Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Bárbara Cabral

Realizadora e colaboradora do Verberenas desde março de 2016.

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O CAMPO DE BATALHA DOS AFETOS E DA SEXUALIDADE: CARTÃO VERMELHO

Cartão Vermelho (1994) foi o primeiro curta-metragem de Laís Bodanzky (diretora dos longas As melhores coisas do mundo e Bicho de sete cabeças) e é um dos filmes nacionais que tratam sobre questões de gênero e relações de poder calcadas no machismo dentro do período infantil. A cineasta conta uma história composta por pré-adolescentes focando especialmente em Fernanda: o sonho dela é se tornar uma estrela do futebol brasileiro, como o Zico, ídolo da garota. Em um mundo estritamente masculino, ela não possui a “força física”, mas subverte o seu poder através da inteligência: Fernanda sabe da fraqueza masculina e se aproveita disso durante o jogo, sua mira é impecável e a bola, inevitavelmente, acaba sempre entre as pernas dos meninos. Cansados de serem acertados, os garotos decidem se vingar e daí vem toda a problemática da discussão.

Primeiro, é preciso observar o contexto em que o filme foi feito. Em 1994, menina em jogo de futebol no Brasil era um tabu muito maior do que hoje, as discussões sobre gênero eram menos problematizadas e já por esta temática, Cartão Vermelho trata de um assunto fora dos padrões da época. Além disso, a cena da vingança gera um incômodo: os meninos querem descobrir o que há por debaixo das “saias” de Fernanda. Neste ponto, a sexualidade entra como um segredo e também enquanto ponto fraco de “ser menina”. Eles a encurralam em um esconderijo e levantam sua roupa a força. A sensação é de agonia. Sentimos medo por Fernanda. Um dos garotos, após observar os órgãos genitais da menina, os desenha em uma parede explicando cada parte da vulva e da vagina, em uma espécie de cientificismo – a ciência fria e seca estaria ligada à masculinidade?

Após a explicação científica, um dos garotos continua a desenhar transformando a figura da vagina em um campo de futebol. O campo de futebol aparece, então, enquanto um campo de batalha para Fernanda. Nele, a garota se encontra, ela se identifica como atuante, protagonista, alguém que sabe o que quer e age em prol de sua vontade. Entretanto, por ser a única menina, o futebol significa também um jogo de poder, onde ela precisa negociar para existir. O curta-metragem problematiza ainda mais a temática ao inserir na narrativa aspectos como afeição e sexualidade. Afinal, é durante a pré-adolescência e a adolescência que acontecem as primeiras experiências afetivas e sexuais.

A montagem evidencia o aspecto desta época de transição. O filme é permeado por jumpcuts (cortes entre um mesmo plano), principalmente durante a movimentação de Fernanda, ao correr ou andar de bicicleta. A trilha que acompanha estas cenas é um rock e torna as sequências bem “divertidas”, elevando o aspecto moleca de Fernanda. Em contraposição, em cenas onde a garota se encontra reflexiva, ou sonhando, ou mesmo pensando em um garoto, os planos são próximos, sem trilha, a busca é por uma sensação de interioridade.

Apesar de perceber Cartão Vermelho como uma produção crítica, o curta incomodou alguns colegas que assistiram ao filme comigo, a percepção é de que haveria uma romantização da violência sexual. Isto porque, após a cena da vingança, Fernanda volta a jogar futebol como se nada tivesse acontecido, ela amarra o cadarço nas calças – uma analogia aos soldados de guerra – e entra em campo. Durante o jogo, a menina acerta a bola em Daniel, garoto que em uma das cenas comemora um gol com ela. Há uma espécie de afeição entre os dois e até então Fernanda nunca havia chutado em cima dele. O mesmo garoto aparece como “líder” do grupo, foi ele quem comandou a emboscada contra a menina. Após ter sido acertado, Daniel diz: “Deixa comigo, eu cuido”. No último plano, vemos um riso de Fernanda e assim acaba o filme.

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A sequência trouxe a discussão: o curta faz uma apologia ou não a violência de gênero? Ao meu ver, apologia não. Mas coloca uma série de intercessões temáticas. Fernanda sente atração por um amigo. Ela é a única menina no grupo, sua forma de defesa é agressiva. O menino em questão é o mesmo que comanda a vingança contra Fernanda – e para isto utiliza a “união masculina” como força motriz.  A sexualidade feminina é colocada enquanto segredo a ser desvendado pelos garotos. De qualquer forma, eles não podem responder as suas curiosidades por meio da afeição ou do diálogo, mas apenas pela força, pelo poder e por que não pela ciência? Já que sempre disseram que homens e mulheres têm capacidades diferentes. Todavia, Fernanda joga “como um menino”, não é mesmo? É por este motivo que os garotos ficam também tão aflitos e instigados com sua presença.

Para finalizar, Cartão Vermelho trata de um turbilhão de assuntos em menos de 15 min, são tantos os temas: a descoberta da sexualidade, relações de poder, machismo e resistência – acho que seria muito pouco traduzir o filme em “romantização da violência” – na verdade, penso que o curta questiona sobre essa romantização sob vários pontos de vista. Ela pode até ter acontecido, mas o discurso do filme não endossa a “prática” como aceitável. O resultado é um fluxo de pensamentos na cabeça do espectador.

O riso final de Fernanda é, para mim, espécie de subversão. O riso por si só é subversivo. Fernanda não ri de boba, ela ri como esperta, um riso de canto de boca.  A montagem, que antes separava claramente, a Fernanda moleca da Fernanda reflexiva, em uma das últimas cenas parece juntar as duas. Ao trazer em plano próximo o rosto da menina que literalmente encara de frente mais um jogo de futebol, dessa vez o plano é acompanhado de trilha. O curta termina de forma aberta, não sabemos o que vai acontecer e isso dá margem para muitas análises.

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