Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Alessandra Brito

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AS MULHERES QUILOMBOLAS VÃO SE (NOS) LEMBRAR

Talvez a história da humanidade, digo aquela que não ocupa as páginas dos livros, possa ser contada a partir da luta pela terra e pelo território ou a partir das formas de relação que as pessoas têm estabelecido com a natureza ao longo dos anos. Há um verso na canção O sol mais quente, de Baco Exu do Blues, que diz: Cê quer ouvir a voz de Deus? Então vá ao Nordeste e escute o povo. Bote o ouvido na terra e escute o mundo.

Botar o ouvido na terra e escutar o mundo. Acredito que essas palavras se aproximam da experiência de escuta que tenho vivenciado junto de filmes feitos nos territórios quilombolas, obras marcadas por uma linha de força: os gestos de rememoração articulados a partir das presenças e narrativas das mulheres quilombolas em relação com a terra e o território. Ouvidos atentos ao que essas contadoras de memórias se lembram — e nos lembram — dos quilombos, essa estrutura social e ideia-força1 que enfrenta o sistema vigente, inaugurando liberdades em meio ao Brasil Colônia.

A ideia de memória me interessa aqui, sobretudo, como força motriz de vida, que se ergue contra a morte estruturada pelo esquecimento, pelo apagamento, pelo sufocamento de vozes promovidos pela colonização, como nos ensina Abdias Nascimento. A oralidade, que possibilitou a existência e permanência dos povos de junto da terra — povos originários e povos quilombolas — com o conhecimento passado das pessoas mais velhas para as mais jovens, se desenrola pelos fios da memória. Assim, se esquecer é uma forma  de matar, lembrar é caminho para fazer prevalecer a vida. A transmissão da ciência desses povos se dá pela palavra, pelo segredo, mas também pelo gesto do corpo, como nos dizem as lições da pesquisadora, poeta e ensaísta Leda Maria Martins. 

Ainda sobre as políticas do esquecimento, a pesquisadora Beatriz Nascimento já reivindicava, em fala na conferência Historiografia do Quilombo2, realizada em 1977, durante a Quinzena do Negro na Universidade de São Paulo: “A lembrança, lembrar para mim mesma, lembrar para os negros de que eles têm um passado de homens capazes de empreender uma estrutura que foi muito forte, que assustou sempre, que assustou tanto que passou para a amnésia nacional.” 

A intelectual reforçava ainda a insistência do campo formal de estudos da História em dedicar imensa atenção para a pesquisa sobre o negro nas condições de escravização e pouco espaço para os estudos junto dos quilombos. Para ela, essa engrenagem move também a construção de um imaginário do povo negro em diáspora. 

Como Beatriz Nascimento nos disse em Ôrí (1989, Raquel Gerber): “É preciso a imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos.” Com essa reflexão ela já nos convocava a empreender caminhos para a discussão das questões raciais a partir do campo da imagem.

Pelos entrelaces memória e imagem chegamos a quatro mulheres. As duas primeiras são D. Olinda Oliveira e D. Maria Oliveira, mulheres quilombolas da Comunidade do Quilombo Rio dos Macacos, localizada em Simões Filho, na Bahia. Suas narrativas e suas presenças aparecem como fios condutores do longa Quilombo Rio dos Macacos (2017, Josias Pires). Chegamos também a Lucicleide Santos, de Santiago do Iguape, comunidade situada na Bacia do Iguape, município de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia.  Ela é diretora-personagem no curta-metragem Pra se contar uma história (2013, Elen Linth, Lucicleide Santos, Diego Jesus e Leandro Rodrigues), e por seus passos encontramos outras mulheres moradoras da comunidade remanescente de quilombos Calembá. E na Comunidade Quilombola Mato do Tição em Jaboticatubas, Minas Gerais, encontramos Tança, a ancestral do quilombo, por meio da rememoração de seus descendentes no filme Tança (2014, Irmandade dos Atores da Pândega e Associação Quilombola Mato do Tição).

A memória como arma de uma luta em curso

“Nós não somos invasor não, moço, quando eles chegaram acharam a gente”. Com essa frase, Dona Maria Oliveira começa a rememorar e testemunhar sua história. Com suas lembranças ela se defende das acusações que aqueles que a violentam lançam contra ela e contra sua comunidade. São 84 anos de uma vida vivida no território, acompanhando a chegada da Marinha do Brasil, a construção da Base Naval de Aratu, vivenciando incontáveis violências e ameaças. Ela está sentada ao lado de sua filha Olinda Oliveira, que também se vale de sua memória para enfrentar a luta que está em curso, a defesa do direito de viver no Quilombo Rio dos Macacos. 

