Mate-me por favor trata de um grupo de garotas adolescentes na Barra da Tijuca que se deparam com uma onda de assassinatos e estupros.
Desde uma das primeiras cenas do filme, em que a protagonista Bia (Valentina Herszage) nos olha através da câmera, percebemos que não há intenção da diretora de convencer os espectadores de qualquer naturalismo no que acontece na tela. O filme caminha sempre nesse espaço entre o exagero estilizado e a realidade absurda.
Um sonho/pesadelo adolescente pop onde adultos não existem e tudo é percepção.
Enquanto assistia Mate-me por favor, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo. Durante muitos momentos conseguia me reconhecer. Talvez seja o fato de que a Barra de Tijuca se pareça com a cidade em que eu cresci, Brasília. Ou talvez seja o fato de que eu fui também uma garota branca de classe média que tinha bem menos acesso a internet do que gostaria e amigos e conversas bem menos elaboradas do que eu haveria de descobrir posteriormente possível.
Eu, aos quinze anos, era como Bia e suas amigas. Tirava fotos para a internet, insistia para transar logo com namorados que pareciam completamente perdidos em relação a toda a existência enquanto adolescente, beijava semi-desconhecidas no banheiro do colégio, tinha sonhos terríveis com situações de estupro e vez ou outra chamava ou era chamada de piranha.
E, assistindo àquele filme, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo porque eu sabia que aquela mise-en-scène não denotava falta de complexidade. Não denotava ausência de subjetividade. Não denotava um olhar apolítico e fetichista sobre garotas burguesas. Mas eu sabia também que o filme seria lido por muitos dessa forma por causa do ponto cego que existe no olhar que legitima os filmes.
Chegando em casa, por curiosidade, chequei algumas das críticas que havia evitado ler antes. Enquanto alguns textos estrangeiros frutos das passagens por grandes festivais internacionais falavam claramente da questão de gênero, inclusive se referindo a “masculinidade tóxica”, a maioria das críticas brasileiras que encontrei não chegava a tocar nesse assunto.
Por aqui, muitos comentários genéricos: “esteticamente interessante”, “pitadas de David Lynch”, “um olhar sobre a adolescência”. De um lado, diversas críticas elogiosas, mas vagas. De outro, críticas que diziam que o filme era apenas estilo sem conteúdo. Que não se aprofundava em nada. “Esvaziado de um conceito mais significativo, o que resta é a forma”, escreve Pedro Henrique Ferreira na Cinética, por exemplo.
Apenas aparência, sem conteúdo. Superficial. Vazio.
É curioso que é justamente assim que somos vistas quando existimos dentro do que foi definido feminino.
E enquanto assistia o filme, eu sabia. Por um lado, é engraçado ter uma consciência tão precisa do olhar que teriam sobre o filme — e sobre mim mesma aos quinze. Mas isso é também resultado da experiência feminina, acostumada a se dissociar e a enxergar a si própria como um outro, como objeto de observação. Algo que está presente ali não apenas nos olhares das personagens para a própria audiência. A cada morte anunciada, as meninas se imaginam morrendo. A cada morte no terreno baldio, vazio entre os prédios em uma cidade rarefeita, elas morriam um pouco. “Vocês não podem ficar andando assim sozinhas”.
E como responder a violência e resistir ao terror psicológico que pode te impedir de viver?
O filme parece existir ao redor dessa questão. Ao longo dele, personagens em diversas situações falam repetidamente coisas como: Sangrou muito. Foi muito sangue. Tinha sangue por todo lado. Nunca vi tanto sangue. Sangrou muito, muito mesmo. Muito.
Tesouradas na barriga, “o homem entrou em mim”, “dói perder a virgindade?”, “vem, Jesus, vem para dentro de mim”, as mãos ao redor do pescoço dele num impulso de curiosidade sobre o que seria essa sensação de ter poder. Em um dos melhores momentos, e que se mescla ao final do filme muito bem, Bia diz ao seu namorado palavras que marcam: Sangue é vida.
E é verdade que sim, de várias formas.
Esse texto foi citado na fala Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?
ursodelata.com/2017/02/09/problema-so-dos-filmes-…
Mais desdobramentos:
http://www.socine.org/encontros/aprovados-2017/?id=16646
Aquarius (2016) é o segundo longa-metragem de ficção do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, que se tornou nacionalmente conhecido após o sucesso exponencial de O Som Ao Redor (2012). Nele somos apresentados a Clara, uma senhora da elite intelectual e cultural recifense, que enfrenta uma construtora interessada em comprar seu apartamento e construir um novo prédio no local. Estamos diante de um filme de personagem, em que entramos gradativamente na vida de uma mulher, cujo corpo, história e contradições são transversais à outras personagens que vão se revelando: o prédio Aquarius, a Avenida Boa Viagem, a cidade de Recife.
Participou de festivais como o Sidney e o de Toronto, mas chamou atenção principalmente pelo protesto contra o impeachment de Dilma Roussef em pleno Festival de Cannes, em que concorria à Palma de Ouro, considerada a premiação mais importante do cinema. Esse percurso terminou por colocar em Aquarius a aura de filme político. As consequências estão aí até hoje: até mesmo a indicação brasileira para o Oscar se tornou uma batalha, e o filme acabou não escolhido – politicamente, talvez? – pela comissão montada pelo novo MinC.
É verdade que o filme atravessa questões contemporâneas do Brasil. Quando Clara (interpretada por Sônia Braga) se recusa a sair do apartamento em um prédio na beira da praia em Recife, ela envia uma mensagem para os agentes do desenvolvimentismo vertical. O movimento Ocupe Estelita, que lutou contra a criação de um complexo urbano privado em um cais próximo ao centro de Recife, deu o recado antes dela.
