Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Leticia Marotta

Letícia Marotta é realizadora e pesquisadora, e colaboradora do Verberenas desde setembro de 2021.

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REVIRAR A HISTÓRIA, REMONTAR OS RESTOS: CONVERSA COM ANITA LEANDRO SOBRE RETRATOS DE IDENTIFICAÇÃO

A entrevista a seguir foi realizada no dia 21 de setembro de 2019, com Anita Leandro, pesquisadora, professora da ECO/UFRJ e diretora do filme Retratos de Identificação (2014) em Belo Horizonte, Minas Gerais, a partir da proposta de minha dissertação de mestrado no PPGCOM/UFMG —  “Formas cinematográficas de rememoração da ditadura militar pelas mulheres: uma análise do filme Retratos de Identificação” —, que investiga em que medida o cinema feito por e com mulheres, ao rememorar a ditadura civil-militar brasileira, é capaz de — através da pesquisa dos arquivos, da montagem dos vestígios, e dos testemunhos — contar a história a contrapelo e reconstruir a memória daquelas que resistiram às formas de opressão do período. Retratos de Identificação é um filme feito entre 2010 e 2014, a partir de uma pesquisa da diretora nos acervos do DOPS da Guanabara/RJ — onde encontrou 90% do material utilizado no filme — e no Superior Tribunal Militar. Durante esse tempo, Anita Leandro1 selecionou e buscou documentos que pudessem ser utilizados para recuperar histórias sobre militantes que integraram organizações armadas no período da ditadura militar brasileira, sendo eles: Antônio Roberto Espinosa, comandante nacional da VAR-PALMARES, Chael Schreier e Maria Auxiliadora Lara Barcellos (Dora), militantes da mesma organização, e Reinaldo Guarany, da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Retratos de Identificação restitui uma história que liga os quatro personagens através dos seus testemunhos e dos arquivos documentais e fílmicos presentes nos filmes Brasil: Um relato de tortura (1971), de Saul Landau e Haskel Wexler, e Não é hora de chorar (1971), de Luiz Alberto Sanz e Pedro Chaskel. Quarenta e dois anos separam as falas de Dora, registradas no exílio, e o depoimento de seus ex-companheiros. Passado e presente compartilham um mesmo espaço, criado pela montagem. 

No documentário, a narrativa retoma cronologicamente a vida de Dora e são seus dois ex-companheiros e sobreviventes que dão os testemunhos no presente, Reinaldo e Espinosa. Retratos inicia com o dia da prisão de Dora, em 21 de novembro de 19692, juntamente com Chael e Espinosa, no aparelho em que viviam na clandestinidade, no Rio de Janeiro. A narrativa também retoma, posteriormente, o dia de sua saída do país com os 70 presos políticos enviados ao Chile (para onde Reinaldo também foi enviado) como exigência para a libertação do embaixador suíço, Giovani Bucher — sequestrado pelo grupo liderado por Carlos Lamarca. O fim do filme se dá no relato do dia do suicídio de Dora por Reinaldo, em 1976, em Berlim. 

Retratos de Identificação também desmente a versão do capitão Celso Lauria sobre a morte de Chael Schreier, através do confronto de documentos oficiais: um laudo de necrópsia e um negativo de Chael no DOPS/GB, de frente e de perfil — encontrado no Acervo DOPS/GB APERJ por Anita Leandro durante a pesquisa do filme —,  e um documento forjado pelo capitão, que afirmava falsamente que a causa da morte do estudante teria sido um infarto, decorrente dos ferimentos sofridos durante a emboscada policial em 1969. O cruzamento das informações trouxe à tona a história de um assassinato durante interrogatório, entregue pela diretora à Comissão Nacional da Verdade. O filme encontra-se disponível e com acesso gratuito na plataforma Vimeo

Minha dissertação, portanto, foca na análise das estratégias formais e narrativas do filme Retratos de Identificação (2014), de Anita Leandro, com interesse particular às especificidades da presença feminina na história da ditadura civil-militar brasileira e como essa escrita cinematográfica aciona, estética e politicamente, a memória, o corpo e o olhar feminino. Assim, propus um encontro com Anita Leandro para refletirmos entre tantas questões, sobre o dispositivo do filme, o encontro com os personagens e o uso dos arquivos. 

Anita Leandro: cineasta, pesquisadora e professora da ECO/UFRJ.

Letícia Marotta: Anita, nessa entrevista, queria trazer questões, dúvidas que surgiram no meu processo de pesquisa do filme. Até porque você escreveu sobre o Retratos de Identificação e já tem muita coisa nos seus textos…  

Anita Leandro: Escrevi até mesmo para entender o que eu tinha feito.3 Se eu tinha realmente feito um filme ou se eu estava colocando em prática alguns pensamentos teóricos, abstratos. A situação de posição do pesquisador que faz filmes é um negócio meio ambíguo, você fica ali no meio do caminho, entre duas coisas. É muito pensado e se você não é surpreendido pelo mundo filmado, não tem filme. Você tem que se colocar suficientemente em risco para ser pego de surpresa e para que haja filme. Se não, o que tem é um artigo. Então, foi até pra entender até onde ia o que eu tinha feito, até onde aquilo ali era um filme. 

LM: E você se encontrou na escrita?       

AL: É, para traduzir um pouco o método, né? Porque eu filmei assim, no feeling. Eu farejei que a imagem era uma mediação possível para uma fala impossível. A imagem, o vestígio do passado, o documento, poderia funcionar muito bem no set de filmagem como uma terceira pessoa — além de quem filma e da pessoa filmada — como uma espécie de válvula de escape, janela, porta, saída para a pessoa. Até para que ela pudesse não falar nada também. Se ela quisesse ficar só em silêncio, só olhando a imagem, já seria um filme pra mim, não precisava de nada mais. Não era uma pesquisa histórica, era um encontro que ia ser filmado ali. Não era uma enquete de historiadora, de socióloga, nada disso. Era um encontro, eu sabia que eles nunca tinham visto essas imagens, e imaginava o efeito que isso produziria neles.  