No filme Quilombo Rio dos Macacos é pela força da palavra dita, repetida à exaustão, que talvez seja possível causar alguma ruptura, abrir alguma fresta, mover alguma vírgula das expressões grafadas na historiografia oficial, que não acolheu as narrativas dos quilombos brasileiros. 

Eu nasci e me criei aqui, eu tenho direito na terra, eu não vou sair daqui por nada.

Minha mãe nasceu e se criou na barragem dos macacos, o senhor disse que não existia pessoas lá, minha mãe tem 84 anos de idade. Minha vó morreu com 95 anos, o enterro saiu de dentro da barragem. Meu pai morreu com 84 anos também o enterro saiu pela frente da vila naval da barragem. Essa aqui é minha mãe. [erguendo uma fotografia]

Esse caminho que minha mãe fazia quando era pequena mais minha vó, minha vó saía da fazenda meia noite, o galo já cantando, elas desciam por aqui pra vir pra casa. Minha mãe nasceu aqui, perto do Rio do Barroso, no Areial. Minha vó plantava tudo isso aqui, certo?

Nós fomos criados, minha mãe pescando piaba, levando pra casa e a gente comendo.

Enquanto vemos os prédios e as construções na vila naval, ouvimos as vozes de Dona Maria e Dona Olinda reivindicarem, com seu testemunho e sua memória, os nomes daqueles que moravam na terra e cultivavam suas roças. Mariinha, Valdemar, Anísio, Antônio do Carvão, Dona Morena, Dona Luzia, João, Maria Pequena. Todas essas pessoas moravam por ali. Suas palavras se impondo sobre a cena em que vemos as construções continuarem. É preciso dizer, como quem escava para extrair da paisagem aquilo que ela teima em soterrar com o concreto dos apartamentos: tudo ali era quilombo.

cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens3

Suas falas se espraiam para as pessoas que não puderam falar, que deixaram suas terras pelas ameaças da violência. Jacques Rancière afirmou que “a testemunha é aquele ou aquela que não escolheu ser testemunha. É assim considerada apenas pelo que passou”4. A palavra dita emerge para romper as máscaras do silenciamento, como disse Grada Kilomba. 5 Pois, mesmo que não existam papéis que comprovem a posse da terra, há essas mulheres, suas palavras, seus modos de vida forjados no território.

Lembrar é movência

O filme Pra se contar uma história foi realizado no âmbito do projeto “Registro da história e da memória familiar de comunidades negras tradicionais do vale do Iguape”, sob orientação das professoras Amaranta César, Ana Rosa Marques e Isabel Cristina Reis.  O título vem de uma frase dita pela diretora-personagem, Lucleide Santos, ao ser questionada como é viver no Iguape: 

Maravilhoso. Me sinto no paraíso. Aqui tem coisas onde grande cidade não tem, aqui tem coisa que pretendo sentir pra amanhã depois, guardar recordação pra contar pros meus filhos, meus netos, meus bisnetos. Quero viver o que todos meus parentes, avós que não conheci, parte de mãe, o que minha mãe está vivendo hoje, o que ela viveu antes, quero sentir tudo, nem tudo, mas um pouco, pra se contar uma história.

No filme, Lucicleide Santos nos guia por três movimentos. Primeiro, ela está em cena, sendo filmada, vemos sua família, seu cotidiano, a vemos transitando com os equipamentos que são utilizados para o filme. Depois, vemos que ela inicia sua deriva e seu caminhar, que permitem que ela se encontre com as mulheres da comunidade Calembá. Em seguida, Lucicleide se vê diante das fotos que tirou desses encontros, e é questionada sobre a experiência de suas movências. 

Reivindico para o seu mover-se não apenas a característica norteadora do filme, da montagem e da narrativa construída, mas também um movimento de memória, um gesto de rememoração, de busca da lembrança. Diante da vida de trabalho árduo das mulheres do Calembá, a diretora-personagem reencontra-se também com a recordação daqueles de sua cor que ergueram o país.  Lucicleide Santos, a Neguinha, toma a palavra para si, para narrar uma história quilombola a contrapelo (nos termos benjaminianos). Um “livro da terra”, ela diz (em off), a voz sobreposta às imagens da mãe e dos pescadores, que chegam com o seu pescado:  

Santiago já passou por muitas e muitas coisas que poderiam ser relembradas, no contar. Quem viveu já antes e sabe, tem que contar, para mostrar a cultura… como antes já passou muitas coisas aqui…aqui teve… tem dez engenhos, várias culturas… coisas que aconteceu antes, que aqui era o maior produtor de cana de açúcar, que aqui já teve muitas coisas (…) e que ninguém procura levantar isso, pra pelo menos escrever um livro da terra (…) pra escrever o que os brancos faziam antes com os negros, faziam carregar pedra nas costas…atravessava o mar para trazer pedra para fazer a igreja que hoje está ali…não foi feita por branco…então, não vou escrever um livro contando a história de branco (….) Não foi branco que fez essa vila, não foi…foi construída por nós, por gente de minha cor.

