃO DO ESTUPRO

Adrian Lyne conseguiu transformar um molestador infantil em um herói romântico com maestria em Lolita (1997). Mas essa não foi a primeira vez que o diretor estripou um relacionamento abusivo para encaixá-lo em um delírio erótico. Quase uma década antes, um livro baseado em fatos reais havia caído na mãos do diretor. Era Nove semanas e meia de amor, escrito pela autora Ingeborg Day, sob o pseudônimo de Elizabeth McNeill. A história deu origem ao filme que virou um clássico do cinema erótico e é hoje exaltado como a versão “original/realista/mais sexy” de Cinquenta tons de cinza.

O relato de Day começa singelo: um amante sem nome pede para vendá-la durante o sexo. O que era supostamente uma experimentação sexual vai escalando. Toda noite, assim que entra no apartamento, ela é despida e tem os pulsos amarrados. É ele quem cozinha, dá banho, veste seu corpo, penteia seus cabelos. Ele ameaça expulsá-la de casa se ela se recusar a cumprir suas exigências sexuais. Ele a estupra.

Day está apaixonada. Day teme que ele a mate. Das duas premissas, a conclusão: “Se você me matar, você terá que encontrar outra, e é fácil encontrar mulheres como eu?” O relacionamento acaba quando ela tem um colapso nervoso e o amante a interna em uma clínica psiquiátrica. Os dois nunca mais se encontraram.

O livro Nove semanas e meia nos escancara a ambivalência emocional de uma mulher sobrevivente de um relacionamento abusivo. Revela como o enlace entre prazer e dor, admiração e medo, carinho e violência possibilitou que ela encontrasse na submissão, no anulamento de si mesma, uma identidade.

O relato de Day nos permite compreender como o discurso tradicionalmente feito sobre relacionamentos abusivos promove uma imagem de vítima perfeita e abusador desumano que jamais poderá se equiparar à realidade complexa que essas mulheres vivem, e que portanto as desarma de meios de compreender a própria experiência.

Não foi isso, porém, que o roteirista Zalman King interpretou da obra. King, que se julga um conhecedor exímio da sexualidade feminina, desenvolveu a teoria esdrúxula de que todas as mulheres passam por um período “perigoso” no qual ficam “viciadas em orgasmos”. Foi essa a história que o roteirista enxergou: uma mulher que é levada a um colapso nervoso por seu vício em gozar.

Em toda sua condescendência masculina, o objetivo de King era mostrar a “jornada do despertar da sexualidade feminina”. Mas não foi bem assim que o filme entrou para a história. Por quê?

A câmera de Adrian Lyne está constantemente deslizando sobre o corpo de Kim Basinger, que interpreta Elizabeth. Mickey Rourke, seu par romântico, permanece vestido na maioria das cenas e tem menos tempo de tela. Se os seios, as pernas, os braços de Basinger são expostos como um convite, quando se trata de Rourke, a câmera se limita a focar no seu rosto.

Um exemplo desse olhar é a cena de masturbação feminina, na qual Basinger se contorce harmoniosamente e faz caras e bocas risíveis para qualquer mulher que tenha o hábito de masturbar. O sucesso do filme com o público feminino heterossexual apenas comprova o quanto estamos acostumadas a ser voyeurs de nós mesmas.

  

Poderá Elizabeth passar por um “despertar sexual” se seus trejeitos são calculados para agradar o espectador? Como poderá ela descobrir a si mesma se está constantemente performando para o olhar alheio? Elizabeth, com o jeito infantil de balançar as pernas, a risada nervosa e o rosto corado que busca esconder, emana insegurança.

“Ela foi minha primeira escolha. Ela tinha a vulnerabilidade”, diz Lyne, ao explicar o casting de Basinger para o papel principal. Porém, aparentemente a vulnerabilidade inata da atriz não era suficiente. O método adotado pelo diretor foi o seguinte: a equipe de Nove semanas e meia de amor deveria tratar Rourke com gentileza e respeito. Basinger era negligenciada ou assediada. Os protagonistas não podiam se comunicar fora do set. Segundo Lyne, esse tratamento ajudava a criar a tensão sexual entre os atores e compensava a falta de capacidade técnica e intelectual da atriz.

