Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

MEDUSAS: A FÚRIA FEMININA NOS CURTA-METRAGENS DO FESTIVAL DE BRASÍLIA

Um dia, em algum momento da vida, eu aprendi que ninguém gosta de uma mulher irritada.

Tendo decidido estudar e fazer filmes – e norteado toda a minha produção e desde então – pelo desejo de perseguir, desdobrar e escancarar tudo aquilo que o mundo costuma rejeitar no feminino, eu sempre senti um interesse especial por representações de mulheres se comportando de maneiras incômodas e indesejáveis para as pessoas ao seu redor. Mulheres que vomitam a dor de existir em um mundo capitalista, machista, racista e homofóbico em vez de engoli-la e, consequentemente, voltá-la contra elas mesmas. Mulheres que, diante de um conflito, recusam-se ao gesto apaziguador tão esperado no feminino, optando em vez disso por demonstrar abertamente seu desagrado, discordância ou ressentimento. Mulheres que não esquecem e não se submetem, convencidas de que o mundo lhes deve mais do que está dando e dispostas a lutar por isso. Nós precisamos ver e ouvir essas mulheres com mais frequência para lembrar que elas são possíveis, que a sua indignação é legítima e que não, a fragilidade, a gentileza, o acolhimento, a compreensão, a resignação e o sacrifício – esses lugares de aceitação da dor tão frequentemente atribuídos à condição feminina – não são os únicos que nós podemos habitar. E o cinema, com seu poder inigualável de lançar holofotes sobre existências e imaginar novas realidades, tem um papel crucial na missão de dar voz e visibilidade a elas.

No Festival de Brasília desse ano, que pela primeira vez na sua história teve mais mulheres que homens à direção dos filmes exibidos na mostra competitiva, não faltaram exemplos de mulheres em fúria para nos espelhar e inspirar. Considerando a força e a importância do curta-metragem enquanto espaço para o surgimento de novas vozes, novos olhares e novas temáticas no cinema, é em alguns dos curtas exibidos no festival – aqueles em que a força de comportamentos femininos desviantes se fez mais presente para mim – que irei me focar a seguir.

Jaqueline (Kauane Tarcila) em Impermeável pavio curto, de Higor Gomes.

De todas as inspiradoras mulheres presentes nas telas do Festival de Brasília, a que mais me impressionou talvez tenha sido a jovem Jaqueline de Impermeável Pavio Curto, de Higor Gomes, exibido na mostra universitária e vencedor do Prêmio Zózimo Bulbul de melhor curta na categoria. Impaciente, explosiva e cheia de falsas certezas e autonomia, Jaqueline carrega seus olhos pesados de rímel, seus jeans e suas trancinhas com tanta imponência que até mesmo a câmera parece se intimidar diante dela, mantendo-se na maior parte do tempo a uma segura distância da adolescente, em planos abertos que privilegiam a nossa compreensão do modo como a personagem se relaciona com o espaço ao seu redor – no caso, não muito bem.

Como um animal enjaulado desesperado para dar vazão à toda a sua fúria e frustração com o mundo – e, assim como sua protagonista, o filme de Higor Gomes nunca se explica inteiramente, mas nos permite imaginar com muita clareza que motivos uma jovem negra, periférica e completamente alienada da mãe e suas falsas promessas teria para estar tão indignada – Jaqueline está sempre jogando objetos para longe, ignorando solenemente qualquer olhar, pergunta ou comentário que a incomodem, e em certo momento chega até a fantasiar cair no tapa com uma colega. Enquanto isso, paira sobre ela, o tempo todo, a sombra de um incidente na escola que também nunca é inteiramente explicado, mas sugere que a violência de Jaqueline, em algum momento, escapou da fantasia para ferir um objeto menos inócuo que uma chave de fenda ou uma garrafa de vidro, fazendo a protagonista finalmente encarar as desagradáveis consequências de seus atos.

Ainda assim, Jaqueline jamais se quebra, se dobra, se explica ou se desfaz. No fim, após receber mais um golpe de um mundo que não se cansa de decepcioná-la e magoá-la, ela parte estrada afora em sua bicicleta. Sozinha, ela sorri.

Vanessa (Noemia Oliveira) em Eu, Minha Mãe e Wallace, dos irmãos Carvalho.

Tão imponente quanto Jaqueline é a Vanessa (Noemia Oliveira) de Eu, Minha Mãe e Wallace, dos irmãos Carvalho, que ganhou os prêmios de júri popular e melhor atriz coadjuvante (Noemia Oliveira) na mostra competitiva, além do prêmio Zózimo Bulbul de melhor curta. No filme, Vanessa é uma mãe solteira que recebe relutantemente a visita de Wallace (Fabrício Boliveira), o pai ausente, apavorado e ansioso para conhecer a filha Gabrielle (Sophia Rocha) numa saída temporária da prisão na época do Natal. Desde o instante em que abre a porta para Wallace, Vanessa deixa muito claro que dentro de sua casa, com a sua família, tudo o que acontecer será segundo as suas regras, e que está aceitando a presença dele apenas por Gabrielle, para quem reserva todos os seus breves sorrisos e sua disponibilidade emocional. De fato, Vanessa não interfere nas interações de Wallace com a filha, e até mesmo as incentiva ao seu modo, mas jamais gasta qualquer esforço para fazer o visitante se sentir mais à vontade, forçando-o a se virar quando não sabe o que fazer e criticando-o sem pudor quando erra.

Mais velha, madura e dona de si que Jaqueline, Vanessa não se mantém à distância. Ao contrário, ela se agiganta monumentalmente sobre a câmera, encurralando-a no pequeno espaço de sua casa e até mesmo comandando-a a quebrar o seu registro de filmagem fluido e naturalista com um repentino plano frontal, totalmente fechado em seu rosto furioso, quando Wallace revela a intenção de fugir em vez de retornar à prisão, e portanto, nunca mais voltar, nunca ser um pai para Gabrielle, nunca assumi-la como prometido, levando consigo apenas uma fotografia de lembrança. “Olha pra mim caralho”, Vanessa diz, e nós olhamos, pois ela exige ser vista e ouvida, e é impossível não obedecê-la. Seu olhar, como o da Medusa – mitológico símbolo de fúria e poder femininos – nos paralisa.

No fim, Vanessa permite que Wallace tire a tão desejada foto de família e vá embora. Na imagem desbotada revelada ao fim, o rosto de Vanessa é uma rígida máscara de fúria, contando uma história muito mais longa que os vinte minutos do filme dos irmãos Carvalho poderia contar.

Maria (Maria Leite) em Mesmo com Tanta Agonia, de Alice Andrade Drumond.

Em Mesmo com Tanta Agonia, de Alice Andrade Drumond, que ganhou os prêmios de melhor atriz (Maria Leite), melhor fotografia (Anna Santos) e menção honrosa de atriz coadjuvante (Rillary Rihanna Guedes) na mostra competitiva, além do Prêmio Abraccine e do Prêmio de Aquisição Canal Brasil de melhor curta, a protagonista Maria (Maria Leite) é mais uma mãe que reserva para a filha todo o seu afeto, protegendo-se das infinitas dores e exigências do mundo através de um estoicismo que beira o embrutecimento diante de tudo que não diz diretamente respeito à sua felicidade. No filme, que acompanha Maria tentando chegar a tempo para o aniversário de Julya (Julya Inhota) depois de um dia exaustivo no trabalho, apenas para ficar presa no trem quando um homem é duplamente atropelado nos trilhos, chama atenção a austeridade da protagonista, que jamais esboça qualquer horror, choque ou piedade diante da brutalidade do incidente, qualquer incômodo diante das exigências no trabalho, qualquer desagrado diante do trem lotado. Dura, cansada e muito prática, Maria simplesmente não tem capacidade para se compadecer e desmanchar diante dos infortúnios anônimos do mundo. Seu sorriso relutante e seus olhos cansados só se abrem de fato, monumentais entre as luzes coloridas, quando Maria encontra Julya, para quem reserva todo o seu amor e suas alegrias – é como se, para a protagonista, tudo que existe entre ela e sua filha fosse apenas mais um obstáculo. Como diz a fenomenal Rillary Rihanna em certo momento, Maria é “uma guerreira” – em todos os sentidos da palavra.

Dirigindo depois da festa com a filha adormecida no banco de trás, o rosto de Maria, imerso num mundo todo colorido em tons de roxo, finalmente se desfaz, transitando entre a exaustão, a tristeza e o desafio, num furioso grito sem palavras que a música ao fundo canta: esse é o mundo de uma mulher.

O lendário refúgio uterino de Boca de Loba, Bárbara Cabeça

Finalmente, em Boca de Loba, de Bárbara Cabeça, a fúria feminina é representada não por um rosto ou uma voz específicos, e sim por uma onda de mulheres silenciosas e anônimas que, escapando como um jorro de água sob a força da “pressão assediadora das ruas”, recobrem a cidade buscando invocar o poder de uma mulher lendária – “circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda” – que vive num lugar oculto, à espera daqueles que não têm um lugar no mundo e capaz de reviver e tornar livres e fortes todos os seres que correm o risco de se perder.

Vestidas em trajes fantásticos, essas mulheres percorrem as ruas frias e vazias de uma cidade que claramente não lhes pertence como se estivessem em batalha – como de fato estão – marcando territórios, rastejando nos subterrâneos, se esgueirando e correndo pelas sombras. Paralelamente, reúnem-se num recanto úmido e profundo, uterino, perpetuamente banhado por uma suave luz vermelha, onde compartilham brincadeiras, histórias e contemplações ao som de risos abafados. Que todas essas explorações, mesmo que urgentes, jamais estejam acompanhadas por uma sensação de ameaça para essas mulheres vagando pela noite, é um feito fabuloso do filme, que nos faz acreditar verdadeiramente nesse poder de comunhão, ocultamento, cura e comunicação entre mulheres.