LM: O que você imaginou?       

AL: Eu imaginava que o Reinaldo conseguiria falar alguma coisa, apesar da impossibilidade de dizer. Imaginava que a mediação da imagem ia conseguir chegar a alguma coisa próxima da literatura que ele já tinha produzido. Eu tinha lido o livro que ele escreveu logo após a morte da Dora, que é “A fuga”, e fiquei muito impressionada com esse livro, embora ele fale que em termos literários não é uma obra tão importante quanto “Fornos quentes”, livro que ele fez depois. Eu gosto mais da “A Fuga” do que do “Fornos quentes” porque ele escreve ali no meio da escuridão, no dia seguinte ao suicídio da Dora, e faz para se salvar, e acho que ele se salva. A literatura mediou a elaboração de um luto. Então, eu achava que a imagem podia ter essa função de mediadora. 

No caso do Espinosa, eu achava que essa mediação poderia revelar outra coisa porque, embora eu não o conhecesse quando fui filmá-lo, tinha lido também o que ele escreveu. Outro tipo de escrita, professor, de ciências políticas, enciclopedista, é o comandante, né?  Ele tinha uma fala muito preparada, mas do encontro dele das imagens nasceu uma fala que não era a que ele queria, mas a que ele precisava para si. Ele conseguiu chorar, por exemplo. Ele chorou tão discretamente que eu não o vi chorando na hora da filmagem. Depois, conversando com ele por telefone, Espinosa me contou que chorou, e aí eu voltei na imagem e ele está realmente chorando quando começa a falar que estava dentro do camburão e a Dora e o Chael estavam lá atirando na polícia… Então, na mediação da imagem, eu tinha esse faro de que ela poderia permitir um retorno ao passado, desestabilizando aquele discurso pronto que precisava ser desestabilizado. E, ao mesmo tempo, permitir tanto ao Reinaldo quanto ao Espinosa fazer alguma coisa daquelas lembranças, elaborar um discurso daquelas lembranças. Um discurso outro.  

LM: Eu tenho muita curiosidade sobre a cena em que o Espinosa se vê naquela imagem, ensanguentado. É um momento que ele tem um encontro com ele mesmo diante da câmera, em uma fotografia que ele nunca tinha visto. Ele para alguns segundos e olha…  

AL: Foi nesse momento que ele chorou e eu nem percebi. Era tão bem preparado que não percebi, depois eu voltei à imagem e vi. Esse momento foi particularmente forte. Hoje mesmo, eu estava aqui escrevendo sobre essa imagem. Fiquei pensando sobre essa imagem do Espinosa especificamente porque nas outras imagens de prisioneiro político o máximo que pode acontecer como desvio da função da imagem é o torso nu. Não é o caso do Espinosa que tem uma infração muito grave aqui, que é esse sangue todo. Então a imagem que era feita para identificar o prisioneiro, ela identifica não só o prisioneiro, mas toda a violência do extracampo. Estou tentando entender isso, o extracampo, e como ele entra por infração. Acho que essa imagem é violenta porque nós temos acesso a um extracampo que não está dado, e que nos identifica enquanto espectador possível. Essa imagem da Dora, do Reinaldo, do Chael — do Chael não, porque ele está com o torso nu, e  os outros vestidos —, só tem o número de cadastro que os identifica como prisioneiros. Como o Reinaldo fala: “Isso não é foto de família, de frente e de perfil é foto de preso”, ou seja, foto de preso é foto sem contraplano, sem extracampo. Essas imagens não foram feitas para chegar até nós, elas foram feitas para circular entre os próprios policiais, entre agências de repressão, para identificação. E, de repente, vaza uma coisa do extracampo que é esse sangue todo…  

LM: Ele até fala da calça ensanguentada…nós temos acesso a esse extracampo… 

AL: Essa calça tem uma história longa, ela foi parar no museu! Tinha um jornalista que era ligado aos direitos humanos estrangeiros que pediu a calça, levou a calça consigo. Ele falou que foi parar em um museu, não sei onde! 

LM: Tem a foto da Dora também, né? Com o curativo na testa. Talvez a única imagem que tenha essa marca visível da violência no corpo dela… 

AL: É. 

LM: Você encontrou outros arquivos, Anita? Tiveram outros arquivos que ficaram fora do filme?    

AL: Pouca coisa. Em relação a essas quatro pessoas [Dora, Reinaldo, Chael e Espinosa] foi o que  pude encontrar. Eu sabia que tinha mais coisa, mas não tive tempo, nem disponibilidade, nem dinheiro para ir atrás. O meu projeto incluía — além dos arquivos do DOPS da Guanabara, onde eu encontrei 90% desse material — uma pesquisa no Superior Tribunal Militar. Eu sabia que era aquela hora ou nunca. Tive acesso porque existia a Comissão de Anistia que hoje está fechada. Já conversei com pessoas que tentaram entrar lá e foram barradas, ainda no governo Temer. Eu sabia que eu tinha que ir naquele momento. Tinha até reservado as passagens para Brasília, mas não pude ir por conta do trabalho. Então eu não pude ir a Brasília, mas o pessoal da Comissão da Anistia foi lá pra mim enquanto eu fazia a pesquisa. Só que eles pesquisaram só um volume, são onze volumes! Nesse único, mandaram pra mim 500 páginas. Eu tenho um calhamaço lá em casa. O filme já estava pronto quando chegou esse material que ficou rodando nas agências de Correios até chegar no Rio. Chegaram as imagens que abrem o filme, a Dora sendo seguida. Eu pensei:  como vou usar isso agora? Eu não tenho como pagar a equipe! Então eu fiz, eu que reproduzi e coloquei na montagem! Aquilo não foi nem finalizado, não tinha nem mais tempo! Eu pedi ao Guilherme Hoffman e a Marta (irmã) e foi com eles dois que eu fiz aquela sequência de abertura.  

