Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

NOTAS SOBRE INTRIGAS FEMININAS

O termo sororidade tem sido muito utilizado nas discussões e rodas feministas dos últimos anos. Uso a palavra aqui no sentido de solidariedade entre mulheres em relação à opressão masculina e a experiência vivida em culturas patriarcais, sem cair, entretanto, na ideia de que existe um sentimento “natural” de amizade entre mulheres. Enquanto os papéis de gênero aproximam a noção de disputa amorosa a rivalidade feminina, a empatia entre mulheres pode ser um artificio para desconstrução do patriarcado. Estereótipos que reforçam os papéis de gênero ao invés de subvertê-los foram, por vezes, representados no cinema nacional e internacional. Trago aqui alguns exemplos da representação da complexa relação entre mulheres que oscilam entre a solidariedade e a rivalidade no cinema brasileiro contemporâneo.

O documentário A falta que me faz da diretora Marília Rocha apresenta a história de quatro jovens (Alessandra, Valdênia, Priscila e Shirlene) que habitam o município de Curralinho, Minas Gerais. É uma narrativa sobre afetos e sobre as marcas que eles deixam não só na alma, como também nos corpos, no ambiente, na vida que circunda os indivíduos afetados.

A narrativa se inicia com uma das meninas marcando em seu corpo o nome do namorado. A temática amorosa irá permanecer durante boa parte do filme e, principalmente, durante a cena emblemática de Priscila ao contar que Valdênia tinha lhe traído ao ficar com seu namorado.

Marília (diretora): Priscila, da outra vez que a gente veio aqui, a Valdênnia falou que você era a melhor amiga dela

Priscila: Agora acabou, ela traiu minha confiança.

Enquanto conta o acontecido, Priscila arremessa pedras no lago, no extracampo, não dá para saber até onde elas chegam, talvez uma metáfora para a relação da personagem com a amiga: não sabemos de fato como elas se relacionam. No começo do relato, Priscila fala em traição, mas depois diz que tudo acabou se resolvendo e as duas voltaram a se falar. O plano que antecede (caminhando) e o plano que sucede (água) o relato de Priscila destacam o ponto de reflexão de um conflito que depois de solucionado desagua na submersa complexidade dos afetos.

Quando Priscila finda o relato sobre as imbricações amorosas dela e de Valdênia (Priscila também ficou com o ex-namorado da amiga), ela inicia uma reflexão sobre o casamento e como são poucos os horizontes para as mulheres daquela realidade: casar e ter filhos. Priscila acredita que casamento não dá certo, muito menos casamento por amor, é mais interessante “casar por conveniência”.

Ao relatar a traição da amiga, Priscila logo faz o mea culpa e, ao invés de se colocar em um papel de vítima, ela complexifica a relação de amizade das duas. Ao falar do casamento, Priscila reflete sobre a realidade comum das mulheres daquele lugar.

   

No longa mais recente da mesma diretora Marília Rocha, A cidade onde envelheço, premiado no 49º Festival de Brasília, vemos também outra relação de amizade entre mulheres. Duas portuguesas imigrantes no Brasil. “A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa. Nesta produção, não vemos intrigas amorosas entre as amigas, mas conflitos cotidianos pela diferença de personalidade das duas em contraposição a sua nacionalidade. São pedaços de vida retratados em um longa que preza pelo o retrato da intimidade e do cotidiano como construção das relações de amizade.

Em Amor, plástico e barulho as protagonistas também possuem algo em comum: o sonho de se tornar estrelas do brega no Brasil. Para contar esta história, Renata Pinheiro não só se apropria da estética do brega, repleta de cores, sons e dança, mas bem como das histórias “por trás da fama”.

Jaqueline (Maeve Jinkings) e Shelly (Nash Laila) são cantoras na cidade de Recife (PE), a primeira com mais experiência, já Shelly acaba de iniciar a carreira como dançarina na Banda Amor com Veneno. A relação das duas personagens transita entre a rivalidade e a admiração. Shelly enxerga em Jaqueline sua inspiração e por isso deve traçar o mesmo caminho que a musa, inclusive namorando com o ex de Jaque, o cantor famoso da banda Amor com Mel.

A produção reflete sobre a lógica da fama. Jaqueline compara o sucesso com um “copo de plástico”: descartável e efêmero. Neste meio, as mulheres “servem” para ser musas – motivo da música – ou dançarinas – corpos que rebolam, no mais, tornam-se descartáveis, como o próprio sucesso do qual Jaqueline fala.

Entre as intrigas e a admiração, tanto Jaqueline como Shelly reconhecem seus defeitos e suas agruras. Presas no campo da “afetividade feminina”, elas se consolam bebendo e dançando juntas.

