I
Notas sobre Olga Futemma, cineasta
Acredito que seria errado começar esse texto dizendo que os anos 1970 e 1980 ficaram marcados por uma alta produção de filmes (curtos) realizados por mulheres no Brasil, nunca antes vista na história do cinema. Não por ser uma inverdade, mas porque dificilmente esses anos ficaram marcados por isso. Pouco se conhece sobre essa produção e pouco se conhece sobre as diretoras que atuaram nesse período. Olga Futemma é uma delas.
Como muitas outras realizadoras da sua época, Olga dirigiu apenas alguns filmes através do parco financiamento das políticas públicas. Seis, no total. Nenhum longa-metragem. Também como muitas outras realizadoras da sua época, Olga se afastou do fazer cinematográfico ainda nos anos 1980, interrompendo sua carreira como diretora. Não se afastou, entretanto, do cinema. Imersa na cultura cinematográfica japonesa do bairro da Liberdade desde criança e passando pelo curso de Cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Olga realizou um extenso trabalho na Cinemateca Brasileira, que perdurou por mais de trinta anos.
As obras de Olga são infectadas por essa proximidade corpo a corpo com o cinema. São filmes que se desdobram sobre a representação, sobre a tela, sobre a performance e sobre o cinema como lugar de memória e preservação. São filmes também sobre a espectatorialidade, sobre o sentimento infantil, o deslumbramento mágico de assistir à tela. Nada mais cinematográfico que isso e também nada mais pessoal. Antes mesmo de Um passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2001) e 33 (Kiko Goifman, 2002), Olga já discutia as relações do “eu” e, sobretudo, do “nós” em seus filmes, quando pouquíssimas narrativas no cinema brasileiro se voltavam para uma esfera autobiográfica.
O “nós” também está colocado nesse ponto de encontro com o cinema. Filha de imigrantes okinawanos, Olga dedicou a maioria das suas obras às questões da imigração japonesa, da experiência de ser e estar entre culturas e do convívio das gerações, a partir de um caminho que navega constantemente entre o singular e o plural, entre Olga e a comunidade da qual participa. O cinema estaria aí, portanto, como lugar de vínculo, um espaço em que é possível conectar as várias gerações e as diferentes culturas.
A epítome dessas relações aparece em dois dos seus filmes com maior força, Retratos de Hideko (1981) e Hia sá sá — hai yah! (1985). O primeiro aborda quatro gerações de mulheres japonesas a partir de uma perspectiva identitária e cultural, em que a ocidentalização e a manutenção da tradição surgem como grandes temas. Para tanto, Olga usa da própria voz para organizar o filme, que conta com entrevistas, performances e registros do cotidiano do bairro da Liberdade, em São Paulo. Já a narrativa de Hia sá sá — hai yah! é atravessada pela figura de Nobu-chan, uma menina de mais ou menos sete anos de idade. Sua imagem é constante e a voz over de Olga é dedicada a ela, em uma espécie de filme-carta. Aqui, as questões debatidas se tornam mais complexas, já que a experiência entre culturas se intensifica ao lidar com uma identidade que é tripla: a brasileira, a japonesa e a okinawana.
II
Desenho e memória
Vemos um primeiro plano de uma mulher adulta, talvez com pouco mais de trinta anos. Seu traje, sua maquiagem e seus adornos remetem à figura tradicional da gueixa. A primeira voz que ouvimos, entretanto, é a de Olga atrás da câmera. Como entrevistadora, ela pergunta para a mulher se nasceu no Brasil, ao que ela responde que sim. Logo depois, Olga pergunta como se sente vestida daquele jeito. “Um pouco de medo e feliz ao mesmo tempo”, responde. A imagem então congela, e a tela é recortada em um pequeno retângulo, emoldurando o rosto da entrevistada. Junto a essa imagem, ouvimos Olga novamente, mas dessa vez em voz over. Não mais na posição de entrevistadora, ela agora fala diretamente conosco, espectadores, sobre a sua vontade enquanto diretora naquele filme: “Eu não quis fazer um filme sobre a mulher japonesa, suas filhas, suas netas. Eu quis apenas desenhar seus retratos. Este é um filme de retratos.”