Sobre uma obra construída por símbolos, códigos e linguagem tão próprios, tão desinteressados no discurso padrão de todos os dias, é difícil formar qualquer tipo de certeza, mas se eu fosse escolher alguma, seria essa: quem corre perigo, no sombrio e gotejante universo de Boca de Loba, não são as mulheres – são seus inimigos. É uma mudança bela, e bem-vinda.


Um dia, em algum momento da vida, eu aprendi que ninguém gosta de uma mulher irritada.

Ainda assim, nós estamos. Furiosas, na verdade. Há um limite, afinal, para o tanto de violência que uma mulher é capaz de digerir dia após dia sem acabar implodindo ou explodindo, e se o mundo nos ensinou que o certo é voltar toda a nossa fúria para dentro de nós mesmas em nome da conveniência alheia, bem, os tempos nos mostraram que, doa a quem doer, nós não somos obrigadas a cumprir regras que não ajudamos a criar.

A nossa fúria é uma rebelião, e ela está só começando.

RELAÇÕES ENTRE ESTÉTICA, VIVÊNCIA E HISTÓRIA: CINEMA FEMINISTA ENQUANTO CINEMA DE DESVIOS

Quando comecei a me interessar por cinema, comprei um daqueles best-sellers, estilo catálogo, intitulado Tudo Sobre Cinema[1] – antes mesmo de me adentrar no feminismo acadêmico, percebi que tinha algo de muito distinto naquela historiografia do cinema: os perfis em sua grande maioria – lembro-me de ter encontrado apenas três diretoras numa listagem de mais de cem cineastas – eram de homens. Obviamente as mulheres eram representadas como musas/estrelas, mas nunca como criadoras daquela arte.

A direção de cinema, para mim, se vinculava sempre a um homem. Tornei-me jornalista e mais tarde produtora, foi só através da construção de um pensamento crítico que pude me libertar de certas amarras e reconhecer, que se eu quisesse, eu poderia sim ser uma diretora de cinema. Em contrapartida, esta falta de representação das mulheres, principalmente na história do cinema, faz-me questionar sobre as relações entre estética e política. Quais histórias são contadas nas narrativas cinematográficas? De que modo? Para quem e por quê? Que tipo de personagens são mais comuns nestas narrativas?

O problema do sujeito único – e por consequência, da perspectiva única – que permeia as discussões feministas traz para a análise do cinema a busca da subjetividade dos personagens. Para nós, críticas e realizadoras feministas, esse sujeito sempre foi o masculino.  Quando no filme a mulher se torna o objeto de contemplação e não consegue participar da ação significante, ela estigmatiza um papel que será reproduzido na sociedade. É assim também no cinema… as mulheres são objetos de contemplação tanto no espaço diegético – isto é, dentro dos filmes – como na própria historiografia do cinema. Mas como podemos mudar esta realidade?

Alice Guy Blaché encenando no filme escrito e dirigido por ela mesma, A senhora tem vontades (1907). Em seus filmes as mulheres têm papéis assertivos.

 

Como sujeitos críticos e artistas de seu tempo, nós, enquanto cineastas, deveríamos priorizar um cinema de mulheres[2]. Com esse termo, o que Teresa de Lauretis propõe é que se faça um cinema em que possa ser respondido o apelo “por uma nova linguagem do desejo”, isto é, um cinema que construa outra medida para o desejo e dê condições de visibilidade para um sujeito social diferente.

Em oposição a Laura Mulvey[3], Lauretis não argumenta contra o prazer visual ou o ilusionismo (para a teórica, esses dois artifícios são inerentes ao cinema), mas pela presença de outros olhares na linguagem cinematográfica. Dentro de um cinema feminista, haveria de se evitar a supressão das diferenças – de qualquer ordem. Logo, a estética feminista no cinema tem a necessidade de retratar a figura feminina não como “a mulher”, por meio da mesma imagem repetida, mas como sujeito em sua heterogeneidade.

O que a noção de representatividade propõe é que, por meio da diversificação entre os produtores de significado, no caso, os cineastas, seria possível também uma abordagem temática e estética diversificada.

Como os meios de produção e os realizadores em audiovisual influenciam nas representações do mundo? Levando em consideração a sociedade patriarcal, em que os produtores de significado são, em sua grande maioria, homens brancos heterossexuais, estas obras cinematográficas acabam por refletir a mesma dinâmica, bem como as próprias relações dentro desses meios de produção: o processo é o produto e vice-e-versa. Uma indústria de cinema que é patriarcal, hierárquica, onde as relações de poder são opressoras, resulta em produções cinematográficas que revelam estes estilos de vida, por mais que sutilmente.

Ao pensarmos em diversidade estética e temática no cinema (em busca de um cinema feminista), seria preciso, então, pensar em diversidade não só relacionada aos produtores (mulheres, negras, trans, gays), mas também aos próprios meios de produção. Ao analisarmos dessa maneira, um cinema feminista não seria apenas um cinema de mulheres ou para mulheres pautado na diferença sexual; um cinema feminista seria aquele que discute a linguagem hegemônica patriarcal em prol da diversidade:

1) Nos meios de produção cinematográfico – buscando modelos distintos de produção, distribuição e suporte;

2) Entre os realizadores – pela valorização de cineastas com experiências de vida e olhares diversos;

3) E de temáticas que foram excluídas por pertencer ao “universo feminino”, sendo consideradas menores – a sensibilidade, a intimidade, a poesia, a conversa, a vida privada.

Entretanto, essa discussão, muitas vezes, acaba sendo realizada distante da perspectiva histórica e feminista, ignorando o problema da identidade política e a questão da experiência na construção da subjetividade e na significação do real.  Exemplo é a dissertação O Cinema Brasileiro de 1961 a 2010 pela Perspectiva de Gênero (2011), de Paula Alves, da Escola Nacional de Ciências e Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ence/IBGE), em que se constata que a presença de profissionais do sexo feminino na cinematografia nacional sempre foi menor do que profissionais do sexo masculino. Até os anos 1930, só há registro de uma mulher na direção: Cleo de Verberena (1909-1972). A sua produção mais conhecida foi O Mistério do Dominó Preto (1930), filme mudo que conta uma história de suspense envolvendo temas como assassinato e traição.

Nos anos seguintes, o aumento foi de duas a três cineastas por decênio, o que evidencia uma discrepância entre os diretores e diretoras. Com o início da Embrafilme, esse número aumentou, mas a entrada da empresa estatal não conferiu simetria entre gêneros nas produções. Tal panorama pode ser mais bem observado na Tabela 1, da dissertação de Paula Alves (2011):

A pesquisa mostra que, entre as décadas de 1960 e 2010, os cargos de comando decisório (direção, produção, roteiro e fotografia)24 na produção cinematográfica são ocupados majoritariamente por profissionais do sexo masculino. Entre as cineastas que fizeram carreira nesse período estão Carla Camurati, Laís Bodanzky, Tata Amaral, Eliane Caffé, Monique Gardenberg, Suzana Moraes, Mara Mourão, Rosane Svartman, Daniela Thomas, Sandra Werneck, entre outras.

Quanto aos protagonismos nas narrativas, a assimetria também acontece, como mostra a Tabela 2

Os corpos importam não exclusivamente pela sua marca social, mas também pelo modo como o corpo experiencia a vida, um corpo que transcende para além da sua carcaça. É nesse sentido que nem sempre um filme feito por mulheres vai comunicar, por exemplo, uma mensagem feminista. De qualquer forma, continuamos a pensar criticamente em diretrizes para um cinema feminista, enquanto aquele que desafia a linguagem e os modos de produção simbólica. Maria Célia Selem escreve em seu livro Políticas e Poéticas Feministas “Dizer que não existe um olhar feminino essencial não é o mesmo que negar os séculos de priorização do olhar masculino – que pode ser interrogado por outras perspectivas e experiências, como as das mulheres.”

Não se trata de pensar uma identidade sexual determinante, mas de entender o cinema como pensamento/criação atravessado pela subjetividade. Façamos um cinema feminista!


[1] KEMP, Philip (Ed.) Tudo Sobre Cinema. Rio de Janeiro: Sextante.

[2] O termo “mulher” é utilizado neste texto segundo a argumentação de Mulvey e Lauretis, o ser socializado como do gênero feminino.

[3] Em seu mais famoso artigo, Visual Pleasure and Narrative Cinema, Laura Mulvey analisa filmes do cinema hollywoodiano clássico sob a perspectiva da psicanálise e teoriza o cinema segundo os conceitos de escopofilia, fetichismo e voyeurismo. Ela entende o cinema feminista como aquele que destruiria o prazer visual em busca de outra linguagem.

CRÍTICA OU AUTO-AJUDA: ASSISTIR A MUITO ROMÂNTICO FOI MUITO ROMÂNTICO

Esse texto deveria ter sido escrito há muito tempo, quando o Muito Romântico não saía da minha cabeça, mas não estava interessada em investigar as fronteiras entre a ficção e o documentário tão presentes no filme. Também não queria tentar desvendar qual é a nova sacação do cinema contemporâneo, muito menos se tratando de filmes brasileiros, tão díspares e marcados por um cenário histórico cheio de curvas e buracos. Na época queria apenas suspirar por escrito e dizer que assistir Muito Romântico foi muito romântico, porém a ideia foi se tornando mais ambiciosa.

