“O que se vê é o invólucro do que não se vê.”
Tiganá Santana
“Talvez, a fuga seja uma consequência cultural. Uma consequência ancestral.”
Beatriz Nascimento“A visibilidade não nos protege.
Então, como é que a gente pode não ser apagada e ainda assim não nos tornar transparente?
Não ser silenciada e ainda assim não ser completamente traduzida?”
Jota Mombaça
Um primeiro giro anti-horário. O rodopio. Da janela da casa, a câmera faz um giro para dentro. Em vez da pele negra retinta, olho primeiramente para os cabelos sintéticos avermelhados e a luz que faz um tipo de aura naquela presença, a qual olha firmemente para a câmera que empunha. Um canto, uma reza se inicia, um feitiço. O mundo como conhecemos, aquele que pode ser visto da janela, foi recusado no rodopio inicial. Abre-se uma fissura no tempo linear. Na língua colonial, o português, o canto vai tomando forma, mas a cosmologia que integra a fenda aberta de “Para todas as moças” (2019), de Castiel Vitorino Brasileiro, foge e escapa pelas matérias do espaçotempo: osso, planta, suor, livros, cristais, fogo, vela, perlutan. Como acreditar, ver e sentir nossas presenças físicas, químicas, espirituais, cósmicas e pretas nas telas do cinema, sem a materialidade de nossos corpos em sua integralidade, quebrando demandas e expectativas raciais e sociais?
Descrever é traduzir, mas as traduções negras (não) podem falar de coisas inomináveis, impossíveis de dizer na língua colonial
A câmera escapa. Rodopia. Da janela de casa, para o universo. O vejo de longe, depois da ventania de Iansã. De qual continente esses ventos são? De quais tempos? A distância do planeta terra é demarcada e parece que quase nada que habita os menos de três minutos desse canto-reza-prece existe no regime do nosso real. Onde estamos mesmo? Vejo um altar. Uma nota de cinquenta reais. Livros, mão. Cabelo avermelhado. Vestígios, rastros, matérias. Estados de encantaria, pela voz, na língua colonial, o invisível habita a imagem.
As transformações físico-químicas produzem a fenda no tempo colonial. A dobra. Aquilo que é necessário para interromper o fluxo das embarcações que nos ameaçando a vida, desde que se elaborou pela primeira vez a ideia de novo mundo. As voltas da terra, junto ao canto, se tornam desejo pelo colapso. Tudo gira. O feitiço das travestis e a macumba das bichas colapsarão esse mundo. Elas quebram as embarcações. Aqui, o colapso não é obliteração, é mudança. É possibilidade de reelaboração dentro do tempo exusiástico. Em meio à contradição, na desordem, na profanação e no caos, é possível treinar para a produção de sensibilidades?
O fogo que lampeja atrás da corpa aparenta ser da mesma cor da massa avermelhada evocada pela corpa-presença, barro que não vejo, mas que sou convidada a imagear pelo canto. Posicionando a carranca ao lado de seu próprio rosto, o sorriso de Castiel cria um gesto de similitude com a obra que ela empunha. Quando colocadas lado-a-lado, as duas presenças também compartilham semelhanças em suas texturas e cores. A câmera parece ser matéria do feitiço, da macumba. Quando parece que vai revelar algum segredo, ela simplesmente se afasta.
Glissant afirmou que as opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes”. 1 Que cheiro tem esse altar? Quais óleos estão sendo manipulados para a feitura dessa magia? O que a combustão dessa pedra ativa? Não consigo acessar ou responder a nenhuma dessas perguntas, então imageio. Reelaboro as questões, reconhecendo as impossibilidades da minha própria gramática. Opacidade exige relação e a que estabeleço aqui só me parece ser possível com a dúvida.
Lembro-me de uma carta que Jota Mombaça escreveu para Castiel, sobre sua exposição “O trauma é Brasileiro” (2019), em que diz que não havia linguagem que pudesse descrever, ou seja, traduzir, o que a arrastava ao trabalho de Vitorino, e afirma: “Também não há nada por desvendar”. E continua: “Eu não me interesso pelo significado dessas imagens, mas pelas profecias que tem nelas. Em outras palavras: não é o significado, mas o sussurro que me motiva”. Volto a essas palavras e me pergunto: o que “Para todas as moças” nos sussurra? O que poderia a obra de Castiel desdobrar como profecia aos cinemas [negros]? Seria o sussurro (e a dúvida) uma das manifestações ou, por que não, sintoma das opacidades?
Chakras ativados. Rebolar a raba é energia de ativação. Faz parte do feitiço. Do cristal queimado, a transmutação das energias movimenta a corpa-partes daquela que performa-rodopia para a câmera. Com a câmera. Câmera-encruzilhada. A montagem da encruza entre o corpo marcado e a materialidade daquilo que marca o corpo. Ambos tão profundos quanto o rio e o cu. Escapar pelo mergulho que não tem chão para se tocar. Profundidade, instabilidade e impossibilidade, tudo ao mesmo tempo.