No filme de André Novais, Ela volta na quinta há uma abordagem mais comum desta rivalidade. Maria José e Noberto passam por uma crise no casamento. O conflito, no entanto, não é exposto, ele é colocado sempre nas entrelinhas. A interpretação não é nenhum pouco melodramática, mas naturalista. Não à toa, Novais utiliza a própria família para encenar um drama ficcional. Noberto tem um relacionamento extraconjugal, Maria descobre, mas tão pouco se desespera – ao contrário de Amor, plástico e barulho, aqui a estética não é do excesso, mas do sutil. Maria resolve fazer uma viagem e só volta na quinta-feira, fato que dá título ao filme.

O sentimento de raiva de Maria se volta mais contra a outra companheira de Noberto do que contra ele próprio. É interessante observar uma senhora idosa como Maria chamar uma outra mulher de ‘vadia’, denotando o ciúme em relação ao marido que ela jamais demonstra, no entanto, sente.

Esta rivalidade entre as mulheres ocasionada pelo ciúme é menos problematizada no filme de Novais, que apesar de abordar os afetos em seu estado poético cotidiano, re-apresenta uma visão recorrente em relação a disputa feminina. Percebe-se que a personagem de Maria é sensível, forte e interessante, entretanto acaba por ser minada pelos conflitos de Noberto, que seriam “mais importantes” dentro da trama, reforçando uma perspectiva patriarcal dos relacionamentos.

SORORIDADE E LARICA: BROAD CITY

Fevereiro traz de volta Ilana e Abbi para a Comedy Central na forma da terceira temporada de Broad City, e, se o vídeo promocional da série nos informa de uma coisa, é que a ridícula, brilhante amizade entre elas continua a mesma. Vestidas como boxeadoras, as duas imitam o famoso smack talk anterior a luta, em que os participantes se xingam e quase partem para cima do outro. Mas o que ouvimos são coisas como “eu estou olhando você de frente, mas sei que sua bunda é perfeita” e “por que você está usando esse casaco fofo se todos sabemos que debaixo seus peitos são lindos?” e só o fato de elas estarem sendo barradas por seguranças as impedem de pular nos braços uma da outra.

As comparações são inescapáveis, o enfoque em personagens femininas e a amizade entre elas com Nova York como plano de fundo nos leva naturalmente a pensar em outras séries com essa proposta como Sex and the City e Girls. No entanto, a Nova York de Ilana e Abbi é bem diferente de qualquer coisa que vimos antes com Carrie Bradshaw ou Hannah Horvath. As duas protagonistas judias convivem diariamente com uma miríade de personagens diversos e comicamente reais enquanto exploram seus empregos medíocres, um gosto duvidoso para roupas, colegas de quarto insuportáveis, sexo – de fato – casual, muita maconha, e, o mais importante de tudo, a sua adoração compartilhada uma pela outra. A originalidade de Broad City está, por falta de palavra melhor, no amor entre suas protagonistas.

É revigorante assistir a uma série em que a amizade entre mulheres não é retratada como uma sucessão de episódios ambíguos em que a malícia e o afeto se confundem numa paródia de uma relação saudável. Ao invés disso, vemos duas jovens mulheres cuja amizade é fundamental e necessária em seu cotidiano, mais ainda do que qualquer romance que uma das duas venha a ter. Sim, amizades tóxicas que vemos representadas em tantas séries e filmes existem, é claro, mas a representação contínua da competitividade entre mulheres não é só cansativa como também datada. Com tantas discussões sobre sororidade e suporte feminino, Ilana e Abbi chegaram em um momento em que a sede por histórias indubitavelmente positivas sobre amizade feminina tornou a criação de Broad City oportuna e necessária.

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Depois de duas temporadas aclamadas pela crítica, o que esperar da terceira? Bom, já falamos da amizade inabalável das duas, entretanto, outros aspectos permaneceram igualmente constantes nas duas primeiras temporadas. Elas ainda trabalham nos mesmos lugares, vivem com as mesmas pessoas e têm os mesmos não-namorados (Lincoln, te amo!), logo, não seria de se estranhar se a série logo se tornasse repetitiva e entediante como outros sitcoms que não conseguiram evoluir depois de um início promissor. Mas isso não acontece.

Broad City consegue se manter tão cômica quanto no início em primeiro lugar por não se encaixar como sitcom, já que o seu humor stoner/nonsense não configura nesse gênero já exaurido. Em segundo lugar, porque o sucesso da série não envolve tanto a vida cotidiana da dupla quanto as situações inusitadas em que elas se envolvem e mais importante: os personagens recorrentes. Assim como The Office e Shameless US, boa parte do envolvimento emocional do espectador vem do conhecimento prévio dos personagens. Isso explica por que o piloto da série pode parecer sem sentido – até mesmo absurdo – para um espectador desavisado, mas conforme somos apresentados às idiossincrasias e particularidades de Ilana, Abbi, Lincoln, Bevers e Jaime, a série se torna cada vez mais cativante assim como eles. Nos sentimos próximos desse círculo de pessoas pois estamos por dentro da piada interna. Na primeira cena da nova temporada, vemos Ilana e Abbi em seus respectivos banheiros em diversas situações íntimas e sabemos de cara que esse relacionamento – nós e a série – só vai se aprofundar.