Já faz mais de um ano que o filme estreou nos cinemas brasileiros, assisti na última sessão antes dele sair de cartaz, lá no Cinema Itaú do Casapark. Passado o tempo, a empolgação não é mais a mesma, as coisas mudam, o viés desse texto já mudou, mas minha procrastinação ainda persiste em me atrapalhar a fazer coisas importantes. Sou medrosa e prefiro sonhos megalomaníacos à realidade dispendiosa. Mas escrever esse texto virou uma questão de honra e fechamento de um ciclo, tenho que aprender que somos formigas empilhando grãozinhos!

A partir dessa minha frase de autoajuda, lembro também de um ótimo conselho que o filme me deu: em uma das primeiras sequências, Gustavo, interpretando ele mesmo (Gustavo Jahn, o diretor e roteirista do filme), coloca um papel de parede no seu apartamento com a ajuda de um amigo, esse por sua vez diz a ele que precisam se concentrar mais no trabalho, que tem certeza que ambos ainda vão fazer coisas brilhantes. ‘‘Não dá mais pra desperdiçar tempo com festas, pessoas, drogas, bebida, você sabe. A gente precisa produzir”, afirma o amigo alemão.

Em seguida entra em cena Melissa (Melissa Dullius, a também diretora e roteirista do filme), a outra moradora do apartamento de um cômodo só, ela segura um espelho bem grande e pesado. Melissa e Gustavo são um casal de cineastas brasileiros arrumando a vida em um novo apartamento em Berlim, cidade em que moram faz alguns anos. Os dois penduram o espelho na parede, o amigo se observa nele e em seguida os dois também repetem a ação. Coloco aqui esse momento como um exemplo marcante de uma presença que acompanha todo o filme: a observação da vida, das coisas, pessoas, hábitos, memórias, sentimentos e até das mudanças estéticas de Berlim. Acho que o argumento do filme é uma revisitação à toda relação do casal que cresce para além deles e movimenta mais pessoas e situações, mesmo o carvão da narrativa sendo eles.

Muito Romântico é a junção de muitos grãozinhos empilhados pelos dois realizadores, nove anos de grãozinhos de haleto de prata que formam uma bela pirâmide faraônica. Apesar de ter estreado na Berlinale e ter conseguido distribuição no Brasil, sinto que o filme não foi totalmente descoberto ainda. Gostaria de poder conversar com mais amigos do cinema sobre esse filme, assim como fazemos com outros que seguem uma produção bem mais industrial e setorizada. Em uma entrevista para o canal no Youtube da Ccine10, Melissa revela que a forma como o filme foi feito é um reflexo da forma como eles sempre fizeram cinema, desde o começo, independente e colaborativo.

É um trabalho árduo e analógico, filmado em película. Começou com filmagens realizadas no navio cargueiro os levando à Europa, e nove anos depois se transformou nesse filme, que se inspira em histórias que aconteceram e cria outras, como diz Gustavo na entrevista para a 40ª Mostra Internacional de Cinema. Eles se expõem com ousadia, mostram seus próprios desafios e fraquezas, os sentimentos vividos em cada fase da vida, uma vida cinematográfica e corajosa. Acho necessário enfatizar esses adjetivos.  

Falando em coragem, acho justo dizer que quando escavei esse filme não estava sozinha, estava com meu ex-namorado em nossa última (e única) comemoração de aniversário de namoro. Nosso relacionamento estava naquela crise que antecede o término. Por ideia minha fomos ao cinema para ver se as coisas melhoravam. Esse passeio prometia ser a solução para o meu coração angustiado, mas o silêncio entre eu e ele era brutal e irreversível, apesar do blazer e da camisa social que ele vestiu para fazer graça e me deixar constrangida naquele lugar chique.

Lembro bem desse dia e do filme, não consigo pensar neles separadamente. Foi uma experiência de catarse a longo prazo, um ano maturando pensamentos. Na época o filme me fez refletir a busca do casal por individualidade, a origem da inspiração artística e outras coisas mais sensoriais e emotivas que filmar em película cai muito bem, escolha deles que vai além do atual fetiche pela imagem com grãos, afirmo isso porque sei que, lá em 2011, eles já deram um oficina de revelação de película no Janela de Cinema em Recife.

Assisto ao filme de novo para escrever esse texto, e constato que algumas dessas inquietações já foram iluminadas, a partir de então nasce um olhar mais teórico e formal, que busca referenciais interpretativos e comparativos para compor esse texto.

De primeira, do que mais me lembrava era a voz calma de Gustavo, junto às imagens veranis azuis e vermelhas bem combinadas que relaxavam e acalentavam as minhas mãos geladas e meus olhos cabisbaixos que não viam nada bonito há tempos. Lembro que peguei na mão do meu ex, para aquecer a minha, era como se quisesse também que a voz do Gustavo fosse a dele, e que me deixasse calma, mas ele soltou a minha mão bem rápido sob o pretexto de comer pipoca.

O filme começa com imagens realizadas pelo casal em um navio cargueiro, um filma o outro em diferentes momentos da viagem. É interessante observar como um amante observa o outro. As imagens são da época em que eles partiram do Brasil em direção à Alemanha, isso é contextualizado através de uma carta a uma amiga que Gustavo lê em voice off contando o quanto eles estão otimistas com a nova empreitada. Começa aí o resgate da memória, relembrando uma época que já passou mas como se estivesse acontecendo naquele tempo cênico. Essa escolha será feita também em outros momentos como os da leitura de diários antigos. O próprio Gustavo diz em uma cena que são escritos para o futuro e não para o presente.

O processo estético do filme mescla o fazer experimental com o documental e o ficcional, mas defini-los cartesianamente não é relevante porque não é possível mapear perfeitamente as fronteiras de cada dentro do filme. Não saberemos o que aconteceu e o que não aconteceu, se o bilhete de amor que Gustavo encontra nas coisas de Melissa foi de fato real ou não. Foi real para os personagens, assim como todo o processo de Gustavo se tornar um Dom Casmurro de apartamento e de Melissa se sentir sufocada, como representado na cena em que ela emerge afoita de um mar de roupas.

A narrativa cresce em uma estrutura de ficção que possui um suave arco dramático com início, meio e fim culminando na abertura de um buraco negro que rompe o tempo e o espaço num cantinho da parede do apartamento. Há um uso do Deus Ex Machina sem receio, subversivo. No entanto, a estrutura narrativa é secundária, menos importante que as sensações que jorram de forma picotada, alternando o ritmo entre veloz e musical. O filme valoriza o que é feito a mão, o Do It Yourself punk que guia os Black Bananas sem medo do ridículo, e isso é tão sentido que o espectador relaxa na cadeira do cinema e ri.

Cinema é um fluxo de energia muito potente, e isso me lembra da parte do filme em que era exibida uma sequência de fotografias passadas rápidas, o movimento delas gerava um estrobo na tela do cinema e esse movimento das imagens aliado ao jeito barulhento como eu comia a pipoca e tomava o refrigerante no canudo deixou meu ex tão louco que ele apelou e começou a chacoalhar a pipoca e abrir e fechar a garrafa da Coca-Cola cheia de gás, criando um som de chaleira musical ou um beatbox desconsertado, rimos alto na sala quase vazia e o clima ficou mais leve, a energia da tela foi recebida e dispersada partir da recepção particular de cada um. Ressalto que a relação público e obra não é passiva.

O filme é uma colcha de retalhos feita de pedaços assimétricos costurada por mãos que não usam dedal, como vemos a metalinguagem, de forma literal – mesmo –, na cena em que os personagens ateiam fogo em uma colcha de retalhos, criando uma representação tangível do discurso do filme, de misturar tudo e ao mesmo tempo negar conceituações. É defendido que a sensação é mais importante que a narrativa, o sentir é diferente e mais importante do que o saber.  Ativar sensações se torna mais importante que qualquer limite formal, que a união racional de acontecimentos e que apego à mise en scène, características do cinema clássico. Ideias que pertencem ao conceito de cinema de fluxo desenvolvido pelo pesquisador Luiz Carlos Oliveira Jr(1).

E quanto à mise en scène, há um processo intenso de autofabulação pelos personagens-roteiristas, e esse conceito é abordado pela pesquisadora Mariana Baltar. A partir desse estudo, fica a reflexão e a curiosidade de saber como foi a preparação para performar em frente às câmeras do Muito Romântico, pois há um confrontamento direto do eu e do facework, autoimagem que o indivíduo adota ao interagir com os outros em diferentes grupos, nesse caso com os amigos que participam da produção e com o público.

Não é possível constatar de forma clara os momentos em que essa gestão da autoimagem dos personagens é visível, ou que ela vem a falhar, ou até mesmo os momentos nos quais essa falha é criada intencionalmente no roteiro, comparando esse filme com ”Jogo de Cena” do Eduardo Coutinho, por exemplo. Falhar nessa gestão da autoimagem significa revelar alguma ação não prevista ou previamente refletida, como uma fala espontânea e talvez embaraçosa, o riso, o choro, a gaguez e etc.

Eles parecem muito à vontade dentro desse universo que criaram, não é possível perceber o desconcerto frente ao dispositivo cinematográfico, dialogam face a face sem timidez, enfrentam a câmera, outros personagens, equipe e o público. Houve algum momento de falha na gestão da autoimagem nesses momentos de interação intersubjetiva? O que no feitio do filme eles não conseguiram controlar? O que descobriram nesse processo? Fica a curiosidade do meu imaginário que talvez tenha assistido a filmes demais.

