Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Glênis Cardoso

Editora e co-fundadora do Verberenas. @glenisav

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ENTRE FESTIVAIS: SUBYBAYA E BARONESA

Nenhum filme existe em si mesmo. Existem diversas variáveis que influenciam como vai ser sua recepção por cada espectadora desde as condições em que o filme é exibido até com quem se conversa sobre após sua exibição. O festival, em particular, é um espaço feito para receber e debater filmes, é um pequeno microcosmo, preparado pela curadoria e organização e construído pela exibição dos filmes, os debates e as reações do público. Esse texto foi originalmente publicado no e-book ‘Estado Crítico: Textos da residência de crítica de cinema do III FRONTEIRA’ em um momento muito específico no primeiro semestre de 2017 após a exibição dos filmes Baronesa de Juliana Antunes e Subybaya de Leo Pyrata em dois festivais, a Mostra de Cinema de Tiradentes e o Fronteira Festival. Desde então, os dois filmes tomaram rumos diferentes em sua trajetória por festivais e algum tempo depois mais debates se lançaram durante o Festival de Brasília sobre a posição do artista e da obra num contexto histórico altamente politizado. Ao longo de todas essas discussões sobre os filmes e os artistas, em mim permanecia uma questão um pouco menos comentada: qual é a função e as possibilidades de ação dos festivais nessa dinâmica? O texto abaixo não responde a essa pergunta, mas se insere dentro desses questionamentos.


Desde janeiro, dois dos filmes selecionados para a Mostra de Cinema de Tiradentes têm criado burburinho entre importantes nomes do cinema brasileiro contemporâneo, dentre os quais podemos citar o professor e realizador Marcelo Ikeda e a crítica Camila Vieira. Aqueles de nós que não estivemos presentes na Mostra acompanhamos as discussões sobre voyeurismo e machismo que circularam entre os críticos, curadores e cineastas. A notícia que esses mesmos filmes, Baronesa de Juliana Antunes e Subybaya de Leo Pyrata, estariam também no Fronteira Festival em Goiânia lançou mais uma série de questões sobre a curadoria dos festivais e permitiu que a discussão que começou em Minas Gerais continuasse ininterrupta ao longo dos últimos três meses.

Os debates de fato, que aconteceram após a exibição dos filmes nos dias 21 e 22 de março em Goiânia, se revelaram como uma extensão de uma conversa que havia começado muito antes. O docudrama de Antunes, que acompanha a vida de duas moradoras de uma comunidade periférica em meio a uma guerra ao tráfico de drogas, explorou a violência e o gênero de tal forma a gerar alguns questionamentos quanto a qualidade voyeurística da câmera de Antunes, lançando uma conversa que trouxe à tona textos, textos-respostas e reflexões entre críticos e curadores.

Na primeira cena do filme, vemos apenas os quadris de uma mulher negra que dança funk à meia-luz. Em outra cena, vemos o rosto de uma criança enquanto ela escuta sua mãe gritar em outro cômodo com o filho mais velho. O objeto de Antunes é pulsante, vivo. Leid e Andreia, as duas mulheres que ela acompanha, existem muito além da tela, são de uma realidade quase assustadora, dolorida. Mas é necessária cautela ao representar a dor do outro. Trata-se de uma questão ética difícil de fugir quando falamos em documentários, então, não foi surpreendente que o filme se visse no centro de um debate intenso sobre voyeurismo. A discussão, entretanto, pareceu perder a força na presença, ironicamente, da diretora e dos curadores que selecionaram o filme para estar ali.

Logo no início do debate, fizeram-se alusões à crítica “O risco do voyeur em ‘Baronesa’” de Laís Ferreira que marcou a Mostra de Tiradentes e as discussões virtuais sobre o filme sem nunca mencionar por nome a crítica que escrevera o texto sobre o assunto. A possibilidade de se interpretar o filme como voyeurístico foi desqualificada junto ao texto de Ferreira logo nas primeiras falas após a exibição do filme, e isso unido a um discurso defensivo e pouco aberto a dissenso acabou por blindar o filme às críticas.

Se faz parte da função dos festivais e mostras de cinema possibilitar encontros – de pessoas, de ideias – vimos no debate de Baronesa uma situação peculiar na qual o encontro de pessoas – no caso, da realizadora com o público – foi um entrave para a troca de ideias. A dinâmica arte-vida, a energia fundamental de uma mostra, esmoreceu.

É curioso pensar o efeito do festival – aqui, não falo em festival como um caso específico, mas de forma geral – nos filmes que ele seleciona. Muito se falou sobre a suposta tiradentização dos festivais brasileiros, mas a questão proposta aqui vai além de questões de curadoria, do “antes”. É importante analisar as consequências da apresentação de determinados filmes em festivais. As possíveis alterações no discurso dos diretores, dos críticos, a recepção dos espectadores.

Em Baronesa, vimos um debate se alongar por meses, alimentado pela sua presença em dois festivais importantes e relativamente próximos do país, começando com intensa polêmica em Tiradentes e culminando em um debate anticlimático em Goiânia. Em Subybaya, o efeito do festival vai além das discussões em torno do filme, se estendendo também ao posicionamento do diretor em relação a ele.

