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MALA JUNTA: JUVENTUDE MAPUCHE E OS POTENTES ECOS DA MILITÂNCIA

Um filme de ecos. Ecos que ressoam desde a primeira sequência. Ecos de fantasmas vivos que assombram pelo eminente risco de mostrarem a face mais obscura e previsível. Em Mala Junta (2016) a diretora indígena mapuche Claudia Huaiquimilla escancara a violência sofrida pelos indígenas, os ecos do colonialismo ainda ressoam. Mas junto a esse terror que perdura, o que há de mais precioso na obra é mostrar os corpos que resistem e onde buscam fôlego essas potências de sobrevivência.   

Mala Junta é o longa-metragem de estreia de Huaiquimila e foi premiado em mais de 40 festivais, dentre eles: o grande prêmio do público 39º Festival de Cine Latinoamericano de Toulouse (França) e o prêmio de melhor filme no 24º Festival de Cine de Valdivia (Chile). O filme possui uma bela maturidade formal. É fruto da costura cuidadosa de um roteiro que surpreende pela sutileza em introduzir situações limites e diversas reviravoltas inesperadas na narrativa, aliadas ao minimalismo nos diálogos. Já a maestria das atuações sustenta com tranquilidade longos planos sequências orgânicos e fluidos.

Um dos protagonistas do filme de Huaiquimilla é o ator Eliseo Fernández, do seu curta-metragem San Juan, la noche más larga (2012). Em Mala junta, ele performa Cheo, o mesmo personagem do filme anterior. No longa, permanecem no garoto as inquietações pessoais acerca da identidade indígena abordadas no curta, agora permeadas pelo bullying que sofre na escola. O outro protagonista é Tano, interpretado por Andrew Bargsted, um adolescente que se vê obrigado a mudar-se para a casa do pai, por ordem de uma espécie de juizado de menores do Chile, por conta de uma tentativa de assalto cometida pelo jovem. Tano é matriculado pelo pai no mesmo colégio de Cheo.

Ambos são espécies de párias na escola e se unem aos poucos. Embora exista um pouco de passivo agressividade inicialmente na relação entre os dois, comum a esse lugar infantilizado de uma certa “afirmação” da “masculinidade” adolescente, eles criam uma relação de amizade muito forte e estreitam os laços (ao ponto da mãe de Cheo e do pai de Tano também nutrirem uma relação de afeto). Apesar de um certo estranhamento inicial com a forma fria e dura de Tano, os jovens se unem e Tano chega até a defender Cheo.

O indígena mapuche Cheo sofre mais bullying do que Tano na escola e não consegue revidar, diferente do amigo. Isso vai se agravando ao longo do filme e culmina numa das cenas mais impactantes do longa. Logo após o assassinato de uma liderança indígena local, próxima de Cheo, estudantes queimam um boneco, em plena quadra da escola, no intuito de provocar o adolescente indígena. É quando Cheo entra numa briga com o estudante provocador. Tano também toma a frente para protegê-lo, mesmo sabendo que poderia ser penalizado pela coordenação e corre o risco de ter uma punição mais dura (devido a sua situação perante ao juizado).

Mala Junta é um filme sobre a fragilidade e a vulnerabilidade que esse povo mapuche é sujeitado no tempo presente e sobre a leveza que conexões afetivas como a amizade podem agregar. Embora não exista em cena alguma a concretização de um abraço entre os meninos, este apoio na escola e o olhar de Tano para Cheo, na sequência após o assassinato da liderança mapuche, transparecem uma compaixão incondicional.

IDENTIDADE INDÍGENA E MILITÂNCIA

Acompanhamos de maneira gradual o envolvimento de Cheo com a militância. Ele primeiro passa a frequentar os espaços de articulação política do povo, ao se aproximar de uma das lideranças jovens. Em seguida, comparece nas manifestações e protestos públicos dos mapuche contra a ação violenta dos policiais que os acusam falsamente de provocarem incêndios na região. O momento mais pungente dessa relação com seu povo, tragicamente, é a cena na qual os policiais invadem as casas e cometem o assassinato da liderança.

Nas sequências seguintes, vemos Cheo com uma faixa tradicional mapuche protegendo o corpo do líder assassinado e protestando. A partir de então, passa a existir, desenhada pela decupagem de fotografia, uma imersão de Cheo ao ponto de figurar agora como parte integrante e essencial dentro daquele povo. Os planos mais próximos se transformam em planos gerais nas cenas do enterro e são arrebatadoras as imagens dos indígenas chegando a cavalo tocando música para a cerimônia de despedida do jovem mapuche assassinado.

 

 

ECOS FANTASMAS DO COLONIALISMO

O filme de Huaiquimilla tem um desenho cuidadoso do som que vem introduzindo desde o início as notícias da TV acerca dos incêndios supostamente ocasionados pelos mapuche. Ao longo da obra, sons de serras elétricas, árvores tombando, notícias de jornais, além das imagens de indústrias invadindo a região vão formando ecos que desenham um cenário de temor constante. Estes fantasmas parecem estar por toda parte. O bullying que Cheo sofre na escola é apenas uma das nuances desse monstro maior. Como uma marcha que avança de mansinho, a recorrência desses fantasmas culmina com o barulho dos tiros no ataque aos indígenas. O filme termina silencioso, numa espécie de luto, mas a cumplicidade dos meninos fala mais alto do que a desesperança.