NOTAS SOBRE INTRIGAS FEMININAS

O termo sororidade tem sido muito utilizado nas discussões e rodas feministas dos últimos anos. Uso a palavra aqui no sentido de solidariedade entre mulheres em relação à opressão masculina e a experiência vivida em culturas patriarcais, sem cair, entretanto, na ideia de que existe um sentimento “natural” de amizade entre mulheres. Enquanto os papéis de gênero aproximam a noção de disputa amorosa a rivalidade feminina, a empatia entre mulheres pode ser um artificio para desconstrução do patriarcado. Estereótipos que reforçam os papéis de gênero ao invés de subvertê-los foram, por vezes, representados no cinema nacional e internacional. Trago aqui alguns exemplos da representação da complexa relação entre mulheres que oscilam entre a solidariedade e a rivalidade no cinema brasileiro contemporâneo.

O documentário A falta que me faz da diretora Marília Rocha apresenta a história de quatro jovens (Alessandra, Valdênia, Priscila e Shirlene) que habitam o município de Curralinho, Minas Gerais. É uma narrativa sobre afetos e sobre as marcas que eles deixam não só na alma, como também nos corpos, no ambiente, na vida que circunda os indivíduos afetados.

A narrativa se inicia com uma das meninas marcando em seu corpo o nome do namorado. A temática amorosa irá permanecer durante boa parte do filme e, principalmente, durante a cena emblemática de Priscila ao contar que Valdênia tinha lhe traído ao ficar com seu namorado.

Marília (diretora): Priscila, da outra vez que a gente veio aqui, a Valdênnia falou que você era a melhor amiga dela

Priscila: Agora acabou, ela traiu minha confiança.

Enquanto conta o acontecido, Priscila arremessa pedras no lago, no extracampo, não dá para saber até onde elas chegam, talvez uma metáfora para a relação da personagem com a amiga: não sabemos de fato como elas se relacionam. No começo do relato, Priscila fala em traição, mas depois diz que tudo acabou se resolvendo e as duas voltaram a se falar. O plano que antecede (caminhando) e o plano que sucede (água) o relato de Priscila destacam o ponto de reflexão de um conflito que depois de solucionado desagua na submersa complexidade dos afetos.

Quando Priscila finda o relato sobre as imbricações amorosas dela e de Valdênia (Priscila também ficou com o ex-namorado da amiga), ela inicia uma reflexão sobre o casamento e como são poucos os horizontes para as mulheres daquela realidade: casar e ter filhos. Priscila acredita que casamento não dá certo, muito menos casamento por amor, é mais interessante “casar por conveniência”.

Ao relatar a traição da amiga, Priscila logo faz o mea culpa e, ao invés de se colocar em um papel de vítima, ela complexifica a relação de amizade das duas. Ao falar do casamento, Priscila reflete sobre a realidade comum das mulheres daquele lugar.

   

No longa mais recente da mesma diretora Marília Rocha, A cidade onde envelheço, premiado no 49º Festival de Brasília, vemos também outra relação de amizade entre mulheres. Duas portuguesas imigrantes no Brasil. “A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa. Nesta produção, não vemos intrigas amorosas entre as amigas, mas conflitos cotidianos pela diferença de personalidade das duas em contraposição a sua nacionalidade. São pedaços de vida retratados em um longa que preza pelo o retrato da intimidade e do cotidiano como construção das relações de amizade.

Em Amor, plástico e barulho as protagonistas também possuem algo em comum: o sonho de se tornar estrelas do brega no Brasil. Para contar esta história, Renata Pinheiro não só se apropria da estética do brega, repleta de cores, sons e dança, mas bem como das histórias “por trás da fama”.

Jaqueline (Maeve Jinkings) e Shelly (Nash Laila) são cantoras na cidade de Recife (PE), a primeira com mais experiência, já Shelly acaba de iniciar a carreira como dançarina na Banda Amor com Veneno. A relação das duas personagens transita entre a rivalidade e a admiração. Shelly enxerga em Jaqueline sua inspiração e por isso deve traçar o mesmo caminho que a musa, inclusive namorando com o ex de Jaque, o cantor famoso da banda Amor com Mel.

A produção reflete sobre a lógica da fama. Jaqueline compara o sucesso com um “copo de plástico”: descartável e efêmero. Neste meio, as mulheres “servem” para ser musas – motivo da música – ou dançarinas – corpos que rebolam, no mais, tornam-se descartáveis, como o próprio sucesso do qual Jaqueline fala.

Entre as intrigas e a admiração, tanto Jaqueline como Shelly reconhecem seus defeitos e suas agruras. Presas no campo da “afetividade feminina”, elas se consolam bebendo e dançando juntas.

No filme de André Novais, Ela volta na quinta há uma abordagem mais comum desta rivalidade. Maria José e Noberto passam por uma crise no casamento. O conflito, no entanto, não é exposto, ele é colocado sempre nas entrelinhas. A interpretação não é nenhum pouco melodramática, mas naturalista. Não à toa, Novais utiliza a própria família para encenar um drama ficcional. Noberto tem um relacionamento extraconjugal, Maria descobre, mas tão pouco se desespera – ao contrário de Amor, plástico e barulho, aqui a estética não é do excesso, mas do sutil. Maria resolve fazer uma viagem e só volta na quinta-feira, fato que dá título ao filme.

O sentimento de raiva de Maria se volta mais contra a outra companheira de Noberto do que contra ele próprio. É interessante observar uma senhora idosa como Maria chamar uma outra mulher de ‘vadia’, denotando o ciúme em relação ao marido que ela jamais demonstra, no entanto, sente.

Esta rivalidade entre as mulheres ocasionada pelo ciúme é menos problematizada no filme de Novais, que apesar de abordar os afetos em seu estado poético cotidiano, re-apresenta uma visão recorrente em relação a disputa feminina. Percebe-se que a personagem de Maria é sensível, forte e interessante, entretanto acaba por ser minada pelos conflitos de Noberto, que seriam “mais importantes” dentro da trama, reforçando uma perspectiva patriarcal dos relacionamentos.

PELO SENTIDO ABERTO: AS PEQUENAS MARGARIDAS

Em 1966, quando a diretora tcheca Věra Chytilová lançou seu filme mais conhecido, As pequenas margaridas (Daisies, no original), o Partido Comunista da Tchecoslováquia não viu com bons olhos a produção. Maria1 e Maria2, as Daisies, são duas jovens meninas que aprontam pela cidade diante um niilismo incomensurável. Acusado de indecente e pessimista, o filme de Chytilová teria cometido um grande absurdo: o enorme desperdício de comida (o filme é composto por cenas homéricas em banquetes) diante do cenário catastrófico do pós-guerra.

Além disso, o governo denunciava a diretora por não compartilhar dos ideais comunistas, criando uma ambiência de pessimismo em relação ao regime. Em atitude controversa (para bom leitor, meia palavra basta), Chytilová alegou que, na realidade, o que estava fazendo com seu filme era justamente uma crítica às suas heroínas, moças bobas que não pensavam em nada além de si mesmas e que, no final, ainda são punidas.

“Daisies era um jogo de moralidade mostrando como o mal não se manifesta necessariamente em uma orgia ou destruição causada pela guerra, que suas raízes podem estar escondidas nas brincadeiras maliciosas da vida cotidiana. Escolhi como minhas heroínas duas moças, porque é nesta idade que a pessoa mais quer se satisfazer e, se deixada a si própria, sua necessidade de criar pode facilmente se transformar em seu oposto.”

Carta de Věra Chytilová ao presidente Gustav Husák, em 1975.

A justificativa de Chytilová parece mais como uma desculpa, no sentido: “Deixa eu falar o que eles querem ouvir” do que uma leitura realmente crítica sobre o papel de suas protagonistas. Justificativa plausível, diante dos seus sete anos sem trabalhar, impossibilitada pela censura do governo no final dos anos 1960.

Proponho aqui uma terceira leitura para Daisies, que mescla a perspectiva subversiva da narrativa (temerosa aos governos totalitários), a resposta um tanto cínica de Chytilová (crítica a um certo hedonismo das protagonistas) e a busca por uma estética feminista no cinema.

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Você se importa? Não, eu não me importo.

A abertura já nos dá um indício de que este é um filme fragmentado. Planos de um maquinário são entrepostos com cenas de guerra e explosão: o progresso científico não necessariamente trouxe a ordem, a paz, “os bons costumes”.  A modernidade fracassou. Mas se tudo vai mal no mundo, que tal sermos maus também? Essa é premissa das Marias, que com o jargão “Você se importa?” x “Não, eu não me importo”, passam a agir de forma a quebrar a ordem social pré-estabelecida.

Há um niilismo em suas ações, mas não do tipo apático. Para as Marias, já que nada importa, nada é menos importante: qualquer situação é uma possibilidade para a criação, para o divertimento. Um passeio no jardim se transforma em uma bela dança coreografada, um jantar com um velho rico é uma ótima oportunidade para saciar a fome de anos, e ainda, testar as habilidades cênicas ao enganar o homem. “Estamos ficando cada dia melhor nisso”, revela uma das Marias, ao terminar com uma risada estrondosa.