A foto da Dora machucada também veio nessa leva, eu tinha uma foto da Dora machucada, mas estava tão apagada que não dava pra ver o curativo. Era a mesma foto que tinha um xerox no DOPS da Guanabara que veio mais nítida do Superior Tribunal Militar. E foi só, o restante eu já tinha. Mas isso era apenas uma pasta! Tinham onze pastas da VAR-PALMARES. Eu tenho certeza absoluta que nessas onze pastas — como a certeza que eu estou viva —  tem as fotos do julgamento da VAR-PALMARES. Uma das fotos que escapou foi aquela da Dilma, que a direita lançou na época em que ela foi eleita: “olha aqui ela foi prisioneira política”… que a Dilma: “ah é, vocês querem ver essas imagens então tá tudo liberado agora” e veio aquela lei que liberou pra todo mundo. A Dora e o Espinosa, e o Chael já morto, foram julgados nesse mesmo processo da Dilma. A Dilma e o Espinosa estavam em dois processos. A Dora e o Chael estavam em um desses processos. Então, se eu tivesse esse material eu teria outra sequência, e a Dilma teria se tornado personagem do filme. Era esse o projeto! Eu queria botar a mão nessas imagens para ir lá encontrar com a Dilma, entendeu?! Embora ela não tenha sido presa junto com eles, ela participou do mesmo processo e eu já achava isso importante na época porque eu já via o desastre. Eu estava tão enfiada nisso aí, eu já estava vendo o fim do túnel. Não sei porque sabia que o negócio não ia segurar, eu sentia isso. Bem sensitiva, teoria da conspiração, mas era isso mesmo.  

Então o que tinha além do que coloquei no filme: algumas imagens do aeroporto. Do aeroporto tem muita coisa que eu não utilizei porque elas eram um pouco repetitivas. Tem três fotógrafos. Tem fotógrafos da polícia que aparecem no campo. Eu ia entrar nisso e acabou que nem entrei, nem usei essa imagem. Tinha duas imagens que aparecia o fotógrafo e tem uma imagem do Reinaldo no momento da saída da prisão com mais duas outras pessoas,  ele fala que  fotografavam os presos em dupla, em trinca. Tem uma foto de um trio que eu não utilizei porque o filme ia crescer muito. Teria que explicar quem era esse trio. As fotografias em dupla e trinca das quais o Reinaldo se refere foram feitas lá no CENIMAR, na Ilha das Flores. Na prisão da marinha, onde ele ficou preso.  

Ele ficou na Marinha porque era lá que cuidavam dos processos da ALN [Aliança Libertadora Nacional, organização de luta armada de esquerda que enfrentou a ditadura militar brasileira instaurada em 1964]. O Espinosa foi para Tiradentes, Dora foi para a Vila Militar. Eles foram pra Vila Militar porque era lá que cuidavam dos processos da VAR-PALMARES. As agências separavam, elas trocavam informações, eram especializadas em determinadas organizações para poder obter mais coisas nas torturas.  

Sobre o Chael, eu só tinha essas duas imagens. No momento da prisão de 69 e no momento da prisão de 68 que é aquela que aparece no cartaz do filme, que foi tirada pela polícia quando ele foi preso em São Paulo.  Ele ficou um dia preso só, o pai dele foi lá e o tirou, ele ainda não tinha entrado na clandestinidade, ainda era estudante de medicina. Sobre o Chael, eu sabia que existiam as imagens da autópsia, do cadáver. O IML faz sistematicamente fotografias do corpo, antes de entregar para a família. Eu sabia que existia e aí quando encontrei o número da pasta onde estariam as fotos do Chael, o IML não queria me entregar. Eu ameacei com processo porque a lei de direito à imagem garantia, e aí eles me falaram que estava em aspecto gosmento. Eles abandonaram todos os arquivos no chão, em uma casa velha lá da Lapa, e mudaram de sede. E aí a chuva caiu, o telhado desabou e desde 1969 estava tudo submerso na água. Devia estar gosmento mesmo… então tinha coisa, mas eu cheguei tarde.  

LM: Sobre a Lei de Acesso à Informação, você acha que ela beneficiou o filme de alguma maneira?  

AL: Quando eu comecei a pesquisar não tinha essa lei ainda. A lei não existia e só soube dela tardiamente. Porque antes da Lei de Acesso você tinha que ter autorização dos espólios, quando as pessoas já tinham morrido, ou das pessoas sobreviventes. Eu já tinha essas autorizações, algumas delas. 

LM: Então nenhum desses arquivos você conseguiu por causa da Lei? 

AL: Não. Teve coisa depois que eu precisei das autorizações, eu não me lembro mais em que época eu peguei as autorizações. Eu sei que fiquei muito tempo com o telefone da família do Chael, e eu não tinha coragem de falar com a mãe dele. Quando finalmente liguei, a mãe dele já tinha morrido. E a Dora: quando a mãe dela me deu autorização ela estava hospitalizada e não saiu mais do hospital, a Dona Clélia. Mas a Lei de Acesso foi muito importante para as pessoas se informarem. Foi uma coisa muito inteligente feita pela Dilma. Porque quando ela foi eleita, a direita ficava insinuando, falando como se estivesse descobrindo a roda que a Dilma foi presa, que ela foi isso e aquilo, contando muita mentira. Então, a partir dessa lei, você tem acesso às informações. Foi muito importante para a historiografia. Depois, para a divulgação da imagem é outra coisa, realmente precisa da autorização da pessoa. Mas, para o filme, eu tenho que recuperar quando eu tive a autorização dos familiares, que eu não me lembro se foi antes ou depois. A lei é de 2012, né? É… eu não me lembro. Eu demorei muito para achar as primeiras imagens. Por que a questão não é só a lei de acesso, é a dificuldade do acesso aos arquivos. Eu passei dois, três anos, e eu não sabia se ia ter filme porque eu não achava as imagens. Eu demorei muito para achar essa série de fotografias da prisão da Dora. Demorei muito! Um dia, a Clarissa, que trabalha no acervo, chegou pra mim com um envelopinho meio escondido e me mostrou. Eu não tinha ainda a autorização. Então quando eu fui atrás da família não tinha lei.       

LM: Me conta o seu caminho até o encontro com a Dora?  