Assim se inicia Retratos de Hideko, através de uma ruptura, não só internamente no filme, como também com o que se estava fazendo em termos de documentário na época. Se o jogo simples de perguntas e respostas define o tom para uma estrutura tradicional do documentário, Olga imediatamente rompe com essa estrutura. A imagem congelada, o recorte dentro do plano e a voz over afirmam: este não é um documentário tradicional, não é um filme sobre a mulher japonesa e suas diferentes gerações, mas um filme no qual Olga irá “desenhar” retratos. Desenhar. Não registrar, captar, mostrar, mas desenhar. Desenhar envolve certa elaboração criativa, a produção de uma imagem que pode ser muito similar ao que é real, mas nunca de fato o é. Não seria essa também a principal característica do documentário? A impossibilidade da representação? É impossível representar a mulher japonesa como ela realmente é, mas é possível construir a mulher japonesa a partir da subjetividade de Olga. É possível desenhá-las. Como ela vê, sente e relembra as mulheres japonesas de seu convívio? Como ela, sendo de uma segunda geração de imigrantes japoneses, se vê, se sente e se relembra? Está aí posta a dimensão pessoal do filme, que permeia não apenas aquilo que é próprio da trajetória privada de Olga, mas também a sua visão de mundo enquanto indivíduo, enquanto em suas características mais próprias. Nesse caso, não há espaço para generalizações. Não há espaço para o sociológico.
Não é apenas Retratos de Hideko que segue essa lógica. Em Hia sá sá — hai yah!, a proposta de Olga é, dentre uma variedade de questões, recontar de forma bastante subjetiva a história migratória dos seus antepassados. Para iniciar essa narrativa, Olga apresenta as mulheres da primeira geração de imigrantes okinawanos. Na imagem, enquanto elas se pintam e colocam seus quimonos, Olga se pergunta em voz over: “Aquarela, nanquim, óleo, guache. Quem são elas?”, para depois responder, “Mais fácil dizer o que lembram. Aventais azuis de mercado e feira, rachaduras irreversíveis nos pés, mas as pernas em meias de seda.” Cada elemento presente na fala é uma reelaboração das características dessas mulheres a partir da intimidade familiar de Olga. A manutenção das tradições representada na aquarela, no nanquim, no óleo e na guache; o trabalho como traço marcante dessa geração nos aventais azuis e nas rachaduras nos pés; a graciosidade que persevera mesmo em tempos difíceis nas pernas vestidas em meias de seda. Assim, o interesse de Olga não está em uma imagem exata de quem e como essas mulheres são, e se apresentam, mas em como elas habitam seu imaginário e sua memória afetiva.
III
Duas imagens
Em Retratos de Hideko, duas imagens são recorrentes. Na primeira, em um palco de fundo preto, a câmera acompanha a mulher entrevistada por Olga no início do filme. Com a mesma vestimenta e pintura, ela performa uma dança de movimentos bastante sutis e contidos ao som de uma delicada música tradicional japonesa. Na outra imagem, temos o mesmo palco. Porém, quem agora dança é uma outra mulher, talvez alguns poucos anos mais jovem. Diferente da primeira dançarina, que usava o cabelo preso e arrumado, além das vestimentas tradicionais que cobriam seu corpo inteiro, a segunda usa apenas um vestido simples e transparente, os cabelos soltos e bagunçados. Ela performa uma dança moderna, de movimentos bruscos, expansivos e frenéticos. Cria-se um contraste, uma dicotomia entre o tradicional e o moderno, entre o recato e a maior liberdade com o corpo, como se as duas gerações, cada qual representada em uma dança, se opusessem. Entretanto, há algo que as conecta, algo que está presente no próprio princípio do gesto que é bastante similar. Não há, portanto, uma separação pautada pela diferença, mas um vínculo que sobrevive através da tradição e da expressão artística, repassada de geração em geração.
IV
Retratos de Olga
Diz a voz over de Olga em Retratos de Hideko:
Hideko, Ivonice, Miriam, Akiri. Falar sobre vocês é falar em mudanças que ainda se processam. O que vejo são rugas, medo e uma vontade de compreender o que nossas mães, nossas avós não podiam, e ao mesmo tempo não perder tudo o que elas sabiam.