Ainda, justificando o papel de suas protagonistas, Chytilová definiu o filme como um “documentário filosófico sob a forma de uma farsa”, uma “comédia bizarra com fios de sátira e sarcasmo”. Disse ainda que “nós [os cineastas] queremos desvendar a futilidade da vida no círculo errôneo de pseudorrelações e pseudovalores, que leva necessariamente ao vazio das formas vitais, na postura de corrupção ou de felicidade.” A crítica de Vera ao hedonismo das duas personagens se configura menos como uma questão de quebra da ordem social quanto à desimportância dada aos afetos, aos vínculos. Talvez Marias estivessem certas em questionar o status quo, no entanto, não o fizeram da “maneira mais adequada”. Afinal, existe maneira adequada de subversão?

Daisies não conta história alguma senão sobre destruição. Não há um “fio narrativo” ou “desenvolvimento dos personagens”. As Marias simplesmente existem. E destroem o que veem pela frente: seja enganando, roubando, seja picotando, seja dando boas gargalhadas no quarto. Mas por que esta obsessão pelas ruínas? É que as margaridas não se contentam com o velho. O sarcasmo infantil presente nas duas personagens não tem nada de inocente, mas sim perverso. O primeiro passo para o novo é o estrago do velho, daí a metáfora da guerra. As Marias não necessitam de armas, entretanto, de sua “feminilidade”.

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Por uma estética feminista

Críticas feministas abordam o assunto da “feminilidade” por perspectivas diversas. Uma delas a vê não como um essencialismo, mas como uma parte estratégica do feminismo. Ao que ademais já está dado como certo que as perspectivas feministas, por vezes, destoam. Posicionamentos à parte, o que percebo no filme de Věra Chytilová é justamente o uso estratégico do discurso sobre o “feminino” para propor não apenas discussões feministas, mas uma estética própria.

Para além das desventuras amorosas das Marias, que seduzem os homens que encontram pela vida, a “feminilidade” é colocada de forma alegórica por Chytilová, principalmente, em certos momentos que escapam a narrativa, que estão fora do “discurso da ordem”: entre as sequências de As pequenas margaridas, nos deparamos com de planos de flores, borboletas, vestidos, etc. E por quê?  Como forma de crítica, é claro, mas, paradoxalmente, como afirmação. Discordando da própria autora, penso que de “bobas”, as Marias não têm nada. Colocar em pauta no discurso fílmico as borboletas, as flores, os vestidos como reais significantes da trama e não apenas como adorno é a perversão em relação ao discurso lógico que preconizava esses elementos como “acessórios”.

Chamo a atenção para situações no filme que tocam explicitamente a questão do feminino, e claramente, se estabelecem sob uma leitura psicanalítica: em primeira instância, a fome insaciável das duas personagens, simbolizando uma falta – a famosa inveja do falo freudiana; aqui, entretanto, gostaria de apontar para uma segunda interpretação: a fome é mesmo por um sentido, a busca por um significado de “ser mulher” que já não é esse imposto pela sociedade patriarcal. E é, exatamente, por isso, que Daisies é um filme nonsenseNonsense, pra quem?

Em outra cena, as personagens se deliciam ao picotar alimentos que possuem formas fálicas: um picles, uma banana, um ovo cozido. A fome é tanta que já não bastam os alimento reais. Em revistas de supermercado (um clássico da dona de casa), uma das Marias recorta a figura de um bife e mastiga o papel em sua boca. A picotagem não para. Chegando ao cúmulo de se automutilarem com a tesoura: as cabeças ficam para um lado, enquanto as pernas para o outro. Relembro Laura Mulvey, que disserta em seu famoso ensaio Visual pleasure and the narrative cinema sobre o aspecto fragmentado da mulher nos grandes clássicos do cinema hollywoodiano.

As pequenas margaridas não é um filme fácil. Claro que, lhe falta uma crítica interseccional em relação ao feminismo: a luta de classes, o racismo, – principalmente em pós-guerra, que elucidava estas questões. No entanto, mais do que sua narrativa, a sua estética transgride: propõe outras lógicas de sentido, em um discurso aberto, daí sua estética subversiva, pois então, feminista.

Vale lembrar, entretanto, como dito no início do texto, que Věra Chytilová é uma cineasta de afirmações constroversas. Em entrevista ao The Guardian, por exemplo,  ela afirma não ser uma feminista per se, mas uma individualista.  “Se há algo que você não gosta, não siga as regras – quebre-as. Eu sou uma inimiga da estupidez e do pensamento simplista, tanto em homens quanto em mulheres”,  declara – fugindo do senso coletivista e político do movimento. Com Vera Chytilová negando ou não a alcunha de feminista, o fato é que Daisies encontra-se como uma expressão estética, que não sendo fechada em si mesma, reflete no campo político, quando atua na percepção e na interpretação do mundo.

Referências

Artigo sobre Věra Chytilová e o filme Daisies: Dolls in Fragments: Daisies as Feminist Allegory Journal Issue: Camera Obscura, 47(16.2) Lim, Bliss Cua, UC Irvine http://escholarship.org/uc/item/5mr9482p

Reportagem do NY: http://www.nytimes.com/2012/07/01/movies/daisies-from-the-czech-director-vera-chytilova-at-bam

5 MULHERES QUE SOBREVIVEM NO CINEMA DE HORROR

Em 1993, a pesquisadora Carol J. Clover cunhou um termo para caracterizar uma personagem típica dos filmes de serial killers que ficaram conhecidos como slasher. Tratava-se da Final Girl. Era ela quem, ao final do filme, permanecia viva.

Hoje, vê-se a Final Girl como uma espécie de heroína feminista, a última sobrevivente de um massacre, triunfante e vingada. E, embora algumas dessas características tenham algum fundamento, uma análise mais profunda nos permite ter uma visão mais completa. Enquanto Clover dedicou um longo estudo aos papéis de gênero nos filmes de horror, o conceito que ela criou parece ter se perdido com o tempo devido a sua apropriação pouco aprofundada pela cultura pop.

O horror tem um efeito tão forte sobre seus espectadores por comunicar medos e desejos reprimidos que temos como sociedade e, como os contos de fada, ele possui duas facetas: a que apoia as instituições vigentes (não vá para a floresta, não faça sexo, obedeça seus pais) e a anárquica, na qual tradições e regras são questionadas. Os filmes da Final Girl típica geralmente se encontram nessa primeira categoria. As últimas sobreviventes desses filmes são adolescentes que não fazem sexo, não se interessam pelas mesmas futilidades que as “outras garotas” e que muitas vezes possuem nomes andróginos e hobbies “masculinos”.

A Final Girl está ali na capacidade de vítima-herói. Herói por sobreviver até o final e, por vezes, por matar o vilão (mesmo que seja por puro acaso). Vítima por ter passado as últimas duas horas se escondendo, fugindo, caindo, sentindo dor, sendo perseguida, aterrorizada e vendo todos os seus amigos (especialmente as amigas) morrerem de forma brutal. Ela é “masculinizada” pelo seu nome, hobbies e, por vezes, aparência para que o espectador masculino possa se identificar com ela na capacidade de herói, mas ainda é uma mulher, e portanto pode ser torturada e vitimizada. A identificação com ela parte de um prazer sadomasoquista.

Com isso, não pretendo dizer que não há nada de subversivo sobre a Final Girl. A sua existência, que surgiu em filmes slasher marginalizados e de baixo orçamento dos anos 70, marcou uma presença feminina cada vez mais forte no cinema e permitiu o início de um debate muito pertinente sobre gênero no horror. Essa lista vem tanto para celebrar quanto questionar o papel da Final Girl no cinema.

A PRÉ-FINAL GIRL: Jess de Noite do Terror (1974)

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Embora, oficialmente, a primeira Final Girl só tenha surgido em 1978 com Halloween, vários filmes de horror antes disso já traziam personagens com características que muito se assemelhavam ao que viria a ser a Final Girl clássica. Dentre elas podemos citar Sally do Massacre da Serra Elétrica (1974) e Lila de Psicose (1960) como um protótipo ainda mais conservador e distante da eventual Final Girl.

Jess, do filme canadense Noite do Terror, é um exemplo interessante. Como a Final Girl clássica, ela tem um nome que poderia ser masculino ou feminino e é a última sobrevivente de uma série de assassinatos que ocorrem dentro da casa onde ela e várias amigas moram. O que a diferencia é sua vida sexual ativa e sua gravidez revelada durante o filme. O fato de ela estar decidida a abortar é particularmente surpreendente e mostra a faceta anárquica da obra.

A PRIMEIRA FINAL GIRL: Laurie de Halloween (1978)

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A primeira Final Girl foi imortalizada pela atriz Jamie Lee Curtis no papel de Laurie no filme Halloween. Diferentemente dos protótipos de Final Girls que vieram antes dela, Laurie foi uma das primeiras “última-sobreviventes” que teve um papel ativo e, em algum nível, bem sucedido na ação do filme. Ela não só se esconde aterrorizada, mas também procura se defender e ferir seu algoz.

Quando Halloween estreou, entretanto, a participação ativa feminina no filme não foi suficiente para convencer os críticos que isso significava uma mudança nos papéis das mulheres no cinema de horror. Andrew Tudor escreveu na época: “Mulheres sempre apareceram como vítimas no cinema de horror, então é esperado que elas pareçam mais proeminentes num período de centralidade da vítima. Se isso significa uma nova estrutura dos papéis de gênero nesse tipo de filme já é outra questão.” Felizmente, ele estava errado quanto a sua última afirmação e desde a primeira Final Girl o horror protagonizado por mulheres ativas se desenvolveu bastante. Por outro lado, não podemos ignorar seu primeiro comentário: a entrada das mulheres no protagonismo do horror se deveu a sua qualidade como vítima.