No entanto, quando vemos a personagem dizer que “não é só sobre dinheiro”, temos espaço para julgá-la de forma pessoal. Quem será que ela pensa que é para atravancar um empreendimento que é do interesse de muitas pessoas? É interessante a facilidade com que tornamos privada a vontade de Clara de continuar a viver como sempre viveu, e não consideramos que transformações nas grandes cidades sejam tão impactantes que é absurdo que possam se proliferar sem que haja constante participação da cidade. Mas em geral, não há.
Por que não há? Ocupe Estelita tentou responder como a cidade pode ser ressignificada a favor de seus habitantes e se posicionou contra os jogos de sucateamento e especulação que os governos e empresas fazem aquém de todos. Essa não é, entretanto, a função de Clara no filme, ainda que Aquarius tangencie todas essas questões.
Kleber Mendonça Filho é honesto quando nos permite questionar a personagem, colocando de forma aberta os elementos que poderiam ser usados contra ela de maneira política. Clara não é livre de fantasmas e o filme dá vazão a isso. Pesadelos sociais. A imagem da empregada negra que rouba, e que não tem nome, tamanha é a invisibilidade. A tensão com a possibilidade de perder a vida despreocupada, que Clara pensa ter por direito. O câncer curado que ainda é ferida aberta. Ao abrir espaço para esses pequenos momentos de terror, o diretor dialoga com suas outras obras e relembra que, para cada pesadelo que vive a personagem de elite, há uma série de horrores que se perpetuam com a manutenção do status quo.
Kleber Mendonça nos torna cúmplices dos julgamentos sociais que se estabelecem, ora por meio de zooms, ora pelo discurso – de Clara ou do filme, ou mesmo nosso, ao nos identificarmos com ela, como classe média esclarecida? Acreditamos que os serviçais do engenheiro antagonista podem roubá-la. Tememos pelas tensões que podem ocorrer na visita à favela Brasília Teimosa. Sentimos alívio ao vê-la incorporada à imagem de Recife sem torres gêmeas. Prédios altos, favelas, o mar. Clara incorpora o amor pela cidade imperfeita.
Não parece interessante à direção do filme que ela seja definida como a mulher rica, a mulher velha, a mulher política, a mulher revoltada. Nem mesmo que seja totalmente esclarecida. Há o interesse de revelar, aos poucos, um ser humano.
É certo que as recusas de Clara são possíveis de acordo com seu lugar na sociedade, se dialogamos com a realidade. Poderia uma mulher pobre, sem “cinco propriedades” e com pouca educação para saber de seus direitos, ter enfrentado uma empresa imobiliária poderosa? As razões políticas de sua coragem são fáceis de assimilar.
A humanidade por trás de seu modo de ver as coisas, no entanto, é a matéria primordial do filme – e é claro que toda vida é política – mas toda vida é um tanto mais. É inclusive contradição. Clara não tolera viver sob os rótulos aplicados a ela. Não pode ser apenas “mãe” como acusa o rancor dos filhos, recusa-se a ser “velha” e “datada” como chamam o prédio Aquarius.
Por ter sobrevivido a uma sentença de morte, não se vê como “passado” apesar da idade, e não aceita ser “sozinha”, trazendo as pessoas para perto de si quando precisa, ainda que nem sempre tenha realizada sua vontade de ter ao redor uma grande família. A relação com a empregada Ladjane traz à tona as relações de um Brasil confuso em sua narrativa de desigualdades, nem sempre tão óbvias. Clara não possui só riqueza: tem família. Ladjane exibe a foto do filho que se foi.
O exemplo de tia Lúcia é herança bem maior que a penteadeira que permanece no antigo apartamento. Reconhecimento pelo trabalho, dinheiro e poder orbitam as duas mulheres, intelectuais e bem-nascidas. Mas são as experiências do passado e do presente que trazem a tal dimensão humana para os espaços em que habitaram. O apartamento no edifício Aquarius é para as ambas casa e corpo, e para Clara o corpo ainda está presente. Ela tem uma consciência pulsante e manifesta a respeito disso. Clara conquista o público porque valoriza o que a faz feliz.
Talvez por isso a expressão maior da personagem se dê através da música. Se toda arte é capaz de chegar às pessoas de maneiras diferentes, a música é singular em sua visceralidade, por precisar apenas de ouvidos e coração para ser apreciada, por atravessar gerações com tanta facilidade. Através da música Clara se identifica com a jovem namorada do sobrinho, e a emoção compartilhada não tem idade. As duas se complementam.
No final, as contradições de Clara são “perdoadas” porque a emoção do público também encontra abrigo no apartamento cheio de vinis que se confunde com a personagem. E Kleber Mendonça Filho nos entrega um prédio que, como enfatiza Clara, não está vazio. Está repleto de significados.
Podemos pensar a dramaturgia de Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert, a partir de duas chaves iniciais de aproximação: a primeira é ter uma trama livremente inspirada no caso Pedrinho – o bebê raptado em uma maternidade em Brasília, em 1986; a segunda é a construção identitária do protagonista – o adolescente de 17 anos, Pierre/Felipe (Naomi Nero).
Apesar de tomar como ponto de partida um evento real, o longa não pretende se vincular a uma tradição de gênero “inspirado em fatos reais” – tanto que há uma recusa do uso de qualquer cartela explicativa/informativa sobre o caso Pedrinho. O real aqui não é apreendido como um tour de force, mas como motivador de narrativas possíveis, que inclusive jamais se deixam seduzir pela espetacularização dos pormenores do caso.
No entanto, seguindo o mesmo procedimento de Que Horas Ela Volta?, parece ainda ser inevitável à Muylaert – e, em alguma medida, até escorregadia – a tendência em reforçar o estereótipo do modo de vida da classe média. Isso é feito a partir de componentes cômicos, como a sequência da reunião com a família para tirar um selfie ou a cena em que pais biológicos sugerem uma viagem à Disney.