AL: Ah, foi assim. A Tereza Bastos, minha colega, tinha trabalhado nos arquivos do DOPS da Guanabara/RJ, na parte de iconografia, fez pesquisa em fotografia e ela me falou: “Ah, você precisa conhecer os arquivos, é muito interessante,  você vai gostar”. Eu fui lá com ela, pra ver as fotos dos meus amigos presos. E fui logo lá, nos arquivos da COLINA, que era a organização que eu conhecia melhor e fui achando todo mundo que eu conhecia, “quero cópia para mostrar isso aqui pra eles”. Até os erros da polícia, fui achando engraçado, eles colocavam os nomes errados. Eu achei aquilo muito interessante e ao sair de lá eu falei com ela que era preciso fazer um filme. Esse material é muito rico.  

Comecei a pesquisar sobre COLINA, eu achei que seria um filme sobre COLINA [Comando de Libertação Nacional, organização revolucionária de esquerda que enfrentou a ditadura militar], que era mais fácil pra mim porque eu conhecia muita gente. Aí, no meio da pesquisa eu folheei, meio ao acaso. Folheei todas as pastas, sui generis, sem nenhum método, as pastas “Acervos da Polícia Política”. Tem milhares de pastas e fui riscando pra ver o que existia com fotografia. O pesquisador até hoje não tem acesso ao acervo fotográfico porque para você ter acesso a ele, você já tem que chegar com um nome. “Eu quero as fotos de fulano…” Naquela época, nem isso. Foto era apenas com autorização das pessoas. Então, era impossível fazer uma pesquisa de acervo fotográfico se você não trabalhasse lá, como era o caso da Tereza. Como eu não trabalhava lá dentro, a única forma de acesso a documentação fotográfica pra mim foi essa: pegar pasta por pasta e ver o que existia como xerox, porque nas pastas só tem xerox, quando tem. Os historiadores fizeram uma triagem para preservar o documento fotográfico, separaram  texto de imagem. Documentos textuais ficaram nas pastas e os fotográficos foram para um acervo específico. Então, muitas vezes você encontra o documento sem a foto, e você pode pedi-la. Muitas vezes você não sabe se aquele documento tem foto, mas a foto existe. A dificuldade não é tanto a lei, mas a dificuldade de preservação e a bagunça do arquivamento. Porque eu encontrei muita fotografia colada uma na outra. Quando o Reinaldo fala “ah, eles deviam ter tido mais cuidado”, eram fotografias coladas uma na outra, arquivadas de uma maneira assim, meio… e o modo como os historiadores e arquivistas receberam isso do DOPS. Eles receberam isso do DOPS dentro de sacos, tudo misturado e bagunçado.  

No meio do caminho, folheei várias coisas e encontrei xerox de fotografias da saída dos “setenta” [os conhecidos como “setenta” foram setenta militantes que exilados no Chile, em troca da soltura do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, no Rio de Janeiro, sequestrado por um comando da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderado por Carlos Lamarca. A VPR exigia a libertação de setenta presos políticos, com a divulgação dos nomes em um manifesto, o congelamento dos preços em todo o país por noventa dias e a liberação das catracas no Rio de Janeiro.] Eu vi lá, entre outras fotos, a da Dora. Só que o rosto da Dora é um rosto marcante. 

Me chamou atenção pela beleza do rosto, mas não parei, só vi. Tinha uma foto dela em pé, com uma camisa estampada. Aí, quando fui assistir o Brazil: A report on torture (1971) [documentário de Haskell Wexler e Saul Landau com depoimentos de brasileiros torturados e exilados no Chile], que eu não tinha visto, eu olhei e falei: “essa moça parece com aquela que eu vi lá na pasta”, voltei na pasta e era ela mesmo. Foi aí que pensei que daria um filme. Fui atrás da história da Dora e fiquei sabendo como o Chael morreu. Depois fui atrás do livro do Reinaldo.  

LM: Então a Dora foi a primeira personagem que você encontrou e a primeira imagem?  

AL: Foi. Graças ao filme do Saul Landau que me levou até ela. Fui atrás do Reinaldo, descobri o outro filme do Luiz Alberto Sanz, Não é hora de chorar (1971) [guerrilheiro exilado na Suécia, tornou-se cineasta],  que não estava  na internet na época. Fiquei conhecendo o Sanz e fui atrás do Espinosa depois. Foi assim. 

LM: E sobre esses filmes, que estavam perdidos…  

AL: Eu tinha o DVD do filme do Landau e o do Sanz, ele me emprestou uma cópia, uma [fita] Mini-Dv, uma Beta, eu não cheguei a restaurar porque não tinha dinheiro pra isso. Eu legendei o filme do Sanz e nós fizemos uma mostra com os filmes dele. Não só com esse, mas um outro que se chama Quando Chegar o Momento (Dora) (1978), que estava em sueco, tinha português, francês, espanhol… foi feita uma legendagem artesanal. Eu, uma aluna bolsista, a Maria Bogado, e meu monitor. Nós fizemos a legendagem e fizemos a mostra. Não chegou a ser uma restauração, foi uma espécie de avant première de um filme que nunca tinha passado no Brasil. Apenas uma vez, para um grupo fechado, mas que ninguém conhecia.  

LM: E sobre os trechos desses filmes que você usa em Retratos de Identificação, como foi esse recorte?  