A FINAL GIRL E BECHDEL: Ripley de Alien, o Oitavo Passageiro (1979)

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Em Alien, o Oitavo Passageiro, a Final Girl  saiu do slasher para entrar na ficção científica. Subtenente Ripley é a última sobrevivente de um massacre que acontece na nave espacial Nostromo. Extremamente competente e racional, traços geralmente reservados para os personagens masculinos, Ripley permanece viva pela sua engenhosidade e inteligência. Sua androginia é reforçada também pelo fato de a conhecermos por sua patente e sobrenome (o que não impede que ela seja objetificada em cenas que aparece de camiseta e calcinha).

Alien foi mencionado em uma tirinha de Alison Bechdel em 1985 como um exemplo de filme que possui duas mulheres que falam entre si sobre algo que não seja um homem. Desde então, o que se consagrou como o “Teste de Bechdel” tem marcado presença na discussão sobre representação feminina no cinema. Passar no teste não significa que determinado filme é feminista, afinal, se trata de uma piada em um quadrinho que não tinha nenhuma pretensão de se tornar uma referência científica, mas é a própria simplicidade do teste que nos ajuda a perceber a pequena presença de mulheres nos filmes. Deveria ser fácil encontrar duas personagens que não existam em função de um homem em uma história, mas o número assombroso de filmes que não passam no teste demonstra o contrário.

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A ANTI-FINAL GIRL: Jay de A Corrente do Mal (2014)

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Mais de trinta anos depois da concepção da Final Girl, vivemos um novo momento do cinema de horror. Como de costume, o horror continua a tratar dos nossos medos e desejos recônditos, logo, conforme os medos e desejos da sociedade se desenvolvem e se modificam, o horror também o faz. Podemos ver isso claramente em A Corrente do Mal. O filme conta a história de Jay, uma garota que começa a ser perseguida por uma assombração após fazer sexo com um rapaz. Se isso parece uma trama conservadora, não se preocupe, a solução não é: Jay tem de fazer sexo novamente para passar a assombração para outra pessoa. Mas se a pessoa morrer, a assombração se voltará para ela mais uma vez.

Diferentemente dos filmes slasher, com seus vilões impotentes e sua ansiedade ao redor da sexualidade feminina, em A Corrente do Mal percebemos outras questões. O sexo aqui pode significar tanto morte quanto vida, a intimidade e a característica líquida das relações contemporâneas são possíveis temas. O filme também se opõe aos slashers pela sua protagonista. Jay faz sexo casual, apresenta características consideradas femininas e seus amigos não morrem e não fogem, permanecem com ela até o fim. Ela é a anti-Final Girl.

A PÓS-FINAL GIRL: Thomasin de A Bruxa (2015)

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Colocar Thomasin como uma Final Girl pode ser uma decisão polêmica da minha parte, mas me permita justificar minha escolha. Apesar de A Bruxa não fazer parte do gênero slasher e se passar numa época muito diferente de todos os outros filmes em que temos uma Final Girl, ele tem como tema central a ansiedade em torno da sexualidade feminina e uma protagonista que sobrevive enquanto todos ao redor dela morrem. É por isso que a considero uma pós-Final Girl: ela ainda possui as características fundamentais da personagem, mas ela expandiu o alcance da Final Girl para outras épocas e gêneros dentro do horror.

Mais importante que essa migração do gênero slasher – que já havia acontecido antes com Ripley em Alien, o Oitavo Passageiro – em A Bruxa temos um filme que definitivamente vai contra as instituições estabelecidas. Se as Final Girls anteriores eram desencorajadas a fazer sexo, em A Bruxa, Thomasin é levada a buscar refúgio na perversidade justamente porque, o que quer que ela faça, será condenada. Apesar do título do filme, a verdadeira vilã da história é a sociedade conservadora em que Thomasin vive.

Damned if you do, damned if you don’t.

POR UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA: A CIDADE ONDE ENVELHEÇO

Portugal em crise econômica. Teresa chega à casa de Francisca para uma temporada em Belo Horizonte. O que sabemos de seu passado está contido em apenas uma foto, em um único plano. A cidade onde envelheço, de Marília Rocha,  ganhador na categoria melhor filme no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é um filme sobre o presente.

“A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa.

Os conflitos culturais aparecem nas falas de Francisca que se incomoda com a audácia brasileira em pedir cigarros o tempo todo, ou mesmo com a falta de senso estético em relação aos azulejos do banheiro: cada um em um tom diferente de azul.  Nessas minúcias, encontramos o que seria o imaginário de cada país. Mas de novo, o singular se coloca enquanto paradoxal: Teresa não vê problema na aleatoriedade dos azulejos, tampouco em chegar de madrugada fazendo barulho na casa da sua anfitriã.

As relações Brasil-Portugal são pano de fundo para uma história que, na verdade, trata-se de afeto, de amizade, de amor. Entretanto, as implicações pertencentes aos imigrantes estão expostas, de forma sutil, porém realista. O sentimento de saudade é compartilhado, já que a palavra existe unicamente na língua portuguesa. A sensação de não-pertencimento também aparece. Teresa corre pela rua e conseguimos ver os espaço da cidade, o concreto, enquanto a personagem narra uma carta destinada a um parente ou amigo em Lisboa. Nela, a portuguesa fala mais sobre suas impressões do que as ações de fato. O estado concreto das coisas não existe. Quando se é estranho a algum lugar, as impressões são mais primordiais do que os fatos em si.

A chegada da amiga assusta Chica, a princípio, que teme perder a sua liberdade e individualidade por morar só no centro de BH. Teresa vai se aconchegando ali naquele apartamento, bem como a própria câmera que também se aconchega entre os afetos rememorados e recém-construídos entre as duas. São vários planos-sequências que no desenrolar da trama vão ganhando aspectos cada vez mais naturalistas, assim como a amizade das moradoras, que de início é permeada por certos constrangimentos, mas ao conquistar os espaços de intimidade torna-se carinhosa.

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Neste sentido, a atuação das duas protagonistas ganha notoriedade. Foram poucos ensaios, com participação da atrizes também na criação do roteiro, a linguagem, assim, torna-se um tanto documental e consegue trazer tons de intimidade ao longo da narrativa.

Este favorecimento do estar junto, do encontrar o outro e partilhar com ele o uso dos prazeres, das emoções, dos sentimentos é o que vai ser o explorado no longa. Poderíamos falar sobre um estilo calcado no presentismo. No entanto, bem diferente do romântico carpe diem – “aproveite o dia, pois ele é belo”. A cidade onde envelheço não só enquanto temática, mas em termos de linguagem e de estética, nos fala muito sobre nossos tempos. O presentismo é aqui calcado numa espécie de materialismo espiritual: só o presente existe, e não nos resta nada mais a não ser aproveitá-lo. É por isso que amizade e as relações talvez pareçam ser mais sinceras, pois não há outro momento para que o afeto aconteça. Muitos colegas que assistiram ao filme tiveram a mesma sensação: “fiquei esperando o momento que as duas iriam se pegar”, mas isso não acontece. O carinho e o afeto de Chica e Teresa poderiam muito bem se misturar com a sexualidade, no entanto, a preocupação é outra: por que não vivemos na materialidade do sentimento? O que impede uma amizade de ser tão afetuosa? Sendo assim, ela logo denotaria o interesse sexual? A amizade, neste sentido, é vivida em sua maior intensidade.

Para além da relação entre as duas protagonistas, o filme busca retratar a subsistência estética em outros aspectos da vida. Quando partem de Lisboa para o Brasil, Chica e Teresa não estão em busca de viver uma vida bem sucedida nos termos do senso comum. Elas buscam mesmo sobreviver. E sobreviver não significa mais do que sentir.

No final, a predileção pelo presente aparece de novo. Francisca vai voltar para Lisboa, mas não avisou a amiga de antemão. Afinal, o futuro existe? O que é certo é que, tanto para Francisca quanto para Teresa, a busca pelo sentido da experiência é um objetivo.


“A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.”
— Fernando Pessoa como Bernardo Soares no Livro do Desassossego

MULHERES SILENCIOSAS: BRILHO DE UMA PAIXÃO

Ainda, ouvir ainda a sua terna respiração,

e assim viver sempre – ou decair à morte.

  • John Keats

Foi apenas em 1878, mais de meio século depois da morte de John Keats, que o público descobriu enfim quem era a misteriosa noiva do poeta e a inspiração para seu famoso poema Bright Star. Frances Lindon casou-se, teve três filhos e morreu aos 65 anos, mas, em 1819 ela ainda era Fanny Brawne ou apenas “my dearest girl” nas cartas de Keats.

Reveladas anos após as mortes de Frances e de seu marido Louis Lindon, as cartas do poeta são consideradas algumas das mais belas escritas na língua inglesa, mas na época em que foram descobertas causaram grande indignação. Keats mostrava faces da sua personalidade que o público não estava preparado para conhecer, sua vulnerabilidade e ciúmes tornavam o idolatrado poeta em um ser humano comum. Essa indignação logo tomou a forma de ódio pelo objeto de afeto de Keats, Fanny Brawne, vista como indigna do seu amor.