O filme ganha outros matizes quando se detém no protagonista Pierre/Felipe: um jovem de gênero fluido, que está experimentando as diferentes possibilidades de vivência da sexualidade, durante sua formação na adolescência. De certa forma, ele se assemelha à protagonista de Tomboy (2011), da cineasta francesa Céline Sciamma, que ganhou o prêmio Teddy há cinco anos, em Berlim, tal como Mãe Só Há Uma conquistou em 2016. Os dois filmes não só tratam do gênero pelo viés da performatividade, como também reposicionam a temática dentro do universo da infância e da adolescência, que são intransponíveis ao mundo adulto.
Em Tomboy, Laure é uma menina de 10 anos, que se apresenta como Michael para um grupo de amigos vizinhos. Ela se veste como garoto e procura se adequar aos códigos de comportamento que são esperados socialmente de um menino. Em Mãe Só Há Uma, Pierre/Felipe também vai subvertendo aos poucos os códigos que lhe são imputados: ele passa a usar vestido, batom vermelho, calcinha com cinta liga. Em ambos os filmes não há posicionamentos fechados em relação à sexualidade dos dois personagens, mas uma abertura aos cruzamentos performativos entre gêneros.
Afetada por um corpo em formação, em estado transitório, a câmera de Mãe Só Há Uma quase tateia a pele de Pierre/Felipe. Em especial nos momentos em que ele se observa diante do espelho e nas cenas em que ele se sente mais livre, nas festas noturnas ou nos ensaios com sua banda de rock.
É fundamental a mudança de operação estética da imagem, orquestrada pela fotógrafa uruguaia Barbara Alvarez. Ela se arriscou mais aqui pela fluidez formal do que no longa anterior de Muylaert, Que Horas Ela Volta?, filme enrijecido pelo rigor da composição do quadro, capaz de sublinhar as relações de poder no ambiente de trabalho da empregada doméstica Val (Regina Casé).
Apesar das motivações serem completamente distintas, é possível encontrar ressonâncias entre Pierre/Felipe, de Mãe Só Há Uma, e a Jéssica (Camila Márdila), de Que Horas Ela Volta?, na medida em que ambos os personagens desestabilizam a ordem de uma cena constituída de onde eles não pertencem. No caso de Pierre/Felipe, a casa dos pais biológicos, que insistem no bom comportamento do jovem como o filho ideal, principalmente o pai conservador Matheus (Matheus Nachtergaele). No caso de Jéssica, a casa dos patrões de sua mãe empregada, com todas as regras tácitas de uma vida burguesa.
Ao longo da narrativa, o filme nos entrega um segundo protagonista: o irmão biológico caçula Joca (Daniel Botelho), que enfrenta conflitos amorosos na sua pré-adolescência e demonstra certo desconforto com o comportamento de sua família tradicional. Se de início existe uma distância natural entre Pierre/Felipe e Joca, os dois irão se aproximar por essa sensação de deslocamento. A direção de Muylaert tem a perspicácia de não anunciar isso logo de imediato, de ir compondo aos poucos, dando grandeza a um personagem que até então parecia ser secundário.
Outra estratégia importante da direção é ter dado a uma só atriz (Dani Nefussi) o papel das duas mães: Aracy, a mãe que criou, e Glória, a mãe biológica. Ainda que o espectador não perceba (até porque a excelente caracterização das personagens procura deixá-las bem distintas), é algo que redimensiona literal e psicanaliticamente o título para além do ditado popular de que “mãe só há uma”. Estamos novamente diante de um filme de/sobre mãe, mas agora acalentado pela perspectiva de um filho que se descobre, ao mesmo tempo em que conhece seu próprio mundo.
Cartão Vermelho (1994) foi o primeiro curta-metragem de Laís Bodanzky (diretora dos longas As melhores coisas do mundo e Bicho de sete cabeças) e é um dos filmes nacionais que tratam sobre questões de gênero e relações de poder calcadas no machismo dentro do período infantil. A cineasta conta uma história composta por pré-adolescentes focando especialmente em Fernanda: o sonho dela é se tornar uma estrela do futebol brasileiro, como o Zico, ídolo da garota. Em um mundo estritamente masculino, ela não possui a “força física”, mas subverte o seu poder através da inteligência: Fernanda sabe da fraqueza masculina e se aproveita disso durante o jogo, sua mira é impecável e a bola, inevitavelmente, acaba sempre entre as pernas dos meninos. Cansados de serem acertados, os garotos decidem se vingar e daí vem toda a problemática da discussão.
Primeiro, é preciso observar o contexto em que o filme foi feito. Em 1994, menina em jogo de futebol no Brasil era um tabu muito maior do que hoje, as discussões sobre gênero eram menos problematizadas e já por esta temática, Cartão Vermelho trata de um assunto fora dos padrões da época. Além disso, a cena da vingança gera um incômodo: os meninos querem descobrir o que há por debaixo das “saias” de Fernanda. Neste ponto, a sexualidade entra como um segredo e também enquanto ponto fraco de “ser menina”. Eles a encurralam em um esconderijo e levantam sua roupa a força. A sensação é de agonia. Sentimos medo por Fernanda. Um dos garotos, após observar os órgãos genitais da menina, os desenha em uma parede explicando cada parte da vulva e da vagina, em uma espécie de cientificismo – a ciência fria e seca estaria ligada à masculinidade?