AL: Do filme do Sanz, eu usei quase tudo da Dora, porque a fala dela no filme no Sanz é uma fala diferenciada. Ela não está sendo entrevistada por um jornalista, como é o caso do filme do Landau. Por mais próximo que esse jornalista seja, por mais bem preparado, por mais que ele se identifique com a história que está sendo filmada, com a sorte daquelas pessoas, é uma coisa de jornalista, e de jornalista americano. Você vê como ele reconstitui as cenas de tortura, é um negócio terrível, né? Para o espectador e para as pessoas, sobretudo que foram filmadas. Elas estão filmando ali porque elas querem denunciar. É uma outra tortura. Tem uma criança que chora, uma coisa horrorosa. O trabalho do Sanz é outra coisa. Ele tá ali nos “setenta”, ele foi torturado. O Sanz sabe do que ele está falando e ele encena a tortura sem o personagem do torturador e sem o torturado. Ele pede para um ator que se coloque ali no pau de arara, numa coisa fabricada. É muito diferente. Como a Dora tem diante dela o Sanz, ou seja, uma outra testemunha, a fala dela não é para um espectador longínquo, distante. Ela está em uma conversa com o Sanz, um acontecimento pessoal. Ao mesmo tempo que ela está sabendo que ela está falando para o futuro, ela tem ali diante dela um cara que sabe o que ela viveu. Um cúmplice, um camarada, um companheiro. Então a fala dela do filme do Sanz eu me senti à vontade de usar quase tudo.  

Inicialmente eu não usava a imagem, porque eu tinha encontrado com o sobrinho da Dora e ele estava fazendo um filme sobre ela na época. Então eu achava que ele tinha por direito utilizar essas imagens. Como o filme da Emília Silveira foi lançado (Setenta, 2013) e utilizava as imagens da Dora, então eu pensei: agora que todo mundo tá usando eu não vou me privar, né? Não só por uma questão de privação, mas o filme precisava da presença física da Dora, não bastava só a fala dela. Eu tinha poucas fotografias dela, a do momento da prisão que era o momento mais importante da fala dela, e da saída, que era o momento da tortura, e eu não tinha imagens. 

Tinha imagens do momento dela sendo presa, que é essa do cartaz do filme, e dela logo depois, já com a cara quebrada e as imagens da saída, que são as imagens dela nua e as imagens de corpo inteiro, vestida. Inclusive, aquelas imagens dela nua eu uso no momento do filme que narro a tortura, deixando claro para o espectador que as fotografias correspondem ao momento de sua saída, tem a data na imagem. Ao mesmo tempo ela falava do desnudamento como uma forma de tortura, como uma tática a mais de tortura. Então era importante mostrar essas imagens para a fala dela. A imagem a posteriori referendou a fala da Dora. Então era importante vê-la falando e eu acho que trouxe a presença dela pro filme. Ela tá ali em iguais condições com o Reinaldo e com o Espinosa. Ela é um personagem presente, enquanto o Chael tem só a foto dele, não tem voz, não tem nada. Ele fala através do Espinosa e da Dora. Então era muito importante, porque a Dora também ela trazia essa denúncia, ela era testemunha da morte do Chael. Era muito importante que ela aparecesse. Então foi assim que foi selecionado.  

LM: No filme do Landau tem vários outros momentos que Dora aparece, quando ela está com a Nancy. E nesse filme ela ri muito… 

AL: Ela ri de nervoso, ela não ri, ela tem um esgar. Reinaldo fala isso, que ela saiu da prisão com um certo esgar. O Espinosa também falou que não reconheceu a Dora quando ele viu as imagens, a tortura a deixou muito marcada fisicamente…  

LM: Tem uma cena também dela dando um tchau quando ela tá entrando no carro… 

AL: No Chile, né? Aquilo foi o único momento, a única imagem ilustrativa que eu me permiti utilizar, porque o Reinaldo falava do Chile e tem aquele plano sequência. Ela vem com o Landau e a Carmela, eles dão dois beijinhos, ela entra no carro e dá um tchauzinho. Foi a única imagem que eu me permiti usar porque a parte do Chile é um momento sem imagem e, no Chile, a prisão se prolonga, a perseguição se prolonga, a tortura se prolonga. Eu queria trazer o Chile. Se eu tivesse alguma imagem dela na Alemanha, seria uma imagem muito feliz, ela com o Reinaldo no dia que eles foram passear na Alemanha Oriental, e eles fizeram uma foto lá. Se eu tivesse achado as fotos da polícia, o Reinaldo conta que eles eram muito vigiados lá, que eles eram filmados, se eu tivesse encontrado isso eu teria usado. A imagem do filme do Landau lá no Chile, foi realmente, porque no momento do Chile era importante. Tem um momento longo do que aconteceu no Chile pelo Reinaldo e, aquela imagem trazia a Dora no Chile. Foi meio instintivo, sabendo dos riscos que aquilo ali causava, o que significava o risco de cair em uma ilustração. Porque o tempo todo eu montei com esse rigor, aí chegou essa imagem, e ela dava tchau e o Reinaldo faz “assim” com a mão: tem um raccord, eles se encontram lá na montagem.  

LM: Eu vejo essa imagem como um gesto de despedida a nós. Ali ela começa a se despedir do filme, né?  

AL: A gente já está no final do filme, né? Eu gostei disso! Eu queria falar mais do Chile, porque foi um trauma para essa geração. O Sanz fala: “Eu vivi três golpes já”. O de 2016 foi o terceiro na vida deles. Então foi mais isso, trazer a presença dela no Chile e, ao mesmo tempo, aquela imagem no Chile trazia também uma espécie de esperança. Parecia que ela tinha recuperado a juventude dela, a crença no projeto político. Ela estava realizada fazendo aquele trabalho social no Chile, ela ia fazer uma coisa meio revolucionária no campo da medicina, que era juntar psiquiatria com ginecologia, que foi a área que ela começou a se especializar na Alemanha. Olha que coisa bacana: medicina social, psiquiatria e ginecologia. Ali estava começando um outro mundo e veio um outro golpe. Foi por isso que me permiti. Mas na hora da montagem eu descobri uma coisa que só a montagem permitiria, que foi esse encontro, das mãos com o Reinaldo, tem um raccord inesperado. Eu montei depois que eu vi.  

LM: Anita, sobre os negativos que você encontrou e a comprovação do assassinato do Chael, ele acontece na fotografia por um descuido da polícia em abrir demais o plano?  

AL: Tem isso, mas não só isso. A prova do crime do assassinato do Chael tem pelo menos três evidências: uma delas é o testemunho do Espinosa. O laudo de necropsia é um negócio impressionante. Eu peguei aquele laudo e fiz um trabalho, um estudo daquele laudo junto com um amigo que é médico, cirurgião. Eu pedi pra ele ler e me explicar o que era cada um daqueles termos. Quando chegou um momento da leitura, ele leu e disse: “tinha médico na tortura”, e eu perguntei como ele sabia. 