O filme de Leo Pyrata conta a história de Clarisse, uma mulher que embarca em uma buscar por autoconhecimento repleta de festas e encontros sexuais estranhos. Em um determinado momento do filme, quebra-se a quarta parede e um grupo de mulheres feministas começa a conversar em voz over, discutindo sobre o filme, seus problemas de gênero, seu diretor e seu público. Sem grande profundidade, elas comentam a história da protagonista, sua jornada existencial explorada pela perspectiva masculina do diretor, assistida por um público específico. Há uma consciência não só da existência do espectador, mas de que tipo de pessoa ele é: frequentador de festivais de cinema, curador, cineasta.

No final, o próprio Leo Pyrata entra em cena como um dos homens que a protagonista conhece em uma festa. Quando ela se afasta por alguns momentos para ir ao banheiro, Pyrata coloca algo em sua bebida e as mulheres que assistem ao filme se revoltam, executam um ritual de bruxaria – com direito a olhos revirados e círculo de sal – e entram na tela do filme para matá-lo. Depois, celebram dançando nuas em torno de uma fogueira. As vozes delas voltam com mais críticas: não há final feliz possível, mulheres continuam a serem abusadas e estupradas todos os dias, não existe possibilidade de redenção para o filme nem para diretor.

A ironia é cara ao filme, e seus alvos são muitos: a crítica feminista insaciável, o público de festivais, o próprio filme pertencente a um nicho específico e consumido por espectadores específicos. Durante o debate, entretanto, a postura de Leo Pyrata não possuía a mesma confiança e bravata do filme. Diferentemente de seu comportamento em Tiradentes, onde ele defendeu seu filme como uma provocação, assumindo seu embate com a crítica feminista, nesse segundo momento ele apresentou um comportamento humilde, assumiu erros, mencionou suas leituras de textos feministas e sua intenção em fazer uma obra que abarcasse seus estudos de gênero. Parece que, após semanas de duras críticas ao filme, seu discurso mudou.

Não foi apenas a postura do diretor que mudou, entretanto. Apesar das muitas provocações presentes em Subybaya, a reação exacerbadamente negativa ao filme parecia exagerada. Foi apenas durante o debate que aqueles de nós que não havíamos visto o filme em Tiradentes pudemos entender o que acontecera. O corte apresentado em janeiro era diferente daquele apresentado para nós. Uma série de cartões com citações feministas – o maior alvo das críticas sofridas pelo filme – havia sido retirada.

A forma do filme, descobrimos, ainda sofreria outras alterações depois do Fronteira Festival. Ao longo do debate, em resposta às críticas feitas ao filme, Pyrata comentou algumas vezes que não estava satisfeito com a edição do filme e a mixagem de som ainda passaria por mudanças, não se tratava de um filme pronto.

É curioso ver que, no filme, as feministas que acabam por “roubar” a narrativa do filme e definir o seu final parecem ser tratadas com ironia, existe um quê de ridículo no ritual de bruxaria que elas realizam que beira a paródia. Era de se esperar, então, que Pyrata não se curvasse às críticas feitas ao filme, muitas dela de cunho feminista; entretanto, é exatamente isso que vimos acontecer: seu discurso, antes combativo, se tornou humilde e, ainda mais estranho, a própria forma do filme foi alterada e, ao que parece, continuará a ser.

Se a proposta desde o início fosse essa – experimentar com a forma do filme a partir de reações do público e dos críticos – poderíamos entender melhor a escolha do diretor, talvez considerá-la até mesmo corajosa. Mas como esse claramente não é o caso, qual é o propósito de apresentar um filme que não está pronto em uma mostra? Não é incomum que filmes mudem após em exibições em festivais, mas que ele mude de forma tão extensa nos leva a pergunta: chegamos ao ponto em que a lógica dos festivais se inverteu a tal maneira que deveríamos acrescentar “teste de audiência” aos seus atributos? É estranho pensar que Pyrata esteja procurando a aprovação do público quando seu próprio filme parece demonstrar certo desprezo pela opinião dos outros, apresentados como jamais satisfeitos, suas críticas impossíveis de serem apaziguadas.

Ao colocar Subybaya ao lado de Baronesa, ficam nítidas as diferenças entre ambos, tratam-se de filmes de gêneros diferentes, com protagonistas que, apesar de dividir a mesma cidade, não poderiam estar mais distantes. Seus percursos para chegarem ao público, todavia, até agora foi bem parecido. De Tiradentes a Goiânia, é possível perceber mais uma diferença entre eles: como os dois filmes receberam as críticas e se apresentaram nos dois festivais. Enquanto Antunes teve uma postura pouco flexível em sua tentativa de justificar suas decisões, Pyrata cedeu às críticas a ponto de modificar seu discurso e a forma de seu filme.

A primeira reação inibiu um debate de fato produtivo, à segunda, faltou convicção. Para ambos os filmes, resta a pergunta: não seria mais proveitoso encarar erros, dialogar de forma aberta, possibilitar o dissenso? Para Subybaya, fica mais uma questão: qual será o filme visto pelos seus próximos espectadores?

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