Após a explicação científica, um dos garotos continua a desenhar transformando a figura da vagina em um campo de futebol. O campo de futebol aparece, então, enquanto um campo de batalha para Fernanda. Nele, a garota se encontra, ela se identifica como atuante, protagonista, alguém que sabe o que quer e age em prol de sua vontade. Entretanto, por ser a única menina, o futebol significa também um jogo de poder, onde ela precisa negociar para existir. O curta-metragem problematiza ainda mais a temática ao inserir na narrativa aspectos como afeição e sexualidade. Afinal, é durante a pré-adolescência e a adolescência que acontecem as primeiras experiências afetivas e sexuais.
A montagem evidencia o aspecto desta época de transição. O filme é permeado por jumpcuts (cortes entre um mesmo plano), principalmente durante a movimentação de Fernanda, ao correr ou andar de bicicleta. A trilha que acompanha estas cenas é um rock e torna as sequências bem “divertidas”, elevando o aspecto moleca de Fernanda. Em contraposição, em cenas onde a garota se encontra reflexiva, ou sonhando, ou mesmo pensando em um garoto, os planos são próximos, sem trilha, a busca é por uma sensação de interioridade.
Apesar de perceber Cartão Vermelho como uma produção crítica, o curta incomodou alguns colegas que assistiram ao filme comigo, a percepção é de que haveria uma romantização da violência sexual. Isto porque, após a cena da vingança, Fernanda volta a jogar futebol como se nada tivesse acontecido, ela amarra o cadarço nas calças – uma analogia aos soldados de guerra – e entra em campo. Durante o jogo, a menina acerta a bola em Daniel, garoto que em uma das cenas comemora um gol com ela. Há uma espécie de afeição entre os dois e até então Fernanda nunca havia chutado em cima dele. O mesmo garoto aparece como “líder” do grupo, foi ele quem comandou a emboscada contra a menina. Após ter sido acertado, Daniel diz: “Deixa comigo, eu cuido”. No último plano, vemos um riso de Fernanda e assim acaba o filme.
A sequência trouxe a discussão: o curta faz uma apologia ou não a violência de gênero? Ao meu ver, apologia não. Mas coloca uma série de intercessões temáticas. Fernanda sente atração por um amigo. Ela é a única menina no grupo, sua forma de defesa é agressiva. O menino em questão é o mesmo que comanda a vingança contra Fernanda – e para isto utiliza a “união masculina” como força motriz. A sexualidade feminina é colocada enquanto segredo a ser desvendado pelos garotos. De qualquer forma, eles não podem responder as suas curiosidades por meio da afeição ou do diálogo, mas apenas pela força, pelo poder e por que não pela ciência? Já que sempre disseram que homens e mulheres têm capacidades diferentes. Todavia, Fernanda joga “como um menino”, não é mesmo? É por este motivo que os garotos ficam também tão aflitos e instigados com sua presença.
Para finalizar, Cartão Vermelho trata de um turbilhão de assuntos em menos de 15 min, são tantos os temas: a descoberta da sexualidade, relações de poder, machismo e resistência – acho que seria muito pouco traduzir o filme em “romantização da violência” – na verdade, penso que o curta questiona sobre essa romantização sob vários pontos de vista. Ela pode até ter acontecido, mas o discurso do filme não endossa a “prática” como aceitável. O resultado é um fluxo de pensamentos na cabeça do espectador.
O riso final de Fernanda é, para mim, espécie de subversão. O riso por si só é subversivo. Fernanda não ri de boba, ela ri como esperta, um riso de canto de boca. A montagem, que antes separava claramente, a Fernanda moleca da Fernanda reflexiva, em uma das últimas cenas parece juntar as duas. Ao trazer em plano próximo o rosto da menina que literalmente encara de frente mais um jogo de futebol, dessa vez o plano é acompanhado de trilha. O curta termina de forma aberta, não sabemos o que vai acontecer e isso dá margem para muitas análises.
Marina Abramòvic é uma artista performática da Sérvia que durante toda a sua carreira trouxe em seus trabalhos os limites do corpo físico dentro da performance, arte esta que utiliza o corpo e a sua relação de entrega com o presente, com o aqui e agora, de ação, contando com a presença e reação do público. Em uma de suas performances, Marina, querendo demonstrar até que ponto a sociedade pode chegar em relação a alguém completamente entregue e receptivo, apenas ficou parada e permitiu que o público interagisse com o corpo dela da forma que quisesse. Em determinado momento, uma pessoa apontou uma arma para ela.
Nos últimos anos, ela vem mostrando um vínculo cada vez mais forte de sua arte com a espiritualidade e trazendo o seguinte questionamento: “Como eu posso ajudar a despertar a consciência através da arte?”
A relação de Marina com o Brasil existe desde o final dos anos 80, logo após a performance que fez com Ulay, seu ex-marido e companheiro de performance. Ela afirma que durante o processo da performance The Lovers, na qual cada um andou de cada extremo da Muralha da China em direção um do outro, para se encontrarem, se despedirem e romperem definitivamente, ela começou a perceber que solos diferentes afetam o corpo de forma diferente. Marina começou então uma jornada pessoal e criativa em diversos lugares: viveu um período com tribos aborígenes da Austrália, depois com monges tibetanos, buscando entender o corpo como meio de tecnologia transcendental. Veio também ao Brasil buscando novas ideias a partir dos diferentes minérios e cristais que existem no solo e passou a aplicá-los em performances e instalações.
Marco Del Fiol, diretor de Espaço Além, conheceu o trabalho de Marina em uma série que passava na TV Cultura nos anos 90 sobre arte, espiritualidade e ciência, na qual ela representava a arte. Ele, que ainda não trabalhava com arte, mas tinha uma conexão com a espiritualidade, depois de um tempo passou a trabalhar com arte e documentários sobre a arte contemporânea. A performer Paula Garcia, anos depois, o convidou para registrar a visita de Marina no Brasil.