As cartas de Brawne para Keats nunca foram encontradas e sabia-se muito pouco sobre como ela correspondia àquela paixão desenfreada, a ideia de que ela era paqueradora e brincava com os sentimentos de Keats foi muito disseminada. É um tanto quanto irônico perceber que as musas dos poetas, aos olhos do público, só possuem valor dentro do poema, no sentido figurado. Uma mulher real, amada profundamente por aquele que é tido como ídolo, nunca seria capaz de chegar aos pés da mulher idealizada do poema. Pois bem. Fanny era real, possuía falhas e nem ao menos se interessava muito por poesia. Talvez por isso Keats tenha se apaixonado por ela, ela amava o John Keats homem, não o poeta, e foi com ele que ela ficou apesar da falta de dinheiro do rapaz – Keats só se tornou célebre após sua morte – e da doença que assolou os últimos anos da sua vida.

A terrível opinião pública sobre Fanny só começou a se alterar décadas depois da descoberta das cartas, com a publicação das cartas da própria Fanny para a irmã de Keats, que demonstravam a firmeza e constância de seu afeto (Estrela brilhante! Queria eu ser constante como sois). Ela passou muitos anos de luto depois da morte do noivo e guardou as cartas dele consigo até a sua morte. Não é de se admirar, então, que Jane Campion, que até então fizera filmes de cunho abertamente feminista, escolhesse fazer um filme que, apesar de aparentar ser um simples romance de época, fizesse parte da tendência de restaurar a reputação de Fanny Brawne perante a História.

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Minha querida Menina,

Neste momento eu me posicionei para escrever alguns belos versos. Não posso prosseguir com nenhum grau de contentamento. Preciso escrever para ti uma ou duas linhas e ver se isso vai me auxiliar a tirar-te da minha Mente mesmo que por pouco tempo. Pela minha Alma, não consigo pensar em nada além de ti – O tempo em que eu era capaz de aconselhar-te e advertir-te contra a desalentadora manhã da minha Vida passou – Meu amor me tornou egoísta. Eu não posso existir sem você – Eu me desleixo de tudo menos de quando te verei de novo – minha Vida parece parar aí – eu não vejo além. Você me absorveu. Tenho a sensação no presente momento como se eu dissolvesse – Eu estaria extraordinariamente infeliz sem a esperança de ver-te em breve. Eu temeria estar distante de ti. Minha doce Fanny, teu coração nunca mudará? Meu amor, mudará? Não há limite para o meu amor – O teu bilhete acaba de chegar – Eu nunca posso estar ‘mais feliz’ longe de ti. É mais rico que um navio de pérolas. Não me ameace nem de brincadeira. Eu já me assombrei que Homens pudessem morrer Mártires pela religião – Estremeci em razão disso. Eu não estremeço mais. Eu poderia ser um mártir pela minha Religião. O Amor é minha religião. Eu poderia morrer por ele. Eu poderia morrer por ti. Meu Credo é o Amor e tu és o único dogma. Tu me arrebataste por um Poder ao qual não posso resistir; e todavia posso resisti-lo até ver-te; e desde quando te vi tenho me empenhado em “argumentar contra os argumentos do meu Amor”. Não posso mais fazê-lo – a dor seria desmedida. Meu Amor é egoísta. Não posso respirar sem ti.

Teu para sempre

John Keats

Em Brilho de Uma Paixão – Bright Star, no original – Campion conta a história do turbulento romance de John Keats e Fanny Brawne, desde seu primeiro contato até a morte de Keats de tuberculose aos 25 anos. Ou talvez fosse mais preciso dizer: desde quando Fanny conheceu John até seu luto após a morte do noivo.

Sabemos da morte de Keats, mas vemos apenas a reação de Fanny ao fato, ilustrando a intenção de Campion: é a hora de conhecer o lado de Fanny da história. Muito foi escrito sobre Keats, sua vida, trabalho e doença esmiuçados à exaustão. Mas o que sabemos sobre a mulher que o inspirou a escrever? O que sabemos sobre sua espera? Sua vida doméstica, seus desejos e planos para o futuro? Nunca saberemos ao certo as respostas para todas essas perguntas. Campion nos conta o pouco que se sabe e preenche as lacunas com lirismo e beleza dignos dos Românticos.

Passamos os três anos entre 1818 e 1821 em Hampstead, onde Fanny mora com sua mãe e dois irmãos mais novos e onde conhece Keats. Assim como o jovem poeta, Fanny também procura escape criativo e o encontra na costura. O filme é permeado pela vida cotidiana dos Brawnes, as aulas de dança dos três irmãos, bailes, caminhadas pela floresta; a beleza do dia-a-dia e da natureza é capturada com pouco movimento, por vezes, estática, lembrando pinturas bucólicas.

O mundo exterior, tanto a calmaria quanto as tempestades, complementam os sentimentos despertados pelos amantes. O início tímido do relacionamento é acompanhado por muitas cenas interiores, uma luz acinzentada. Quando somos confrontados com sentimentos violentos pela primeira vez, Keats encontra-se encharcado no meio de uma tempestade, desolado pelo seus ciúmes e acompanhado por trovões. Ao longo de todo filme o interior e o exterior brigam por dominação, as janelas são portais de contemplação para o mundo de fora e conforme o romance floresce, somos cada vez mais mais levados pela natureza. Em determinado momento, Fanny decide começar uma fazenda de borboletas dentro do próprio quarto em razão de uma carta de John.

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“Eu quase desejo que fôssemos borboletas e vivêssemos apenas três dias de verão. Três dias como estes eu poderia preencher com mais deleite do que cinquenta anos comuns poderiam conter.”

A descoberta da doença de Keats marca a vitória dos espaços interiores. Ben Whishaw interpreta Keats com tamanha melancolia e vulnerabilidade que por vezes eu me pergunto se ele não deveria desistir de qualquer outro papel que não seja de um poeta romântico que morre antes dos 30 anos de idade. Sua atuação é marcante o suficiente para que o protagonismo de Fanny, interpretada por Abbie Cornish, seja equilibrado. Contudo, ao final, Whishaw não pôde dizer as últimas palavras do poeta (Não respire em mim, ela vem como gelo), proferidas em Roma e longe de todos seus amigos e de sua noiva. É Fanny quem vemos, andando pelo bosque com lágrimas nos olhos recitando o poema que ele escrevera para ela.

Sabemos muito pouco sobre Fanny Brawne, e sua história merece ser contada. Precisamos contar as histórias das mulheres silenciosas, que já não podem se defender. Das musas, das amantes, das mães, que sempre apareceram na História em função de algum grande homem cuja vida parecia mais importante. Precisamos de mais Fanny Brawnes restituídas ao seu lugar de direito. Ainda sabemos pouco sobre ela, mas já é um começo. Sabemos que ela amava costurar, que tinha dois irmãos mais novos, que gostava de festas e que ela amou profundamente um certo John Keats que, por acaso, veio a ser um dos grandes poetas ingleses.

SETE PERSONAGENS QUE AMAMOS (E SUA JORNADA PARA A MATURIDADE)

Existe algo sobre histórias de formação que mexe com as emoções do público. Talvez tenha algo a ver com o fato de que qualquer adulto tenha que passar pela experiência de alcançar a maturidade, o que faz das obras que exploram o tema especialmente tocantes e identificáveis. A universalidade das histórias de formação faz delas um assunto explorado repetidas vezes, mas, como de costume, as obras mais celebradas do gênero são protagonizadas garotos brancos tendo que lidar com a chegada da vida adulta. Não que Holden Caulfield não seja um personagem memorável, sua tentativa de fuga do mundo dos adultos é algo com que muitos podem se identificar, mas não podemos fingir que a sua experiência não está profundamente ligada ao seu sexo, cor e status social. Temos que parar de fingir que homens brancos heterossexuais são um padrão em que todos podem se ver. É verdade que pessoas de grupos minoritários – mulheres, negros, asiáticos, gays – acabam por ter que se identificar com ou no mínimo conhecer essas histórias simplesmente porque elas estão em todos os lugares e formam o cânone da arte ocidental. Mulheres que estudam e se interessam por literatura são obrigadas a ler livros de autores celebrados que eram extremamente misóginos. Cineastas negros têm que saber que O Nascimento de Uma Nação, um dos filmes que  marcaram o cinema, glorifica a criação da Ku Klux Klan. Estudar arte, pertencendo a um grupo minoritário, é, muitas vezes, uma experiência masoquista. E isso não começa com os livros e filmes racistas, misóginos e homofóbicos, vem de algo muito mais sutil e insidioso, da experiência de sermos forçados a nos identificar homens brancos e heterossexuais enquanto continuamos a ser desumanizados pela nossa invisibilidade. Essa lista vem como uma tentativa de abrir horizontes, mostrar novas histórias, dizer: estamos aqui. Existimos.

Rae de My Mad Fat Diary

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Os médicos olharam pras minhas pernas e disseram ‘não doeu? Não doeu tanto quando você estava fazendo que queimava respirar?’ Pelo menos elas me lembram que eu sobrevivi. Mas por pouco.

Depois de passar quatro meses numa clínica de recuperação após uma tentativa de suicídio, Rae tem que voltar a conviver com os amigos e a mãe ao mesmo tempo que lida com seus problemas de auto-imagem, depressão e ansiedade. A série trata de diversos assuntos que haviam sido explorados de forma muito tímida por outras séries adolescentes anteriores. A obesidade e o aborto são temas abordados com sensibilidade e consciência, promovendo um debate pertinente e muito honesto. Sem falar da forma sarcástica, cômica e crua que Rae vê o mundo, ela é um presente para espectadores que desejavam uma voz inovadora, engraçada e real.

Shizuku de Whisper of the Heart

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Deve ser ótimo saber o que você quer fazer. Eu não faço a mínima ideia, só vou de um dia pro outro.

