Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Bárbara Cabral

Realizadora e colaboradora do Verberenas desde março de 2016.

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NOTAS SOBRE INTRIGAS FEMININAS

O termo sororidade tem sido muito utilizado nas discussões e rodas feministas dos últimos anos. Uso a palavra aqui no sentido de solidariedade entre mulheres em relação à opressão masculina e a experiência vivida em culturas patriarcais, sem cair, entretanto, na ideia de que existe um sentimento “natural” de amizade entre mulheres. Enquanto os papéis de gênero aproximam a noção de disputa amorosa a rivalidade feminina, a empatia entre mulheres pode ser um artificio para desconstrução do patriarcado. Estereótipos que reforçam os papéis de gênero ao invés de subvertê-los foram, por vezes, representados no cinema nacional e internacional. Trago aqui alguns exemplos da representação da complexa relação entre mulheres que oscilam entre a solidariedade e a rivalidade no cinema brasileiro contemporâneo.

O documentário A falta que me faz da diretora Marília Rocha apresenta a história de quatro jovens (Alessandra, Valdênia, Priscila e Shirlene) que habitam o município de Curralinho, Minas Gerais. É uma narrativa sobre afetos e sobre as marcas que eles deixam não só na alma, como também nos corpos, no ambiente, na vida que circunda os indivíduos afetados.

A narrativa se inicia com uma das meninas marcando em seu corpo o nome do namorado. A temática amorosa irá permanecer durante boa parte do filme e, principalmente, durante a cena emblemática de Priscila ao contar que Valdênia tinha lhe traído ao ficar com seu namorado.

Marília (diretora): Priscila, da outra vez que a gente veio aqui, a Valdênnia falou que você era a melhor amiga dela

Priscila: Agora acabou, ela traiu minha confiança.

Enquanto conta o acontecido, Priscila arremessa pedras no lago, no extracampo, não dá para saber até onde elas chegam, talvez uma metáfora para a relação da personagem com a amiga: não sabemos de fato como elas se relacionam. No começo do relato, Priscila fala em traição, mas depois diz que tudo acabou se resolvendo e as duas voltaram a se falar. O plano que antecede (caminhando) e o plano que sucede (água) o relato de Priscila destacam o ponto de reflexão de um conflito que depois de solucionado desagua na submersa complexidade dos afetos.

Quando Priscila finda o relato sobre as imbricações amorosas dela e de Valdênia (Priscila também ficou com o ex-namorado da amiga), ela inicia uma reflexão sobre o casamento e como são poucos os horizontes para as mulheres daquela realidade: casar e ter filhos. Priscila acredita que casamento não dá certo, muito menos casamento por amor, é mais interessante “casar por conveniência”.

Ao relatar a traição da amiga, Priscila logo faz o mea culpa e, ao invés de se colocar em um papel de vítima, ela complexifica a relação de amizade das duas. Ao falar do casamento, Priscila reflete sobre a realidade comum das mulheres daquele lugar.

   

No longa mais recente da mesma diretora Marília Rocha, A cidade onde envelheço, premiado no 49º Festival de Brasília, vemos também outra relação de amizade entre mulheres. Duas portuguesas imigrantes no Brasil. “A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa. Nesta produção, não vemos intrigas amorosas entre as amigas, mas conflitos cotidianos pela diferença de personalidade das duas em contraposição a sua nacionalidade. São pedaços de vida retratados em um longa que preza pelo o retrato da intimidade e do cotidiano como construção das relações de amizade.

Em Amor, plástico e barulho as protagonistas também possuem algo em comum: o sonho de se tornar estrelas do brega no Brasil. Para contar esta história, Renata Pinheiro não só se apropria da estética do brega, repleta de cores, sons e dança, mas bem como das histórias “por trás da fama”.

Jaqueline (Maeve Jinkings) e Shelly (Nash Laila) são cantoras na cidade de Recife (PE), a primeira com mais experiência, já Shelly acaba de iniciar a carreira como dançarina na Banda Amor com Veneno. A relação das duas personagens transita entre a rivalidade e a admiração. Shelly enxerga em Jaqueline sua inspiração e por isso deve traçar o mesmo caminho que a musa, inclusive namorando com o ex de Jaque, o cantor famoso da banda Amor com Mel.

A produção reflete sobre a lógica da fama. Jaqueline compara o sucesso com um “copo de plástico”: descartável e efêmero. Neste meio, as mulheres “servem” para ser musas – motivo da música – ou dançarinas – corpos que rebolam, no mais, tornam-se descartáveis, como o próprio sucesso do qual Jaqueline fala.

Entre as intrigas e a admiração, tanto Jaqueline como Shelly reconhecem seus defeitos e suas agruras. Presas no campo da “afetividade feminina”, elas se consolam bebendo e dançando juntas.

No filme de André Novais, Ela volta na quinta há uma abordagem mais comum desta rivalidade. Maria José e Noberto passam por uma crise no casamento. O conflito, no entanto, não é exposto, ele é colocado sempre nas entrelinhas. A interpretação não é nenhum pouco melodramática, mas naturalista. Não à toa, Novais utiliza a própria família para encenar um drama ficcional. Noberto tem um relacionamento extraconjugal, Maria descobre, mas tão pouco se desespera – ao contrário de Amor, plástico e barulho, aqui a estética não é do excesso, mas do sutil. Maria resolve fazer uma viagem e só volta na quinta-feira, fato que dá título ao filme.

O sentimento de raiva de Maria se volta mais contra a outra companheira de Noberto do que contra ele próprio. É interessante observar uma senhora idosa como Maria chamar uma outra mulher de ‘vadia’, denotando o ciúme em relação ao marido que ela jamais demonstra, no entanto, sente.

Esta rivalidade entre as mulheres ocasionada pelo ciúme é menos problematizada no filme de Novais, que apesar de abordar os afetos em seu estado poético cotidiano, re-apresenta uma visão recorrente em relação a disputa feminina. Percebe-se que a personagem de Maria é sensível, forte e interessante, entretanto acaba por ser minada pelos conflitos de Noberto, que seriam “mais importantes” dentro da trama, reforçando uma perspectiva patriarcal dos relacionamentos.

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