Nos últimos anos, Abramòvic visitou vários lugares de poder de diferentes regiões do Brasil, que são mostrados no filme Espaço Além, dirigido por Marco Del Fiol. São mostrados a casa de João de Deus, famoso mundialmente por curar através de sua mediunidade em Abadiânia; o Vale do Amanhecer e a sua pluralidade; a casa de Dona Flor e seu conhecimento das ervas em Altoparaíso; Rituais de Candomblé em Salvador; rituais xamânicos com ayahuasca na Chapada Diamantina e em Curitiba.
Nesses encontros, ela busca compreender o que há de comum entre o ritual e a performance. Ela conclui que o ponto em que ambos convergem é o fato de permitirem que se entre em contato com o seu Eu Maior. O momento de transe de uma incorporação e o momento em que ela, como artista, inicia uma performance é o momento em que qualquer vínculo externo de espaço e tempo se dissipam e o seu corpo se torna instrumento transformador completamente entregue ao presente. E, como de costume em todos os seus trabalhos, Marina coloca o seu próprio corpo e as suas próprias experiências para as suas criações artísticas, mas dessa vez a performance foi mergulhar nos rituais e registrar as suas próprias vivências em filme. O grande diferencial dessa em relação a todas as outras ao longo dos anos foi não focar nas ramificações físicas das sensações: ela distingue a dor física, que ela afirma que é possível lidar, da emocional, que requer rupturas profundas no espírito e constantes confrontos consigo mesma.
Jung enxerga os rituais “primitivos”, os quais Marina Abramòvic procurou nessa jornada, como uma máquina que transforma a energia vital que existe na natureza em energia psíquica, processo no qual as diferentes ritualizações através da música, da dança, das palavras e das imagens simbólicas, são formas de canalização dessas forças naturais para fins sociais. Portanto, no “homem primitivo”, a consciência seria completamente imersa nos fenômenos naturais, enquanto no “homem civilizado”, domesticado, a razão teria dominado o estado selvagem.
E é percebendo isso que Marina encontra a resposta daquela pergunta inicial de como poderia ajudar na consciência coletiva para o despertar da consciência: o que está na natureza é inerente a ela, não há o que criar, ela apenas é. O que ela vê como necessário para a arte nesse momento trazer a natureza para as grandes cidades – não apenas fisicamente, com uma arborização efetiva, por exemplo, ou representações visuais constantes – mas a sensação, a conexão com os elementos, e principalmente consigo mesmo.
São Paulo, início dos anos 80. Uma menina menstrua pela primeira vez e sonha em visitar a Califórnia. Assim começa o novo filme de Marina Person, uma história de formação com uma forte nostalgia alimentada pelo universo musical da década de 80. A atmosfera saudosista do filme, entretanto, não é pelo Brasil de outrora, mas sim por um Outro Lugar que, no caso, é representado pela costa oeste Estados Unidos que nunca vemos ao longo do filme. É uma saudade de algo que não se conhece, um simples querer estar em um lugar que não aqui.
No fundo, tudo é fuga. Estela, a protagonista, como muitos adolescentes, sente-se deslocada e reprimida pelo pai conservador. Para Estela, a Califórnia é o tio gay, subversivo, irreverente, a Califórnia é o rock, rebelde, a música das pessoas que não se encaixam. É um baque enorme, então, quando o tio volta pro Brasil, doente, derrotado. A AIDS representa muito mais que uma doença, é um perigo que se corre quando fogem-se às regras.
Aqui, permita-me fazer um pequeno e infame jogo de palavras, chegamos à grande fuga do filme: as regras (menstruais). A menarca significa, em muitas culturas, a entrada da mulher na vida adulta e não é à toa que o filme comece com a visão da calcinha suja de sangue de Estela dois anos antes dos acontecimentos do resto do filme. Não sabemos o que acontece com Estela no tempo entre sua primeira menstruação e seus 17 anos, mas ao a reencontramos, não vemos uma adulta. Fica clara a intenção de Person de diferenciar o que marca a maturação de uma mulher para o mundo e o que é de fato essa maturação – um caminho complexo que não pode ser resumido a processos biológicos. Quando vemos Estela aos 17 anos ainda no começo do filme, vemos uma criança. Seus pais não conversam abertamente com ela, ela está passando pelas tribulações de um primeiro amor, e ela eventualmente descobre que não está pronta para começar sua vida sexual.
Clara Gallo e Caio Horowicz
A adolescência é uma fase confusa e contraditória, ao mesmo tempo que Estela não se sente preparada para encarar a vida adulta, ela deseja a liberdade que ela proporciona desesperadamente. Tio Carlos, ao ir para os Estados Unidos, fugia do que era ser um homem gay no Brasil durante a ditadura militar, mas a realidade bate à porta de todos, e, no final, ele tem de retornar. Estela, também, não pode continuar a sonhar com o Outro Lugar.
Ao longo da história, nossa jovem protagonista tem que encarar suas próprias transformações. Decepções amorosas, livros complexos, uma viagem para a praia, a doença e morte do tio fazem parte da sua jornada de maturação. Ao final, vemos enfim uma mulher capaz de tomar decisões sobre seu próprio corpo, fechando um ciclo. No começo, tínhamos uma menina sonhando em encontrar o tio na Califórnia, no final, uma mulher que troca cartas com um amante na Índia. Ela ainda está no mesmo lugar, no Brasil, se correspondendo com homens em fuga, mas a ditadura militar está chegando ao fim, ela é uma mulher adulta e está preparada para ficar.
