Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

LUNA MARÁN E O TROVADOR ZAPOTECA DE OAXACA

“Por dez anos eu me convenci que cantar é juntar forças ao meu povo. Ser trovador não é só tocar violão e cantar canções. Ser trovador também é conquistar, é persuadir, é ensinar. A canção começa assim: Tenho medo de voltar ao meu povo e encontrar os bosques desertos/ Tenho medo de voltar ao meu povo e encontrar os meus avós mortos/ Tenho medo de voltar ao meu povo e não encontrar o sorriso dos meus irmãos.”

Trecho inicial do filme Tio Yim, cujo contexto é uma apresentação musical de Jaime Martínez

Embalado por músicas que soam como preces, chamados para um senso de coletividade e apego afetuoso a uma terra, a um povo, o documentário Tio Yim (2019), da diretora Luna Marán, nos conduz a conhecer a história do seu pai, Jaime Martínez, e Marán faz essa imersão em primeira pessoa mergulhando no seu seio familiar.

O filme é quase todo rodado dentro de casa com a presença de Magdalena, a mãe, os respectivos irmãos e tem muita calorosidade nas relações postas. O intrigante é que mesmo nesse contexto de intimidade, a diretora preserva uma certa solenidade na forma como conduz as entrevistas e surpreende pelo tom confessional de todos, que aparentam estar muito mexidos, pois falar sobre o pai é falar do povo zapoteca.

COMUNALIDADE

Marán aborda no filme como o pai, junto a Floriberto Diaz, foi o criador do conceito de comunalidade, que em breves palavras se traduz em dar voz ao coletivo. No caso da comunidade de Jaime, entender as assembleias zapotecas como o caminho ideal para se pensar naquela sociedade — sempre procurando valorizar a agricultura e proteger o povo das explorações das grandes empresas e dos empreendimentos que tentavam adentrar no território.

Jaime também acreditava nas canções enquanto uma linguagem potente de espraiamento das políticas construídas em coletivo, inclusive para dialogar com as crianças. Em imagens de arquivo vemos Jaime compondo canções em parceria com um grupo de meninos e meninas em uma praça.

Diante de tantas memórias preciosas e um histórico de atuação política tão forte seria muito fácil sucumbir a uma mera homenagem, mas Luna consegue ao longo de todo o filme criar pontos de tensionamento e oscilar entre esses polos, sem que em nenhum momento se deslegitime a trajetória paterna.

Uma potente provocação do irmão de Luna trazida na obra é dizer que, por conta da maneira como a casa do trovador foi arquitetada, ela não oferecia privacidade, “pois os pais eram hippies, diziam que a privacidade criaria a individualidade, e consequentemente, destruiria a comunidade”. Ao perguntar à Marán se estaria sendo gravado quando começa a falar, ele não aparenta se abalar e não titubeia em afirmar isso com um tom atiçador. Assim como os demais familiares de Marán, o irmão não teme colocar nada em cheque, tudo naquele círculo está constantemente posto ao debate, assim como nas assembleias zapotecas.

AS MULHERES DE OAXACA

Tio Yim, realizado em um período de 7 anos por uma mulher, possui esta camada do gênero como definidora na condução narrativa. Apesar do nome do filme fazer uma menção centralizante em torno do seu pai; Marán, sua irmã e sua mãe protagonizam afrontes que atinam a lembrar que para além de um trabalho conduzido por uma mulher, trata-se de uma obra que as colocam no epicentro ativo e transformador daquela história.

O filme orquestra uma clara exaltação a toda história de luta do pai, mas em uma cena na qual a irmã fala da sua infância e da respectiva ausência de Martinéz nesse período, há uma clara proposta de um tipo de “acerto de contas” por parte da diretora. Com a câmera ligada, as duas irmãs questionam o pai: “Como ele se sentia em relação a isso?” Martinez de forma muito direta fala sobre o desejo da maternidade atribuindo-o unicamente à mãe, dando a entender que ela deveria “bastar” para as meninas naquela época.