Ele me respondeu: “Seis pontos de sutura de fio de seda no maxilar na região mentoneira” — que era a região do queixo — e só um médico poderia fazer isso. Então, durante a tortura ele foi remendado pra continuar a ser torturado. Aquele documento ali já era o bastante pra incriminar todos os torturadores. Foi um documento lavrado pelo Hospital do Exército pra onde ele foi levado. Ele foi assassinado na Vila Militar. De lá, o corpo foi levado para o Hospital do Exército para fazer um laudo de necropsia, um atestado de óbito, pra depois mandar pro IML. O mandaram pra lá e um dos chefes da tortura, o que forjou o documento, Celso Lauria [à época, capitão do Exército], ele tentou, segundo o Espinosa, subornar as regras do hospital para que  dissessem que Chael chegou vivo, mas ele não consegue e os caras do hospital não estavam sabendo de nada, lavraram aquilo ali. O médico que estava de plantão mandou fazer uma necropsia como se fosse qualquer morto. E o morto ali está trucidado, está em pedaços. Ninguém morre ali, daquele jeito, em uma troca de tiros da polícia, sem nenhum tiro no corpo. Aquilo ali [a foto encontrada por Anita no arquivo DOPS] já é um documento suficiente. É com base naquele documento que a morte do Chael foi denunciada no mundo. Tanto na [revista] Veja quanto na mídia europeia.  

LM: E que salvou o Espinosa…  

AL: É, exatamente. Os negativos já tinham começado a amarelar, eles são bonitos, tem um amarelado em baixo, às vezes em cima, aquele enquadramento, plano aproximado e cintura. Aquilo ali eu acho que era de praxe, eu não comparei com outros negativos, é uma investigação interessante a se fazer. Mas eu acho que era de praxe, eles faziam aquele tipo de enquadramento mesmo, às vezes para não ficar muito próximo do prisioneiro, agora que tô pensando nisso. Devia ter uma distância mínima que eles deviam ficar, por segurança… eles faziam a foto mais aberta e depois, reenquadravam. O que eles distribuíam para as agências de informação era a foto reenquadrada, 3×4, jamais o plano aproximado da cintura, só o plano aproximado do peito. O que achei primeiro foi a série em plano aproximado do peito. Muito tempo depois eu achei, junto, em outro envelopinho, os negativos. Quando eu olhei contra a luz que eu vi, eu não acreditei. Aquilo ali respaldava, caso alguém tivesse mais alguma dúvida. E, além disso, havia os documentos do Celso Lauria que encontrei também, tentando desmentir e se prevenir com base no documento do próprio Hospital do Exército… aquelas mentiras todas que ele inventou. Tem esse documento falso que testemunha essa atrocidade. E então tem três documentos, e mais o testemunho oral do Espinosa. Foi muito importante o testemunho oral do Espinosa, porque ele morreu em 2018 e ficou esse testemunho dele. Não deu tempo de fazer outro filme com ele, que era o seu sonho, sobre os feitos da guerrilha. O filme que ele tanto queria.  

LM: Você levou esses negativos para a Comissão Nacional da Verdade, não foi? 

AL: Foi. Teve uma sessão em janeiro de 2014. Nesse mês a CNV convocou os torturadores do Chael e o Espinosa. […]. E, nesse dia, a CNV não tinha nenhum dos documentos, tinha apenas do Espinosa e o conhecimento do laudo de necropsia. Eles não tinham conhecimento da foto que levei.  

LM: A foto que você encontrou a partir da pesquisa do filme? O filme já estava pronto?  

AL: Isso, em 2014. O filme já estava pronto. A pré-estreia foi em setembro de 2014, no cinquentenário, mera coincidência. 7 de setembro estava lá com a exposição, cheio de black block, foi muito bom. Foi muito legal, o Espinosa estava muito feliz, ele ficou muito feliz com esse público. Foi uma das exposições mais concorridas do RJ, foi muito bom [a exposição Arquivos da Ditadura (2014) foi composta por instalações sonoras e fotografias de identificação policial de presos políticos, criada a partir do filme Retratos de identificação]. Foi um momento já de uma certa tensão daquelas manifestações [que aconteceram em todo o país a partir de junho de 2013], algumas prisões já estavam sendo feitas, então era muito tenso. A gente sabia que haveria um golpe a qualquer momento. 

LM: Essa era uma das minhas perguntas, sobre o contexto em que o filme foi gestado. 

AL: Foi um momento tenso demais. Quando começou eu não imaginava isso. Comecei com um desejo nobre, de professora, de quem vai começar um filme para os alunos que não sabem nada sobre a ditadura, porque eu fiquei chocada com a desinformação. Cheguei no Rio, em 2009, voltando da França e fiquei chocada com a inocência dos estudantes, eu precisava fazer alguma coisa e foi aí que resolvi pesquisar esses arquivos e fazer o filme. Mas, no meio do caminho, a coisa foi ficando muito séria. Em 2014 quando o filme saiu as manifestações já tinham tomado outro rumo, já estavam completamente ocupadas pela extrema direita.  

LM: Outra coisa que eu queria te perguntar é sobre a denúncia da Dora. Ela denuncia o assassinato do Chael em um documento escrito que contém as torturas que ela sofreu. Está naquele relatório de Mortos e Desaparecidos de 1995. Comparando esse relato escrito com o que ela fala no filme do Sanz, em 1971, ela reduz muito no testemunho, principalmente sobre o que ela passou. O documento revela atrocidades, é assustador. 