A intimidade é o tema central dos filmes de André Novais, cineasta mineiro, diretor dos curtas-metragens Fantasmas, 2010, e Pouco mais de um mês, 2013. Em Ela volta na quinta, 2014, não é diferente. Novais apreende o cotidiano doméstico de Noberto e Maria José, um casal de idosos com dificuldades em se relacionar após 35 anos juntos. A trama ficcional, no entanto, com personagens reais – quem atua é a própria família do diretor – nos surpreende ao levantar discussões para além da linguagem cinematográfica. O fim de um relacionamento de anos, a dificuldade de seguir os sonhos, o sentimento de apego, a velhice, as questões sociais e tantos outros temas elevam a qualidade de Ela volta na quinta, que deixa de ser apenas uma obra experimental para se tornar um ensaio sensível sobre a vida cotidiana. Sem megalomania ou “grandes dramas”, o longa retrata nada mais do que a vida doméstica e íntima, ela própria digna de poesia.
É nas minúcias que André encontra o inteligível: em um diálogo com o irmão em que mostra um vídeo engraçado no YouTube ou na trajetória de trabalho do pai ao deixar cair uma geladeira já quebrada que deveria ser levada para o conserto. Em situações tão específicas, pontuais, irrisórias se acessa o espectador de forma terna – nos sentimos parte da situação dando boas risadas. Em contraponto, também podemos nos emocionar com o diálogo sobre sonhos e capacidade de realização dos mesmos entre a mãe e André, enquanto o diretor tira a pressão da genitora. Neste ponto, Novais opta por um recurso bastante utilizado durante o filme: a ausência de plano e contra-plano, deixando a câmera fixa e próxima ao rosto de Maria. Quando vi o filme pela primeira vez no Festival de Brasília em 2014, chorei ao assistir essa cena. São diálogos comuns; eu diria, até banais – e é justamente por isso que têm a capacidade enorme de acesso ao espectador. Todo o banal é poético. Relembro o Manifesto de Poesia escrito por Pasolini que discutia a presença de poesia no cinema; neste manifesto, entre vários apontamentos sobre discurso e linguagem cinematográfica, Pasolini discute sobre a imersão do autor na alma da sua personagem e que seria necessário não só a adoção da psicologia como da língua dessa personagem. Nesse sentido, o longa que mistura personagens reais que vivem uma ficção ganha vários pontos em noção de poesia. Ali todos falam a mesma língua. Nem podemos dizer que os “personagens foram bem construídos”, como comumente fazemos ao criticar obras cinematográficas. Afinal, todos aqueles personagens “estão se construindo”, eles são reais, participam de um devir que acompanhamos durante a narrativa. A ausência do contraplano, os planos fixos e contemplativos nos aproximam desses personagens de forma substancial. Os diálogos ordinários colocados criam simultaneamente sensações de distanciamento e proximidade que nos deixam em estado de fascínio, sem saber muito bem o que pensar sobre a obra.
Recentemente debrucei-me sobre um projeto que envolvia aspectos dos relacionamentos e da velhice na vida afetiva. Cheguei a conclusão um tanto simplista, porém realista. A vida seria dividida em três partes: envelhecer, construir nós e desatar nós. Além de Simone de Beauvoir, que escreveu A Velhice, e de tantos outros escritores, filmes como Ela volta na quinta me ajudaram bastante a pensar sobre os aspectos que envolvem o envelhecimento e principalmente o sentido do amor nesse período da vida. É muito difícil falar sobre o amor. Há quem diga que a melhor forma de falar sobre ele é não tocando em seu nome, mas exemplificando, metaforizando – sem teorizar. É exatamente isso que Novais faz em seu primeiro longa. Um casal de idosos que pretende se separar pois já não conseguem mais estabelecer um diálogo. Não vemos barracos, tão pouco um grande drama. Mais que isso, vemos situações comuns. O casamento desgastado, os filhos adultos, um relacionamento extra-conjugal e as dificuldades impostas naturalmente, mas também, socialmente quando o assunto é velhice, principalmente em relação à mulher. Enquanto Maria sofre de ataques de pressão alta, Noberto, que aparentemente é um bom pai e um bom marido, mantém uma relação fora do casamento – ao passo que não assume e não toma nenhuma posição, aguardando Maria agir de alguma forma. Cansada de esperar, ela resolve ir a uma excursão em Aparecida do Norte, da qual só volta na quinta-feira – daí o nome do filme.
Os filhos estão preocupados com o casamento dos pais, mas não interferem, afinal, eles já têm seus próprios problemas. André não sabe onde morar com a namorada, a falta de dinheiro é empecilho para alugar um apartamento no centro de Belo Horizonte. Renato quer ter um filho com a namorada, mas os dois ainda não têm casa e “nem mesmo são casados”. A cama é o lugar de conversa central dos personagens, todos eles conversam em cima dela com seus respectivos parceiros amorosos. Normalmente, as conversas estão em busca de decidir ações para mudar a vida destes personagens. Entendo a cama como um divã, um espaço ao qual os personagens estão livres para se expressar e tomar decisões conjuntas. Os diálogos ficam no nível da discussão e não alcançam o tom de briga. O sotaque mineiro carregado também nos traz uma noção de intimidade, ele é contraposto, no entanto, com a paisagem urbana e concreta da periferia de Minas Gerais.
Enquanto a vida dos filhos segue, Noberto aproveita para visitar a sua outra parceira, uma moça mais nova que ele. Ela decide terminar o relacionamento e mais uma vez o lugar de confissão é a cama. Noberto não encara bem a notícia, mas não briga, lamenta pela o distanciamento com a filha da mulher – que não sabemos se é ou não filha também de Noberto. Nesta cena, a utilização de não atores dá um tom especial ao diálogo que se torna triste, pois trata-se de um fim, mas ao mesmo tempo cômico. Silêncios constrangedores que costumam aparecer em conversas, mas não aparecem nos filmes, neste filme eles aparecem e nos mostram como somos incapazes de ser completamente naturais dadas as regras de sociabilidade e civilização.
