A intimidade é o tema central dos filmes de André Novais, cineasta mineiro, diretor dos curtas-metragens Fantasmas, 2010, e Pouco mais de um mês, 2013. Em Ela volta na quinta, 2014, não é diferente. Novais apreende o cotidiano doméstico de Noberto e Maria José, um casal de idosos com dificuldades em se relacionar após 35 anos juntos. A trama ficcional, no entanto, com personagens reais – quem atua é a própria família do diretor – nos surpreende ao levantar discussões para além da linguagem cinematográfica. O fim de um relacionamento de anos, a dificuldade de seguir os sonhos, o sentimento de apego, a velhice, as questões sociais e tantos outros temas elevam a qualidade de Ela volta na quinta, que deixa de ser apenas uma obra experimental para se tornar um ensaio sensível sobre a vida cotidiana. Sem megalomania ou “grandes dramas”, o longa retrata nada mais do que a vida doméstica e íntima, ela própria digna de poesia.
É nas minúcias que André encontra o inteligível: em um diálogo com o irmão em que mostra um vídeo engraçado no YouTube ou na trajetória de trabalho do pai ao deixar cair uma geladeira já quebrada que deveria ser levada para o conserto. Em situações tão específicas, pontuais, irrisórias se acessa o espectador de forma terna – nos sentimos parte da situação dando boas risadas. Em contraponto, também podemos nos emocionar com o diálogo sobre sonhos e capacidade de realização dos mesmos entre a mãe e André, enquanto o diretor tira a pressão da genitora. Neste ponto, Novais opta por um recurso bastante utilizado durante o filme: a ausência de plano e contra-plano, deixando a câmera fixa e próxima ao rosto de Maria. Quando vi o filme pela primeira vez no Festival de Brasília em 2014, chorei ao assistir essa cena. São diálogos comuns; eu diria, até banais – e é justamente por isso que têm a capacidade enorme de acesso ao espectador. Todo o banal é poético. Relembro o Manifesto de Poesia escrito por Pasolini que discutia a presença de poesia no cinema; neste manifesto, entre vários apontamentos sobre discurso e linguagem cinematográfica, Pasolini discute sobre a imersão do autor na alma da sua personagem e que seria necessário não só a adoção da psicologia como da língua dessa personagem. Nesse sentido, o longa que mistura personagens reais que vivem uma ficção ganha vários pontos em noção de poesia. Ali todos falam a mesma língua. Nem podemos dizer que os “personagens foram bem construídos”, como comumente fazemos ao criticar obras cinematográficas. Afinal, todos aqueles personagens “estão se construindo”, eles são reais, participam de um devir que acompanhamos durante a narrativa. A ausência do contraplano, os planos fixos e contemplativos nos aproximam desses personagens de forma substancial. Os diálogos ordinários colocados criam simultaneamente sensações de distanciamento e proximidade que nos deixam em estado de fascínio, sem saber muito bem o que pensar sobre a obra.
Recentemente debrucei-me sobre um projeto que envolvia aspectos dos relacionamentos e da velhice na vida afetiva. Cheguei a conclusão um tanto simplista, porém realista. A vida seria dividida em três partes: envelhecer, construir nós e desatar nós. Além de Simone de Beauvoir, que escreveu A Velhice, e de tantos outros escritores, filmes como Ela volta na quinta me ajudaram bastante a pensar sobre os aspectos que envolvem o envelhecimento e principalmente o sentido do amor nesse período da vida. É muito difícil falar sobre o amor. Há quem diga que a melhor forma de falar sobre ele é não tocando em seu nome, mas exemplificando, metaforizando – sem teorizar. É exatamente isso que Novais faz em seu primeiro longa. Um casal de idosos que pretende se separar pois já não conseguem mais estabelecer um diálogo. Não vemos barracos, tão pouco um grande drama. Mais que isso, vemos situações comuns. O casamento desgastado, os filhos adultos, um relacionamento extra-conjugal e as dificuldades impostas naturalmente, mas também, socialmente quando o assunto é velhice, principalmente em relação à mulher. Enquanto Maria sofre de ataques de pressão alta, Noberto, que aparentemente é um bom pai e um bom marido, mantém uma relação fora do casamento – ao passo que não assume e não toma nenhuma posição, aguardando Maria agir de alguma forma. Cansada de esperar, ela resolve ir a uma excursão em Aparecida do Norte, da qual só volta na quinta-feira – daí o nome do filme.
Os filhos estão preocupados com o casamento dos pais, mas não interferem, afinal, eles já têm seus próprios problemas. André não sabe onde morar com a namorada, a falta de dinheiro é empecilho para alugar um apartamento no centro de Belo Horizonte. Renato quer ter um filho com a namorada, mas os dois ainda não têm casa e “nem mesmo são casados”. A cama é o lugar de conversa central dos personagens, todos eles conversam em cima dela com seus respectivos parceiros amorosos. Normalmente, as conversas estão em busca de decidir ações para mudar a vida destes personagens. Entendo a cama como um divã, um espaço ao qual os personagens estão livres para se expressar e tomar decisões conjuntas. Os diálogos ficam no nível da discussão e não alcançam o tom de briga. O sotaque mineiro carregado também nos traz uma noção de intimidade, ele é contraposto, no entanto, com a paisagem urbana e concreta da periferia de Minas Gerais.
Enquanto a vida dos filhos segue, Noberto aproveita para visitar a sua outra parceira, uma moça mais nova que ele. Ela decide terminar o relacionamento e mais uma vez o lugar de confissão é a cama. Noberto não encara bem a notícia, mas não briga, lamenta pela o distanciamento com a filha da mulher – que não sabemos se é ou não filha também de Noberto. Nesta cena, a utilização de não atores dá um tom especial ao diálogo que se torna triste, pois trata-se de um fim, mas ao mesmo tempo cômico. Silêncios constrangedores que costumam aparecer em conversas, mas não aparecem nos filmes, neste filme eles aparecem e nos mostram como somos incapazes de ser completamente naturais dadas as regras de sociabilidade e civilização.
Maria volta da sua viagem decidida a se separar, em diálogo com a amiga, admite saber do relacionamento extraconjugal do marido. Ao voltar para casa, reclama do teto que o marido não arrumou – aqui podemos entender como uma metáfora, Noberto ainda não agiu – ela ainda não menciona sua decisão sobre o divórcio. Caminhando pela rua, mais uma queda de pressão. Nos planos seguintes, Noberto canta uma música de amor no carro, logo depois família assiste um jogo de futebol sem a presença da matriarca.
Ela volta na quinta fala sobretudo de amor, o amor íntimo que se transforma, sobre a necessidade de se reapaixonar a cada instante. Através desse longa, Novais nos mostra que o amor é uma aceitação cotidiana do que somos frente ao outro. Envelhecer junto é compreender a mudança do ser amado como uma nova possiblidade de relação. O amor é possível, é banal, é íntimo e está em cada instante: em um diálogo engraçado com o irmão, ou ao tirar a pressão da mãe, mas também em dançar Roberto Carlos na sala de casa.
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