AL: É, eu queria ter trabalhado isso, mas não deu tempo… e, alguém tinha que ler esse documento, mas quem? Espinosa? Achei que podia ser uma coisa que violava a intimidade dela porque ela fez aquilo por escrito. Ela tinha que estar viva. É igual as fotos dela nua, como usar aquilo ali? A irmã dela disse que eu podia usar o que eu quisesse, que tinha total confiança, mas eu não podia usar as fotos dela nua. A forma que eu encontrei pra usar foi aquela ali [fragmentos do corpo de Dora], porque eu precisava ao mesmo tempo usar. A Marta foi ao Rio umas três vezes para achar aqueles enquadramentos. Ela ficava trabalhando aqui e eu lá. A gente trocando imagens pela internet, foi muito difícil. Tinha um risco de sensualizar aquela beleza, algo tão sórdido e tão cruel.  

LM: E só havia uma imagem dela nua? 

AL: Na verdade, eu não tenho aqui pra te mostrar, mas ela de frente, de costas e de perfil. Um tríptico. Frente, costas e perfil. Foto retangular, ela de corpo inteiro e de calcinha. Só de calcinha.  

LM: E em todas essas fotos ela desvia o olhar, né?  

AL: Todas.  

LM: Você fez um roteiro, Anita?  

AL: Na verdade, quando eu fui filmar eu já tinha todo o filme na cabeça. Eu já tinha o filme todo montado. Eu não sabia o que o Reinaldo e o Espinosa iam falar, mas eu sabia o que eles não iriam falar, o que não ia estar no filme. No filme eu queria que eles falassem, o Reinaldo da morte da Dora e o Espinosa da morte do Chael. Pra mim, o filme era isso, dois vivos que iam falar de dois mortos. Eu sabia a ordem das sequências porque ia ter uma ordem da filmagem, na ordem cronológica dos acontecimentos históricos, eu ia seguir essa ordem. Tinha uma estrutura ali, um roteiro prévio. Eu já tinha feito até alguns ensaios de montagem, mesmo antes de filmá-los. Eu tinha pensado muito porque eu já tinha as imagens todas, eu filmei com muita antecedência, então já sabia na ordem como elas iam entrar no filme. Todas as variações, o tamanho do filme que eu podia ter. Eu não tinha imagem para além de uma hora e dez. Eu só não sabia o que eles iam dizer, mas eu sabia assim, que eu ia começar com o Espinosa contando a prisão, que a Dora ia dialogar com o Espinosa, que iam ser aquelas imagens do momento da prisão… Ah, aquelas imagens do arsenal encontradas pela polícia vieram do Superior Tribunal Militar também, na última hora. Eu acrescentei no final. Aquela parte da Dora que foi seguida não existia, mas já estava tudo naquela ordem já. Eu sabia que a parte do Espinosa ia terminar na hora que o Espinosa ia embora, não sabia que ele ia falar que ela ia embora…  

LM: Você não esperava que o Reinaldo levantasse no final?  

AL: Não! Aquilo foi um dos presentes do acaso. Quando você se prepara demais, o Labarthe, que é um cara que eu adoro, ele fala isso, que tem dois tipos de cineasta. Em francês tem duas palavras, o caçador e o que faz a armadilha. O chasseur, o caçador, é o que vai atrás, o cineasta do cinema direto. O cineasta do dispositivo fica na espreita esperando a presa passar, faz a armadilha e espera. Eu sabia que tinha um dispositivo ali que funcionava ou que não ia funcionar de jeito nenhum, mas era o que eu tinha e tinha que contar com isso. E aí, de repente, o Reinaldo se levanta. Quando ele levantou foi uma tensão muito grande, porque eu estava filmando pela primeira vez com o Alexandre no som e o Marcelo na câmera e eu nunca tinha trabalhado com eles. São dois colegas da faculdade que eu convidei pra fazer o filme comigo fora do horário de trabalho deles. Nós filmamos o Reinaldo no dia 7 de setembro. O Espinosa nós também filmamos no domingo, saímos daqui na sexta à noite, filmamos no sábado e voltamos domingo.  

O Marcelo reproduziu um estúdio fotográfico comigo dentro do Arquivo. Nós montamos um pra fazer a reprodução dos acervos todos…  

LM: O que você fez? Eu não entendi… 

AL: Nós montamos um estúdio dentro do Arquivo Público, em uma mesa de trabalho e lá a gente fez uma câmera escura, e montamos uma table top com a câmera de cabeça pra baixo. Embaixo tinha um vidro para a fotografia ficar bem colada. A gente tampava, fazia uma câmera escura com iluminação lá dentro e reproduzia cada fotografia nesse esquema. Só que o Arquivo fechava às quatro da tarde. Todo dia a gente tinha que montar essa barraca toda.  

Bom, então eu estava lá com esses dois quando o Reinaldo desapareceu lá atrás da parede. Eu não podia respirar, porque o medo que eu tinha era que eles desligassem os aparelhos. Fiquei numa tensão muito grande com medo deles desligarem, e eles não desligaram. 42 segundos depois o Reinaldo volta e termina o filme ali. Foi a última coisa que a gente filmou. No final, ele conta como eles foram perseguidos lá na Alemanha e tal, depois da morte da Dora, da banana que ele deu à polícia alemã quando eles deram o passaporte pra ele – mas isso está numa cartela só. Quando terminamos tudo, fomos embora e o Fernando falou assim: “nossa, eu fiquei com tanto medo que você desligasse”. Então eles também estavam totalmente entregues à situação! 

Antônio Roberto Espinosa foi um jornalista, escritor e professor de Ciências Políticas e Relações Internacionais. Comandante das organizações VPR e VAR-Palmares, no período da ditadura, Espinosa foi um quadro importante da resistência.

LM: Então só pra confirmar, primeiro você filmou o Reinaldo e depois o Espinosa?  

AL: Foi. Reinaldo nós filmamos dia 7 de setembro de 2013 e o Espinosa em outubro de 2013, lá em Osasco, São Paulo, na casa dele. Em novembro eu voltei a São Paulo para fazer a gravação só do áudio da leitura do laudo de necropsia. Você pode ver que a voz dele está diferente, ele estava rouco no dia que eu cheguei lá. Não era a mesma voz, ali eu fui sozinha, eu mesma que fiz.  