“Kim é como uma criança. Ela é inocente. Isso é parte do seu apelo. É uma atriz instintiva. Ela não é uma intelectual. Ela não lê livros. Ela não atua de verdade, ela reage”, argumentou Lyne. “Não concordo com essa descrição de mim mesma de forma alguma. Para dizer a verdade, eu deliberadamente não me permiti enxergar todos os jogos que estavam sendo feitos para que o filme fosse produzido”, rebateu a atriz.

Em uma cena que não consta no livro original, John, como foi batizado o amante, convence Elizabeth a cometer suicídio tomando pílulas, que na verdade contêm apenas açúcar – que romântico! que erótico! A atuação de Basinger não estava “vulnerável” o suficiente, então Lyne chamou Rourke: “Precisamos fazer algo para quebrá-la”.

Rourke agarrou o braço de Basinger com força, fazendo-a chorar e revidar com um tapa. O ator lhe deu um tapa na cara, e então Lyne autorizou que começassem a gravar. A cena do falso suicídio foi retirada na versão final do filme porque, segundo o diretor, “fazia o público odiar John demais”.

Uma mulher assediada, humilhada, negligenciada e estapeada: essa é a face da sensualidade. Para alcançá-la, tudo se torna válido. É uma lógica não muito diversa da indústria pornográfica. O abuso escondido na narrativa de Nove semanas e meia de amor também é o abuso escondido na produção do filme: a vida imita arte.

Nove semanas e meia de amor obscurece o abuso de Elizabeth não só ao extirpar cenas cruciais do livro, como o colapso nervoso da personagem, mas também ao romantizar os momentos abusivos. É um clássico do soft-core: o estupro erotizado, romanceado, palatável, distorcido como consensual. Embora a frase “todo sexo é estupro” jamais tenha sido proferida por uma feminista, como alguns gostariam de pensar, o oposto pode ser dito sobre a sexualidade masculina: para os homens, todo estupro é sexo.

Quando Elizabeth se recusa a apanhar de John, ele a toma à força. Após tentar resistir, ela se entrega: ela gosta. Ela gosta de ser estuprada é o recado da pornografia e do filme erótico, que não são primos tão distantes assim. É a máxima que permite aos homens se isentar da responsabilidade das suas ações, que os impede de enxergar a brutalidade e a crueldade daquilo que querem.

O momento em que Nove semanas e meia de amor é mais inconscientemente perspicaz é quando Elizabeth abandona John em um quarto de hotel. Ela vaga sozinha por uma zona de prostituição e cinemas pornográficos e entra em um teatro onde acontecem apresentações de sexo ao vivo, que não lhe provocam tesão mas sim nojo e medo. Ela chora ao perceber que foi até aqui que essa jornada de “descoberta sexual” a levou.

Enxergamos o pornográfico como um universo de fantasia à parte, isolado das nossas experiências sexuais, mas o sexo que conhecemos é construído a partir pelos mesmos valores que norteiam a pornografia – cujos produtores e público-alvo são do sexo masculino. O pornô é apenas uma ponta extrema do sexo como uma relação entre dominante e submisso, ativo e passivo.

Elizabeth sofre porque explorar sua sexualidade sempre será feito em termos masculinos. Não conhecemos o que seria uma sexualidade feminina porque o universo de fantasia e de desejo a que temos acesso foi engendrado por homens para servir aos seus interesses, e nesse mundo o único papel que resta à mulher é de objeto. Elizabeth não pode ser protagonista do próprio desejo, ela pode apenas reproduzir o que já lhe foi entregue. É desse despertar que surge sua rebelião e que a faz abandonar John, ao final do filme.

Mulheres são masoquistas? Ou a dor foi o lado da barganha que fomos ensinadas a tolerar caso desejemos sentir prazer? Essa foi a pergunta desconfortável que Lyne ignorou, e cujo seu filme implorava a resposta.


por Amanda V.
Amanda escreve no Deixadebanca e também organiza o Xotanás, sobre masturbação feminina.

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