Apesar de uma grande aproximação e uma clara relação de muito carinho entre o pai e as filhas nessa vida adulta, uma fala como essa não as parece chocar, mas gera um desconforto que não se desilinha com tanta facilidade. A escritora chicana Glória Anzaldúa traz grandes contribuições para a construção de um feminismo que provoca ao tensionar o lugar da tradição associado ao patriarcalismo e me faz lembrar da obra de Marán:

“Na visão de Anzaldúa, a nova mestiça recusa o conforto simulado de mecanismos arbitrários de resolução e dissolução de conflitos, sustentado pela ilusão modernista de temporalidade linear e, portanto, de uma fronteira intransponível entre tradição e modernidade. Se consideramos tal recusa como uma intervenção histórica, torna-se claramente inconsistente a crítica segundo a qual a teorização de Anzaldúa sobre a nova mestiça implica um hibridismo que dissolve diferenças, transpõe contingências históricas ou idealiza o período pré-Colombiano, desproblematizando seu legado histórico patriarcal.” 1

Magdalena, a mãe de Marán, é outra personagem que nos brinda com sua presença poderosa e também estremece levemente as estruturas do documentário, distanciando a obra de Marán de um pacífico filme familiar em primeira pessoa. Magdalena casou-se com o Martinéz e sua relação com a identidade indígena é abordada no filme. Sobre sua trajetória de vida (passadas três décadas de ativismo à frente da criação de programas de TV e de rádio pautando a comunidade), Magdalena diz que apesar do próprio marido levantar questões acerca de sua racialização, ela se autoidentifica “híbrida”.

As costuras narrativas da obra também são criadas em parceria entre a Magdalena e Luna, que aparecem em cena em diversos momentos do filme refletindo o discurso proposto e questionando alguns posicionamentos de Martinéz — como quando ele fala de forma apaixonada que o mezcal2  foi a grande inspiração da sua vida.

CINEMA ZAPOTECA E MIRADA AL FUTURO

Marán também dedica uma parte do documentário a falar sobre o alcoolismo do pai e as memórias acerca dos amigos que ele perdeu para o mezcal. Magdalena atribui ao vício esse capítulo de vida recente cuja atuação ativista do marido estava mais arrefecida, mas todos parecem olhar para frente com otimismo. Apesar de não serem abordados no filme, a própria Marán possui diversos projetos em desenvolvimento com a comunidade — dentre eles, projetos de formação audiovisual e cineclubismo. Elas também mencionam uma rádio que ainda permanece em funcionamento, mas em busca de apoio financeiro.

A tessitura da obra com imagens daquela família que atravessam o tempo, todas elas captadas pelos olhos de Marán (somadas às imagens de arquivo) trazem uma sensação de conhecê-los, de proximidade, de intimidade. Mas muito além da intimidade para com aqueles personagens, o filme fala sobre uma forma de pensar, um modo de viver, um caminho de praticar resistência, de educar. Mas e Marán? Onde ela está ali? Mais à espreita, tentando mirar com seus movimentos de câmera o que vem adiante. Buscando a melhor forma de olhar para frente expondo as fraturas e vicissitudes dessa família, eternizando o legado do pai e sobretudo, olhando nos olhos das suas.

As músicas na obra de Marán compõem uma paisagem sonora que de forma peculiar trata da história daquela família e daqueles personagens cujas contradições são sutilmente desveladas, e vão nos levando a um pico de emoções quando Marán aparece bastante relaxada em frente à câmera em um dos momentos mais tocantes do filme. Marán canta uma música do seu pai com os irmãos, todos amolecidos por uns tragos de maconha e em seguida somos surpreendidos pela cena de Jaime pegando o violão e reaprendendo a tocar uma canção de sua autoria.


No momento da publicação do artigo, o filme Tio Yim estava disponível no primeiro festival online de documentários promovido pela BBC, o LongShots. 

O CAMPO DE BATALHA DOS AFETOS E DA SEXUALIDADE: CARTÃO VERMELHO

Cartão Vermelho (1994) foi o primeiro curta-metragem de Laís Bodanzky (diretora dos longas As melhores coisas do mundo e Bicho de sete cabeças) e é um dos filmes nacionais que tratam sobre questões de gênero e relações de poder calcadas no machismo dentro do período infantil. A cineasta conta uma história composta por pré-adolescentes focando especialmente em Fernanda: o sonho dela é se tornar uma estrela do futebol brasileiro, como o Zico, ídolo da garota. Em um mundo estritamente masculino, ela não possui a “força física”, mas subverte o seu poder através da inteligência: Fernanda sabe da fraqueza masculina e se aproveita disso durante o jogo, sua mira é impecável e a bola, inevitavelmente, acaba sempre entre as pernas dos meninos. Cansados de serem acertados, os garotos decidem se vingar e daí vem toda a problemática da discussão.