LM: Anita, eu queria te ouvir, a partir do contato que você teve com o Reinaldo e o Espinosa, o que foi o suicídio da Dora pra você.  

AL: É difícil, né? Até para o Reinaldo é difícil saber porque a Dora se suicidou. Ele fala isso no filme, tem várias razões, tem a formação familiar rígida, sequelas da tortura, a relação dela com ele que não era fácil. Tem o fato dela ser psiquiatra e psicanalista e saber o que estava acontecendo com ela, que aquilo era um processo, não um surto… e tem coisas que ele falou que não podia contar. Então é muito difícil você saber o que significa um suicídio, né? É uma pergunta sem resposta. O que nós, externamente, exclusivamente podemos analisar é  de um ponto de vista da história, da grande história da ditadura. Eu só posso ver isso aí em um conjunto de vários suicídios de presos políticos que passa pelo da Dora e do Frei Tito — que foi mais ou menos na época. Tiveram vários outros. Teve um recentemente, enquanto eu fazia o filme, que é o Marcão. Tem muitos casos e eles continuam acontecendo. O suicídio é algo que não conseguimos explicar nem julgar. É um ato extremo. 

Por mais que o Reinaldo diga que tem muitas variantes do suicídio da Dora. Aquela que nos diz respeito enquanto espectadores de um filme, cidadã da história, leitor da história, alguém concernido pelo passado é a própria história. Algumas pessoas conseguem contornar e outras não… as pessoas que eu conheci que foram torturadas se apegaram muito aos filhos para sobreviver. Muitas delas fizeram filhos e filhas para sobreviver. Reinaldo fala que os filhos foram a Disneylândia dele. Ele viveu em função das filhas. 

LM: O livro dele também como forma de elaboração… 

AL: É, mas ele tem que ter mais que isso pra aguentar. Então é o limite de cada um, em função do que cada um viveu, do que cada um é… Não sei responder isso não, não sei mesmo. Não tem jeito de fazer. #

Retratos de Identificação (2014): https://vimeo.com/110206302

Notas de rodapé

  1. Anita Leandro é documentarista, pesquisadora e professora da ECO-UFRJ, com diversas publicações sobre cinema. Sua pesquisa sobre a filmagem da fala e a montagem de materiais de arquivo deu origem ao documentário Retratos de identificação (2014), prêmio do júri oficial do CachoeiraDoc e prêmio Arcoiris do Festival del Cinema Latino Americano de Trieste, além de ser selecionado para o festival FID Marseille 2015 e vários outros festivais e mostras de cinema. Em 2016, foi professora convidada da Paris III. Seu pós-doutorado nessa mesma universidade deu origem ao projeto de filme Anistia 79, em fase de produção.
  2. “Em Retratos de identificação, um documento forjado pela polícia foi uma peça importante na reconstituição da história do assassinato do militante Chael Schreier, preso no dia 21 de novembro de 1969, em companhia de Antônio Roberto Espinosa, comandante da VAR-Palmares, e de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, militante da mesma organização. Levados para a PE da Vila Militar do Rio de Janeiro, os três foram barbaramente torturados por um grupo de oficiais e suboficiais do I Exército, com espancamentos, chutes, sevícias sexuais e choques elétricos. Chael não resistiu aos golpes e morreu após uma noite de torturas. O corpo foi levado para o Hospital Central do Exército, autopsiado sob ordem do diretor do hospital, o médico e general Galeno Franco, e entregue ao IML. Sem saber o que havia se passado na Vila Militar, o IML entregou o corpo e a autópsia à família e a morte do estudante foi imediatamente divulgada na imprensa nacional e internacional, frustrando as expectativas dos responsáveis pela morte do estudante de acobertarem o crime. Era a primeira denúncia pública de tortura no regime militar, divulgada em reportagem de capa da revista Veja nº 66, de 10 de dezembro de 1969. O capitão Celso Lauria, encarregado do IPM da VAR e um dos chefes da equipe de tortura que matou Schreier, forjou, então, um documento afirmando ter havido “necessidade do emprego de energia física para efetivação da prisão, resultando daí as lesões letais verificadas no corpo do militante”.11 O documento, assinado pelo capitão Lauria em 27 de fevereiro de 1970, três meses depois da morte do estudante, omite a existência do auto de autópsia, que constata, no entanto, 11 costelas quebradas, ruptura do mesocolo e do mesentério, hematomas em todo o corpo, diversas hemorragias internas e, até mesmo, implicitamente, assistência médica à tortura, ao se referir a “seis pontos de sutura na região mentoneira”.12 O capitão Lauria não imaginava que, 45 anos depois, um outro documento da polícia, além do laudo de necrópsia, viria se juntar ao dossiê de acusação e desmentir definitivamente sua falsa versão dos fatos. Pouco antes de ser levado para a Vila Militar, Chael fora fotografado no DOPS/GB, de frente e de perfil, com o torso nu, em plano aproximado na altura da cintura. Os negativos dessas fotos foram localizados no APERJ durante a pesquisa para o filme Retratos de identificação e, uma vez positivados, revelaram que o estudante não tinha nenhum ferimento da cintura para cima.13 Confrontado a esses negativos, o documento forjado pelo torturador vem atestar os próprios métodos da repressão, trazendo à tona a história oficial que se tentava, então, fabricar.” (LEANDRO, 2016, p.112)
  3. Um pouco da produção de Anita Leandro sobre o assunto:

    ____________. Cinema do exílio: entrevista com Luiz Alberto Sanz e Lars Säfström. Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, Lisboa, v. 2, n. 2, p. 349-359, 2015a. 

    ____________. Montagem e história: uma arqueologia das imagens da repressão. In: A sobrevivência das imagens. Alessandra Soares Brandão e Ramayana Lira de Sousa (orgs). Campinas, SP: Papirus, 2015b.
    ____________. Os acervos da ditadura na mesa de montagem. In: LOGOS 45, vol.23, n. 02, 2016.
    ____________. Testemunho filmado e montagem direta dos documentos. In: A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Carolina Dellamore, Gabriel Amato, Natalia Batista (Orgs). Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018.