A escolha de personagens do sexo masculino para tratar de fragilidade traz uma camada emocional muito especial para o Mala Junta. A amizade entre dois homens e a relação de companheirismo que se estabelece entre eles, somadas a estas questões universais que atravessam a adolescência e ao contexto complexo da relação identitária de Cheo compõem um cenário limítrofe no qual a quietude parece sempre estar em jogo.

No final do filme, os meninos possivelmente terão que se separar por conta do episódio na escola no qual Tano foi ajudar Cheo a se defender. A última cena, na qual eles observam a árvore no local onde sempre se reuniam, tombada no chão, inspira uma melancolia, mas a vitalidade desses jovens parece propor um futuro indignado, inquieto. Um movimento. Cheo ressoa os ecos da militância.

Este fatalismo no final reflete a situação atual dos mapuche no Chile. Não haveria uma happy end que desse conta. A distopia é evidente, mas a utopia de Huaiquimilla ressoa no olhar de força desses meninos e nesse encontro improvável.

CONFIDÊNCIAS FEMININAS SOBRE O PASSADO E O PRESENTE: A HORA DO CHÁ

Você já teve a impressão que fizeram o filme cujo qual você gostaria de ter feito? Foi o que eu senti ao me deparar com “La once”, ou a Hora do chá – documentário dirigido pela chilena Maite Alberdi. Há tempos venho pensando em filmar os encontros de minha avó e de suas amigas octogenárias que acontecem a cada semana. Denominado como “o jogo das meninas”, a reunião é repleta de lanches, jogos de baralho e confissões íntimas. Parece que a Maite teve a mesma ideia. Em seu longa-metragem documental, a diretora retrata o encontro da avó com mais cinco mulheres, amigas de escola que se reúnem mensalmente há 60 anos.

A princípio, somos guiados pela narradora Tereza que apresenta as integrantes do grupo a partir das personalidades e características de cada uma. Quando já familiarizados, sentamos à mesa para tomar um chá. Com planos muito próximos, nos sentimos verdadeiramente parte da conversa. Os vários planos-detalhe dos doces, tortas e salgadinhos nos trazem uma sensação de conforto e intimidade. Diante de tanto açúcar, seria possível esconder algum segredo? As senhoras seguem conversando sobre os temas atuais e tabus como a sexualidade.

Quando demonstram suas opiniões, as velhas amigas, por vezes, suscitam tendências mais conservadoras. A diretora optou por não esconder possíveis julgamentos ou preconceitos vindos das falas dessas mulheres. Exemplo é a presença das empregadas e o tratamento dado a elas durante o filme. Maite frisa como as domésticas são responsáveis por preparar e arrumar o lanche, mas entre as conversas são ignoradas. Estas senhoras são, de alguma forma, o retrato do Chile, um retrato da classe média chilena que pouco se difere da nossa. No entanto, o longa não destrincha sobre questões políticas e sociais, o foco do documentário é outro: a relação de amizade construída durante anos.

Nesse emaranhado de falas, encontramos muitas vezes opiniões parecidíssimas com as de nossas avós. A discussão sobre “o papel da mulher na sociedade”, por exemplo – e como isso foi ensinado a essas senhoras ainda na época da escola. A discussão se alonga e elas concordam que os valores mudaram e a noite de núpcias já não parece mais um bicho de sete cabeças para nenhuma moça. Uma das amigas leva ao encontro o antigo caderno da disciplina intitulada “Economia doméstica”, onde as características da “boa esposa” eram explicitadas, com destaque para o “ autocontrole”. As próprias senhoras riem após a leitura do caderno. O riso é necessário durante todo o filme. Afinal, elas acabam se criticando, pois muitas vezes não têm as mesmas opiniões.

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A conversa sai dos temas sociais para se tornar mais íntima. “Vocês preferem que seu marido lhe traia ou que ele morra?”, pergunta uma das personagens. O tema do amor e casamento surge como uma causa principal para essas mulheres, menos para Gema – que decidiu não se casar e por isso desperta desconfiança entre as amigas.

Estas senhoras que viveram a época de transição das conquistas feministas se veem, depois de velhas, mais empoderadas. Não tanto pelos direitos femininos adquiridos, mas pelo caráter de discernimento que a velhice possui. Não precisam aparentar mais nada. Não têm papas na língua. Falam o que vem à cabeça. Riem e discutem sem pisar em ovos. Nesse sentido, “La once” nos traz uma perspectiva sobre a percepção dos idosos sobre a realidade. Se na juventude, as regras lhes eram impostas e as alternativas eram segui-las ou quebrá-las, a velhice traz a possibilidade de ignorá-las, de transpô-las.

A hora do chá é também ritualística. Um encontro mensal que acontece religiosamente. Em entrevista, a diretora Maite Alberdi confessou que teve a ideia de fazer o longa após a avó negar de ir à premiação de um filme da neta, pois o evento iria acontecer no mesmo dia que a “hora do chá”. É como “o jogo das meninas”, quando acontece na casa da minha avó, todo mundo tem de sair. Os encontros entre amigas são sagrados. Nesse espaço, nesses dias tão específicos se trocam confissões, intimidades. Por mais diferente que sejam, essas velhas senhoras se sentem pertencentes a algo maior, em outras palavras, ao sentimento da amizade. Aqui relembro o conceito de sororidade. A hora do chá representa aquele encontro semanal com amigas no bar, pra falar de trabalho, de amor, de filhos, de coletor menstrual, “do papel da mulher na sociedade”, etc, etc.