Os fios da memória são o amor

O filme Tança (2014) integra a Coletânea Imagens da Memória, é fruto de um edital da Fundação Cultural Palmares, por meio do extinto Ministério da Cultura. Assim como alguns vídeos feitos nas comunidades quilombolas num contexto mais recente, Tança tem sua construção a partir de processos de formação com oficinas de audiovisual junto aos jovens da comunidade. É importante mencionar um aspecto que singulariza essa obra, ainda que a rememoração seja um forte elemento constituinte da filmografia dos quilombos, aqui as lembranças e a ancestral são vivificados pela memória a partir de uma perspectiva muito amorosa. É o amor que faz emergir as lembranças. 

Tança chamava suas sobrinhas de nenêga. “Ô nenega!” É Dona Bina quem repete o chamado no filme. Ela gostava de rapé, que ela mesmo preparava com a ajuda de seus sobrinhos, como Dona Nilse nos mostra refazendo os gestos de Tança. Ela também tinha o hábito de dormir no chão, comer com as mãos e gostava de sua cachaça. E Tança celebrava e dançava o Candombe, tradição que segue viva com seus descendentes. Tudo isso sabemos pela rememoração dos familiares de Tança, são eles e elas que partilham suas memórias conosco, não apenas pela palavra dita: é no corpo, pela escrita do corpo, que as lembranças vêm à tona. 

Na cena vemos Dona Nilse na casa de Tança, ela pega uma saia azul e desfaz o nó na fita branca que ajusta a cintura da roupa, e veste primeiro a saia, e depois uma blusa da mesma cor. Ela comenta: “Tantos anos e eu não esqueci das vestes dela.” Ela veste em seguida um casaco de tom claro e amarra um lenço, que tem a mesma cor da saia e da blusa na cabeça. “Tança era muito alegre, ela dançava Candombe e quando ela ia dançar Candombe ela rodava assim”, e gira.

O gesto de lembrar se vale do corpo; Tança, que já é ancestre, surge vivificada e presentificada pela força da memória dos seus. É sua existência que guia a narrativa do filme. O modo como sua trajetória é contada se entrelaça com a própria história do Quilombo Mato do Tição, como corpo território, nas palavras da pesquisadora Célia Xakriabá. 

Algumas considerações

Dona Maria, Dona Olinda, Lucicleide, Tança, Dona Nilse, Dona Bina, por meio da inscrição de suas presenças e narrativas nos filmes, nos permitem vislumbrar questões que mobilizam as lutas dos movimentos negros e as lutas das mulheres, que, no caso das quilombolas, ganham nuances preciosas, pela ligação com o território, a ideia de comunidade e a luta empreendida com e pela memória.

A pesquisadora e mulher quilombola de Conceição das Crioulas, no Salgueiro, em Pernambuco, Givânia Maria da Silva, afirma que “as mulheres quilombolas atuam como um acervo da memória coletiva; com elas estão registradas as estratégias de luta e resistência nos quilombos, os conhecimentos guardados e repassados de geração em geração”6, daí a fresta que a escuta de suas palavras abre para pensar as lutas que vêm sendo empreendidas por essas mulheres ao longo dos anos. 

Esse movimento de luta comunitária, erguido por Zeferina, de Aqualtune e Dandara, em Palmares; de Tereza, do quilombo Quariterê, no Mato Grosso; de Maria Crioula, no Rio de Janeiro; de Felipa Maria Aranha, no Pará, segue vivo pela luta, amor e memória de muitas mulheres. Os quilombos resistiram a guerras e a ataques por todo o período colonial e também durante a república, afirmando seu direito aos seus territórios e seus modos de vida. 

As mulheres quilombolas se lembram e elas também vão nos lembrar.

Notas de rodapé

  1. “O modelo quilombista vem atuando como ideia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV” (Abdias Nascimento, O quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista,  2019, Editora Perspectiva,  p. 282, grifo nosso).
  2. A transcrição da fala completa de Beatriz Nascimento na Conferência está disponível no livro Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. Esse trecho citado está na página 129.
  3. Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
  4. RANCIÈRE, Jacques. Figuras do testemunho e democracia. Revista Intervalo, maio/2002, p. 177-186.
  5. Nota KILOMBA, Grada. A máscara. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 11, página 26 – 31, 2017.
  6.  A fala está no artigo Mulheres quilombolas: afirmando o território na luta, resistência e insurgência negra feminina, publicado no livro Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas, 2020, Editora Jandaíra, p.54.