Maria volta da sua viagem decidida a se separar, em diálogo com a amiga, admite saber do relacionamento extraconjugal do marido. Ao voltar para casa, reclama do teto que o marido não arrumou – aqui podemos entender como uma metáfora, Noberto ainda não agiu – ela ainda não menciona sua decisão sobre o divórcio. Caminhando pela rua, mais uma queda de pressão. Nos planos seguintes, Noberto canta uma música de amor no carro, logo depois família assiste um jogo de futebol sem a presença da matriarca.
Ela volta na quinta fala sobretudo de amor, o amor íntimo que se transforma, sobre a necessidade de se reapaixonar a cada instante. Através desse longa, Novais nos mostra que o amor é uma aceitação cotidiana do que somos frente ao outro. Envelhecer junto é compreender a mudança do ser amado como uma nova possiblidade de relação. O amor é possível, é banal, é íntimo e está em cada instante: em um diálogo engraçado com o irmão, ou ao tirar a pressão da mãe, mas também em dançar Roberto Carlos na sala de casa.
Muito se falou sobre como Boi Neon, o mais recente filme do diretor pernambucano Gabriel Mascaro, desfaz estereótipos de gênero e sobre como mostra um nordeste pop, um nordeste moderno e ousado, distante de clichês sobre o sertão brasileiro. É verdade: as cores fluorescentes e os dourados e os vermelhos intensos que enchem a tela do cinema nos remetem a um nordeste que a gente conhece, sabe que existe, mas não costuma ver retratado em arte, ou ao menos não na arte que mais apetece parte da classe média brasileira. Mas isso está mudando. Esperemos que mude de forma a não gentrificar as músicas e cenários e vivências para burguês ver. Quando assisto alguns dos filmes brasileiros contemporâneos que ressignificam essas experiências, esse é um debate que retorna à cabeça.
A questão de gênero permeia o filme todo e interessa que um dos caras tenha um cabelo longo e o outro goste de desenhar roupas ao ponto de desenhá-las por cima do nu da foto pornográfica de revista. Interessa que a mãe seja uma mãe da vida real, que de vez em quando se irrita com a criança e que possui vida própria. Interessa que a menina se interesse pelos animais e prefira ficar “perto de bosta de cavalo” a ficar com a mãe na cozinha. Não chega a ser tão questionador como alguns de seus outros filmes, mas importa pois além de tornar o filme mais rico, os personagens mais complexos e tridimensionais, acrescenta aos sinais que se acumulam nas entrelinhas.
Mascaro parece estar interessado em mostrar os animais. O boi, a vaca, o cavalo. Boa parte dos planos do filme nos presenteiam com essas imagens: é o gado confinado entre grades em um caminhão, andando pelo cerco estreito, sendo preso e irritado antes da vaquejada, sendo violentado na vaquejada. São os animais sempre entre pedaços de madeira, de ferro, entrando, ficando presos, até que um humano abre a porta. São os cavalos se reproduzindo, o preço do sêmen de cavalo de raça. Reprodução, alimentação, morte. Todo o ciclo de vida desses animais está ali, enquanto Iremar (Juliano Cazarré) e Junior (Vinícius de Oliveira) conversam, enquanto a vendedora de perfumes aparece, enquanto Galega transa na calada da noite.
Outra recorrência no filme são justamente as imagens que remetem a sexualidade dos corpos. Seja Galega (Maeve Jinkings) dançando em uma boate cheia de homens que parecem completamente enlouquecidos por ela, seja ela flertando com um vendedor de calcinhas ou Iremar abrindo uma revista pornô melecada de porra; até as cenas de sexo de fato. Uma delas, com os bois ao fundo, mugindo. O que Mascaro quer dizer?
Saí do filme pensando nas artificialidades que impomos aos animais e como impomos isso a nós mesmos, a nossa própria espécie. Temos nosso próprio cerco, nossos próprios estereótipos, nossa própria ideia de reprodução, de homem e mulher, que sentimos que devemos seguir. Ninguém fecha a porteira de madeira na nossa frente para que a gente não avance, ou, ao menos, não exatamente. Mas a gente não avança, pois aprendeu bem.
Eis que, em Boi Neon, os personagens avançam. E em uma cena de dez minutos cuidadosamente capturada, de iluminação e mise-en-scéne impecáveis, Iremar transa com Geise, uma mulher grávida, longamente, até que ela goza e ele também. Importante: ela está grávida. Importante: ela goza.
O gado não merece o cerco de utilitarismo que colocamos ao redor dele.
Nós também não.
O primeiro longa-metragem realizado pelos jovens cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, da produtora gaúcha Avante Filmes, estreou no Brasil no começo de novembro, mas já despertava interesse internacional, devido à forte presença em festivais LGBT, no Festival de Berlim e ao streaming disponibilizado pelo Netflix americano e canadense.
“Beira-Mar” acompanha os adolescentes Martin e Tomaz em uma viagem ao litoral gaúcho para resolver uma pendência familiar de Martin em nome de seu pai, figura distante que exerce papel repressivo na vida do filho – e que em sua aparição, está de costas e fora de foco, presente através de uma voz que apenas dá as ordens, não se interessa e não se conecta com o rapaz. O jovem Tomaz, por outro lado, é o amigo fiel que gravita em torno do cara mais popular e supostamente mais “experiente”, impressões que na adolescência cosmopolita passam constantemente pelo consumo de álcool, drogas e pela desenvoltura sexual que eles pensam ter, conforme acabam descobrindo depois.
A partir daqui há algumas revelações sobre o enredo do filme.