É seu último ano do ensino fundamental e Shizuku está pronta pra aproveitar o verão e ler todos os livros de fantasia que encontrar na biblioteca. Não demora muito pra ela perceber que todos os livros que ela pega foram lido antes por um tal Seiji Amasawa, que ela acaba por conhecer e, aos trancos e barrancos, se tornar amiga. Ao descobrir sobre o desejo de Seiji de seguir sua paixão pela confecção de violinos, Shizuku é inspirada a pensar em seus próprios desejos para o futuro e descobrir suas próprias aspirações: tornar-se escritora. Apesar de seus medos e incertezas, Shizuku se entrega completamente à empreitada de escrever sua primeira história, por vezes negligenciando a escola, o que preocupa seus pais. Whisper of the Heart apresenta comentários interessantes não só sobre a procura dos sonhos, mas também sobre o expectativas da sociedade japonesa quanto a escola e busca de carreiras criativas.

Wadjda de O Sonho de Wadjda

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Você, tímida? Quem dera!

Tudo que a pequena e rebelde Wadjda quer é uma bicicleta verde para apostar corrida com o amigo e, depois da recusa da mãe, ela sabe que a única forma de alcançar seu objetivo é utilizar suas próprias habilidades para arrecadar dinheiro e comprar a bicicleta ela mesma. A trama do filme é simples e simbólica. Além de ter sido o primeiro longa-metragem inteiramente filmado na Arábia Saudita, O Sonho de Wadjda foi também o primeiro filme dirigido por uma mulher saudita, sua história aparentemente simples, protagonizadas por mulheres em uma sociedade misógina, mas que continuam a lutar pelos seus direitos e desejos como podem, ganha um aspecto de resistência quando colocado em uma perspectiva histórica.

Estela de Califórnia

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Ah, Estela… Todo mundo tem problemas. É que a gente só repara nos nossos.

O primeiro longa-metragem de ficção de Marina Person conta a história de uma adolescente que sonha em fugir. Fugir de um país sob um governo ditatorial, fugir do pai tirânico, fugir da sua primeira menstruação, que, segundo o mundo, indicava que ela havia se tornado mulher. Ao som de The Cure, Paralamas do Sucesso e Joy Division, vemos Estela descobrir que aquele sangue quatro anos antes nada tinha a ver com se tornar mulher. Vemos sua jornada para a maturidade se desenrolar em livros, amores e desamores, a morte de uma pessoa querida e sua primeira experiência sexual.

Angela de My So-Called Life

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As pessoas dizem o tempo todo que você deveria ser você mesmo, como se você mesmo fosse essa coisa definida, como uma torradeira. Como se você soubesse o que é.

Falar da história de maturação de Angela Chase é um tanto quando irônico porque ela nunca acabou. A série que ela protagonizou em meados da década de 90 nunca viu a luz da segunda temporada devido a sua baixa audiência, mas desde então a série ganhou legiões de fãs e se tornou um clássico cult. Isso provavelmente se deve ao fato que a série, até hoje, ressoa profundamente com o público adolescente devido a sinceridade da sua personagem principal, Angela, entre a angústia com o fim de antigas amizades, a criação de novos laços, problemas com os pais e paixonites adolescentes, vemos diversas reflexões de Angela que por vezes hilárias e comoventes e fazem de My So-Called Life uma série memorável.

Alike de Pariah

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Um coração partido se abre para o nascer do sol porque até a ferida é uma abertura e eu estou partida, eu estou aberta.

A adolescência é uma época difícil para qualquer um, mas pode ser especialmente dura para uma adolescente negra e lésbica encarando e abraçando a sua própria sexualidade dentro de uma família religiosa. Alike tem que lidar tanto com problemas corriqueiros da idade como brigas com a melhor amiga quanto a homofobia profundamente enraizada da mãe enquanto descobre sua própria identidade e percorre o caminho tortuoso para a vida adulta. Desde as roupas que usa até a pessoa por quem ela vem se apaixonar fazem parte de um processo de auto-aceitação e busca de pertencimento que culminam numa ruptura dolorosa e necessária com a família e a infância.

Malcolm de Dope

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Para a maioria dos geeks, um dia ruim pode ser uma piada durante a aula, a ocasional pegadinha com sua comida e, no pior dos casos, levar uma surra dos atletas. Mas quando se mora nos Bottoms, um dia ruim é ser morto por acidente.

No seu último ano do ensino médio, Malcolm Adekanbi ainda está tentando conciliar a sua identidade como um aluno nota 10 com pretensões de entrar em Harvard com a forma que o mundo o vê: um jovem negro criado na periferia de Los Angeles por uma mãe solteira. Em meio a sua busca por fugir dos estereótipos e encontrar o seu lugar no mundo, ele alimenta sua obsessão por cultura hip hop dos anos 90 e toca com seus dois melhores amigos em uma banda punk. Depois de se envolver acidentalmente em uma briga de gangues, ele terá de lidar com tudo que faz parte da sua identidade, inclusive aquilo que ele rejeita.

A TRANSCENDÊNCIA DE MARINA ABRAMÒVIC EM MATÉRIA FÍLMICA: ESPAÇO ALÉM

Marina Abramòvic é uma artista performática da Sérvia que durante toda a sua carreira trouxe em seus trabalhos os limites do corpo físico dentro da performance, arte esta que utiliza o corpo e a sua relação de entrega com o presente, com o aqui e agora, de ação, contando com a presença e reação do público. Em uma de suas performances, Marina, querendo demonstrar até que ponto a sociedade pode chegar em relação a alguém completamente entregue e receptivo, apenas ficou parada e permitiu que o público interagisse com o corpo dela da forma que quisesse. Em determinado momento, uma pessoa apontou uma arma para ela.

Nos últimos anos, ela vem mostrando um vínculo cada vez mais forte de sua arte com a espiritualidade e trazendo o seguinte questionamento: “Como eu posso ajudar a despertar a consciência através da arte?”

A relação de Marina com o Brasil existe desde o final dos anos 80, logo após a performance que fez com Ulay, seu ex-marido e companheiro de performance. Ela afirma que durante o processo da performance The Lovers, na qual cada um andou de cada extremo da Muralha da China em direção um do outro, para se encontrarem, se despedirem e romperem definitivamente, ela começou a perceber que solos diferentes afetam o corpo de forma diferente. Marina começou então uma jornada pessoal e criativa em diversos lugares: viveu um período com tribos aborígenes da Austrália, depois com monges tibetanos, buscando entender o corpo como meio de tecnologia transcendental. Veio também ao Brasil buscando novas ideias a partir dos diferentes minérios e cristais que existem no solo e passou a aplicá-los em performances e instalações.

Marco Del Fiol, diretor de Espaço Além, conheceu o trabalho de Marina em uma série que passava na TV Cultura nos anos 90 sobre arte, espiritualidade e ciência, na qual ela representava a arte. Ele, que ainda não trabalhava com arte, mas tinha uma conexão com a espiritualidade, depois de um tempo passou a trabalhar com arte e documentários sobre a arte contemporânea. A performer Paula Garcia, anos depois, o convidou para registrar a visita de Marina no Brasil.

Nos últimos anos, Abramòvic visitou vários lugares de poder de diferentes regiões do Brasil, que são mostrados no filme Espaço Além, dirigido por Marco Del Fiol. São mostrados a casa de João de Deus, famoso mundialmente por curar através de sua mediunidade em Abadiânia; o Vale do Amanhecer e a sua pluralidade; a casa de Dona Flor e seu conhecimento das ervas em Altoparaíso; Rituais de Candomblé em Salvador; rituais xamânicos com ayahuasca na Chapada Diamantina e em Curitiba.

Nesses encontros, ela busca compreender o que há de comum entre o ritual e a performance. Ela conclui que o ponto em que ambos convergem é o fato de permitirem que se entre em contato com o seu Eu Maior. O momento de transe de uma incorporação e o momento em que ela, como artista, inicia uma performance é o momento em que qualquer vínculo externo de espaço e tempo se dissipam e o seu corpo se torna instrumento transformador completamente entregue ao presente. E, como de costume em todos os seus trabalhos, Marina coloca o seu próprio corpo e as suas próprias experiências para as suas criações artísticas, mas dessa vez a performance foi mergulhar nos rituais e registrar as suas próprias vivências em filme. O grande diferencial dessa em relação a todas as outras ao longo dos anos foi não focar nas ramificações físicas das sensações: ela distingue a dor física, que ela afirma que é possível lidar, da emocional, que requer rupturas profundas no espírito e constantes confrontos consigo mesma.

Jung enxerga os rituais “primitivos”, os quais Marina Abramòvic procurou nessa jornada, como uma máquina que transforma a energia vital que existe na natureza em energia psíquica, processo no qual as diferentes ritualizações através da música, da dança, das palavras e das imagens simbólicas, são formas de canalização dessas forças naturais para fins sociais. Portanto, no “homem primitivo”, a consciência seria completamente imersa nos fenômenos naturais, enquanto no “homem civilizado”, domesticado, a razão teria dominado o estado selvagem.

E é percebendo isso que Marina encontra a resposta daquela pergunta inicial de como poderia ajudar na consciência coletiva para o despertar da consciência: o que está na natureza é inerente a ela, não há o que criar, ela apenas é. O que ela vê como necessário para a arte nesse momento trazer a natureza para as grandes cidades – não apenas fisicamente, com uma arborização efetiva, por exemplo, ou representações visuais constantes – mas a sensação, a conexão com os elementos, e principalmente consigo mesmo.