Primeiro, é preciso observar o contexto em que o filme foi feito. Em 1994, menina em jogo de futebol no Brasil era um tabu muito maior do que hoje, as discussões sobre gênero eram menos problematizadas e já por esta temática, Cartão Vermelho trata de um assunto fora dos padrões da época. Além disso, a cena da vingança gera um incômodo: os meninos querem descobrir o que há por debaixo das “saias” de Fernanda. Neste ponto, a sexualidade entra como um segredo e também enquanto ponto fraco de “ser menina”. Eles a encurralam em um esconderijo e levantam sua roupa a força. A sensação é de agonia. Sentimos medo por Fernanda. Um dos garotos, após observar os órgãos genitais da menina, os desenha em uma parede explicando cada parte da vulva e da vagina, em uma espécie de cientificismo – a ciência fria e seca estaria ligada à masculinidade?

Após a explicação científica, um dos garotos continua a desenhar transformando a figura da vagina em um campo de futebol. O campo de futebol aparece, então, enquanto um campo de batalha para Fernanda. Nele, a garota se encontra, ela se identifica como atuante, protagonista, alguém que sabe o que quer e age em prol de sua vontade. Entretanto, por ser a única menina, o futebol significa também um jogo de poder, onde ela precisa negociar para existir. O curta-metragem problematiza ainda mais a temática ao inserir na narrativa aspectos como afeição e sexualidade. Afinal, é durante a pré-adolescência e a adolescência que acontecem as primeiras experiências afetivas e sexuais.

A montagem evidencia o aspecto desta época de transição. O filme é permeado por jumpcuts (cortes entre um mesmo plano), principalmente durante a movimentação de Fernanda, ao correr ou andar de bicicleta. A trilha que acompanha estas cenas é um rock e torna as sequências bem “divertidas”, elevando o aspecto moleca de Fernanda. Em contraposição, em cenas onde a garota se encontra reflexiva, ou sonhando, ou mesmo pensando em um garoto, os planos são próximos, sem trilha, a busca é por uma sensação de interioridade.

Apesar de perceber Cartão Vermelho como uma produção crítica, o curta incomodou alguns colegas que assistiram ao filme comigo, a percepção é de que haveria uma romantização da violência sexual. Isto porque, após a cena da vingança, Fernanda volta a jogar futebol como se nada tivesse acontecido, ela amarra o cadarço nas calças – uma analogia aos soldados de guerra – e entra em campo. Durante o jogo, a menina acerta a bola em Daniel, garoto que em uma das cenas comemora um gol com ela. Há uma espécie de afeição entre os dois e até então Fernanda nunca havia chutado em cima dele. O mesmo garoto aparece como “líder” do grupo, foi ele quem comandou a emboscada contra a menina. Após ter sido acertado, Daniel diz: “Deixa comigo, eu cuido”. No último plano, vemos um riso de Fernanda e assim acaba o filme.

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A sequência trouxe a discussão: o curta faz uma apologia ou não a violência de gênero? Ao meu ver, apologia não. Mas coloca uma série de intercessões temáticas. Fernanda sente atração por um amigo. Ela é a única menina no grupo, sua forma de defesa é agressiva. O menino em questão é o mesmo que comanda a vingança contra Fernanda – e para isto utiliza a “união masculina” como força motriz.  A sexualidade feminina é colocada enquanto segredo a ser desvendado pelos garotos. De qualquer forma, eles não podem responder as suas curiosidades por meio da afeição ou do diálogo, mas apenas pela força, pelo poder e por que não pela ciência? Já que sempre disseram que homens e mulheres têm capacidades diferentes. Todavia, Fernanda joga “como um menino”, não é mesmo? É por este motivo que os garotos ficam também tão aflitos e instigados com sua presença.

Para finalizar, Cartão Vermelho trata de um turbilhão de assuntos em menos de 15 min, são tantos os temas: a descoberta da sexualidade, relações de poder, machismo e resistência – acho que seria muito pouco traduzir o filme em “romantização da violência” – na verdade, penso que o curta questiona sobre essa romantização sob vários pontos de vista. Ela pode até ter acontecido, mas o discurso do filme não endossa a “prática” como aceitável. O resultado é um fluxo de pensamentos na cabeça do espectador.

O riso final de Fernanda é, para mim, espécie de subversão. O riso por si só é subversivo. Fernanda não ri de boba, ela ri como esperta, um riso de canto de boca.  A montagem, que antes separava claramente, a Fernanda moleca da Fernanda reflexiva, em uma das últimas cenas parece juntar as duas. Ao trazer em plano próximo o rosto da menina que literalmente encara de frente mais um jogo de futebol, dessa vez o plano é acompanhado de trilha. O curta termina de forma aberta, não sabemos o que vai acontecer e isso dá margem para muitas análises.