O começo do filme é interessante ao sugerir que a viagem dos dois amigos irá provocar descobertas afetivas e sexuais (sugeridas sem muita sutileza numa cena em que eles jogam videogame, e com pouco mais de poesia através dos desenhos de Tomaz). Entretanto, o prólogo logo dá lugar a alguns episódios com pouca força e regularidade, como os momentos em que Martin se encontra com os parentes distantes e tem que encarar o fato de que seu pai decepcionou a todos. Tais encontros parecem vazios e a interação peca pelo excesso de estranhamento, que não se rompe, nem mesmo quando esposa do avô divide um chimarrão com Martin. O desenvolvimento precário desse plot torna difícil acreditar na rapidez das conclusões do rapaz ao final, a respeito da própria necessidade de amadurecer e que “lado” gostaria de estar, no imbróglio familiar.
O uso do “voice over” para nos aproximar das novas ideias do jovem causam estranhamento em relação ao restante da obra, e parece que o recurso foi usado unicamente porque seria impossível desvendar todas as conclusões do adolescente apenas pelo que é mostrado no filme. Será que era necessário mastigar tudo o que Martin viveu ao final de “Beira-Mar”, quando a própria estética e caminhar do longa-metragem apostam no silêncio, na contemplação e na confusão presente na mente dos garotos, sugerida por ecos do barulho do mar?
Se o desenvolvimento de Martin se dá com irregularidade, ao menos a presença de Tomaz traz substância ao filme. A princípio um jovem discreto que acompanha o amigo em sua saga, colocando-se em segundo plano, Tomaz cresce ao longo da história ao demonstrar sua fidelidade e compreensão, e ao quebrar a expectativa de que seria ele o “inexperiente”, devido à aparência mais delicada e aos indícios de sua homossexualidade. No entanto, como se demonstra através da música do grupo NoPorn e seu refrão “eu sei quem eu sou”, Tomaz é mais consciente de sua sexualidade e afetividade, e é comovente a cena em que Martin reconhece que o amigo é “foda”, por sua generosidade em colocar de lado os próprios dramas em favor de Martin.
Quando fica claro, então, que Tomaz é quem sabe o que quer, as referências se invertem, e é bonito notar que Martin só é capaz de se entregar ao amigo quando confessa sua inexperiência e vulnerabilidade, desviando-se do exemplo de “masculinidade” representado pelo pai, com sua distância, frieza e despreocupação em criar com o filho um vínculo baseado na confiança, e não no poder. Tomaz representa a possibilidade do inverso. Seguindo exemplo de “Os incompreendidos”, de Truffaut, e também do nacional “Praia do Futuro”, de Karim Aïnouz, o encontro de Martin com o mar (tão adorado pelo cinema) indica que descobrir algo sobre si, de maneira verdadeira, torna os caminhos anteriores impossíveis. Atravessar as águas surge como a única e imperiosa alternativa.
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Uma bonita curiosidade sobre o processo de criação do filme: quando eram colegas do curso de cinema, os diretores descobriram que haviam frequentado a mesma praia do litoral gaúcho durante a adolescência. As memórias da época e suas próprias experiências serviram de inspiração para a criação de “Beira-Mar”.
O primeiro longa-metragem exibido na Mostra Competitiva do 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi “A Família Dionti”, produção do Rio de Janeiro, dirigido e escrito por Alan Minas. No filme, conhecemos a família do título, que vive em uma pequena casa no interior de Minas Gerais: um pai (Josué) e seus dois filhos, Kelton e Serino. A mãe dos garotos desapareceu em circunstâncias misteriosas.
Desde o início, o filme tenta estabelecer um universo com algo sertanejo, algo fantástico, em que as pessoas falam de maneira poética, em que pessoas se transformam em flores, ou ficam “desmilinguidas”. O diretor Alan Minas mencionou a inspiração em Guimarães Rosa e Manoel de Barros, mas há outra referência mais latente: a presença de uma família mágica e marcada por signos que atravessam o tempo e se repetem, tal como a família Buendía de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez.
Em certos momentos, muito devido à montagem descompassada, o desenrolar da história acontece aos tropeços. Na ânsia de introduzir logo o fantástico, a história tem início pouco natural. No entanto, o ótimo desempenho dos atores, mesmo tendo de segurar diálogos caricatos, leva o filme para frente e o torna transparente em certo momento.
A família composta por um homem e dois meninos mostra-se suave, leve e distante do que se espera do contexto do sertão. Em nenhum momento o pai pede dos filhos que sejam o que não querem ser, e é positivo ver que o signo da mudança do filme está presente através das mulheres. A mãe dos garotos é sempre lembrada como alguém que não podia ficar para sempre no mesmo lugar, e afinal se tornou água e foi embora. A menina que chega com o circo desperta o amor no jovem Kelson e transforma sua vida, tornando-o igual à sua mãe. A jovem encarna uma típica personagem “garota-interessante-e-diferente-que-vem-mudar-o-cara”, mas novamente o desempenho da atriz faz Sofia uma personagem encantadora, que não teme o desconhecido e que sabe, antes mesmo de Kelson, que tudo que é livre corre, que a mudança não é somente inevitável, mas pode ser preferível.
Ao passo que Serino e seu pai, que carregam o signo da terra, tem que aprender a deixar que as pessoas partam. A simplicidade e a delicadeza da história acabam por “maquiar” os problemas rítmicos do longa-metragem. O pouco aprofundamento dos temas propostos (amadurecimento, mudança) e a pouca sutileza são escolhas que aparentemente servem para tornar a obra palatável para um público mais infantil (ou infantilizado). Em alguns outros anos do Festival de Brasília, certamente seria um filme um tanto perdido. Na seleção “eclética” deste ano, no entanto, ele cumpre o papel de filme mais “acessível” (com toda a problemática que esse termo pode trazer). Acabou por vencer na categoria Júri Popular.