Quem é Hideko? Em nenhum momento Hideko é apresentada em imagem e nome. Em nenhum momento se diz, “essa é Hideko”. Ainda assim, nós conhecemos Hideko, nós conhecemos seus retratos. Olga também é Hideko e também é Ivonice, Miriam e Akiri, mulheres de uma mesma geração, criadas pela mesma geração de mães e avós japonesas. Mas Olga desenha muitos outros retratos, retratos da tia-avó, de uma criança no colo de seus pais, de mulheres idosas na feira, de jovens adultas tentando dominar a arte da ikebana, de uma adolescente no rinque de patinação. Retratos de Hideko, as várias gerações contidas em uma só. Hideko e Olga são, ao mesmo tempo e de uma vez só, as mudanças que se manifestam e as tradições que perduram.
V
Coração okinawano
Em Hia sá sá — hai yah!, o mar é o início. Na areia, uma mulher idosa está sentada debaixo de um guarda-sol. Ela olha para a paisagem, mas também para a criança que caminha na orla, com os pés na água. A trilha sonora é bastante melancólica e, ao fundo, ouvimos o som das ondas e do vento, enquanto a câmera acompanha a caminhada do menino. Após um movimento de zoom in, ele se agacha e encara o horizonte. Em primeiro plano, a imagem da mulher retorna e cria-se uma relação de olhares complementada pela imagem seguinte, onde vemos apenas o mar. Avó e neto (uma relação subentendida) olham, portanto, para a mesma direção, para a mesma cena. Sobre esse último plano, surge o texto:
Okinawa, arquipélago a 600 km do Japão. Okinawa é o Japão. Mas seu coração sempre foi okinawano. Nós, brasileiros, descendentes de okinawanos, herdamos esta primeira ambiguidade. Até que nossos corações escaparam desta dualidade e ficou o grito.
Olga, nesse momento, não narra com a voz, opta pelo texto escrito. Também não usa a primeira pessoa do singular ou afirma sua posição como diretora (“eu quis fazer um filme…”), mas assume diretamente o “nós”. Nós, brasileiros, descendentes de okinawanos. Se Hia sá sá — hai yah! tem início nas águas do oceano, é porque são nelas que essa história começa. Foi através do mar que os primeiros imigrantes okinawanos chegaram ao Brasil e é, portanto, o mar que se constitui como o vínculo entre o passado e o presente no filme. Ao mostrar avó e neto olhando para o mesmo horizonte, como se olhassem na verdade para Okinawa, Olga estabelece uma relação de origem compartilhada entre as gerações, origem essa que transborda na forma como os laços familiares, afetivos e culturais são organizados e constituídos.
VI
Gesto de amor
O mar é o início, mas a continuidade reside na figura feminina. As mulheres são colocadas, em ambos os filmes, como portadoras da cultura japonesa e okinawana, presenças fundamentais para a manutenção das tradições não apenas no espaço artístico do palco, mas também no cotidiano do dia a dia. Assim, são as mulheres mais velhas que ensinam ikebana para as mais jovens, que repassam os gestos da dança, as técnicas do canto e o aprendizado da língua. Também elas são os pilares do vínculo geracional, em que a arte, a cultura e a figura feminina se mesclam em uma só.
O fim de Hia sá sá — hai yah! sintetiza essas questões. Em uma última voz over que recai sobre Nobu-chan adormecida, Olga manifesta um desejo:
Duvido que os seus sonhos sejam o mar, Nobu-chan. Mais provável que a sua busca seja de estrelas. O certo é que quando se debruçar sob as ondas de Okinawa, você o faça apenas num gesto de amor.
A imagem que encerra o filme, entretanto, é a imagem de sua mãe dançando na areia da praia, de costas para a água. Ali, invisível para além do horizonte do oceano, está Okinawa. É, portanto, em terra firme e através dessa figura materna que performa no próprio corpo a cultura de origem, que é possível a conexão entre os dois lados do oceano. Mais uma vez, emerge a ideia da expressão artística e cultural como elo que mantém Japão e Okinawa vivos entre as gerações. Olga, que se expressa por intermédio do cinema, conecta ela também os dois lados do oceano em uma coisa só. Hia sá sá — hai yah!, esse é o seu gesto de amor.
Filmografia de Olga Futemma
Sob as pedras do chão (1973) | 35mm, 23 min, documentário
Trabalhadoras metalúrgicas (codireção Renato Tapajós, 1978) | 16mm, 15 min, documentário
Retratos de Hideko (1981) | 35mm, 10 min, documentário
Hia sá sá – hai yah! (1985) | U-matic, 27 min, documentário
Caminho da memória (1988) | sem informação disponívelChá verde e arroz (1989) | 35mm, 12min, ficção