Em “Sortilégio” (1951), de Abdias do Nascimento, Emanuel, personagem principal do texto, está numa encruzilhada. No livro “Cena em Sombras” (1995), Leda Maria Martins enfatiza que Exú é função dinamizadora e organizadora da dramaturgia, do ritual e do conjunto de ações dramáticas de Emanuel. A pesquisadora afirma que, mesmo encarcerado [em suas questões raciais, espirituais e relações interpessoais], a personagem se movimenta, dentro dessa sobreposição de caminhos, dúvidas e perguntas que constroem a trama.
Essa poética da encruzilhada do texto encenado pelo Teatro Experimental do Negro (1944-1968), de alguma forma, parece emergir em “Para todas as moças”. Sem as preocupações raciais e sem as demandas dos processos de subjetivação experimentados por Emanuel, o canto-reza-encruza de Castiel faz movimentos contraditórios, que nos põem num outro tipo de encruzilhada: ao evocar materiais, matérias, símbolos e cantos das culturas afro-diaspóricas, ela escapa várias vezes de sua própria subjetividade, abrindo mão de ser gênero-raça para afirmar-se, por exemplo, como elemento da natureza. A contradição e sobreposição das imagens fílmicas na montagem deixam de ser apenas um artifício: tornam-se a singularidade da poética elaborada pela artista.
Retornamos ao altar. A química, o fogo, a entreluz, a reza. Um canto que ativa as energias do pedido, da crença, da fé. A suspensão. A perfuração da imagem. Vibrátil, o mundo invisível se mexe e a gente não consegue capturar. Há segredo ali. Talvez só ouvidos bem atentos (ou treinados) consigam escutar. O momento da fuga é o momento do canto. Ela canta para todas as moças (bichas, travestis, testículos femininos). De onde? De quando? Dentro da espiral, da encruzilhada, habitam todas elas. É no canto que elas despertam e são recebidas no quarto de cura de Castiel. A massa se decompõe, a energia invisível paira no ar.
Percorrendo temporalidades, escapando pelas imagens
Essa conversa textual se desenrola a partir da minha participação numa mesa do “Seminário Negritude Infinita” 2, mas se encontra com ideias, prosas e muitas perguntas que orbitam dentro e fora desse evento específico. Como num vagar e numa encruza, convido a um passeio pelas imagens, palavras e matérias. Menos do que um texto, talvez esse seja um desenho ou um treino para a fuga. Ou uma colagem, um retalho de ideias, de leituras, de pensamentos e sensações. “Como se pensava antes do iluminismo?”3, nos pergunta Denise Ferreira da Silva.
Daqui de onde olho-sinto, o incontestável aumento das produções audiovisuais negras tem feito do campo um espaço de conversas infinitas.4 Em diálogo com o texto de Kênia Freitas 5 e Janaína Oliveira 6, e tantas e tantos que elas chamam em seus artigos para suas elaborações, é possível traçar um mapa de marcos temporais que nos empurram, em eterna negociação, para abraçar a lógica econômica da valoração, positivação e identificação das representações negras nas telas, engendradas às demandas dos movimentos sociais negros, sobretudo, durante e após os processos de redemocratização da política brasileira. Soma-se ainda a esse contexto o Dogma Feijoada (2000) e o Manifesto do Recife (2001), além da implementação das ações de políticas afirmativas para a entrada de pessoas racializadas nas Universidades.
Mais giros anti-horário. Nos saberes, nas produções audiovisuais, nos conhecimentos. Ao mesmo tempo, mais demandas: da ocupação dos postos de trabalho, maior necessidade de se ver nas telas. Nesse percurso, um pacto com a transparência foi realizado. É “Dogma” não ter estereótipo, só falar da cultura negra e do negro comum. São tantas exigências, muitas delas quase nunca cumpridas em sua totalidade, boa parte delas capturadas pelo capitalismo. Ideias pretas são como commodities e a demanda está altíssima no mercado. “A plantação é cognitiva”, falou Jota Mombaça. Os cativeiros estão cheios de algoritmos. O desejo pelo topo cava a nossa própria cova.
Em “A plantação cognitiva”, Mombaça aponta para os processos de expropriação das vidas negras por meio dos sistemas de arte e produção de conhecimento em escala global, atrelados aos regimes de valoração. Sendo vistos como tendência de mercado, as artes e pensamentos negros e anticoloniais são capturados pelos circuitos artísticos, que reencenam os processos de extração dos nossos corpos e perspectivas, reestruturando o Evento Racial. 7 Se relacionando com o pensamento glissantiano, a artista aposta na elaboração de estratégias de fuga que se posicionam “além do cercado do inteligível, à sombra dos regimes de representação e registros da opacidade”. Como, então, escapar pelas imagens?
Na mesa “Tiranias da Subjetividade”8 Leda Maria Martins arrisca a ruptura da ideia do sujeito racional moderno. Ao identificar os processos de autonomeação e autodeterminação na cena negra — enquanto demanda histórica de direito à fala, à refiguração e à reapresentação da negrura nos palcos brasileiros —, a intelectual aponta para uma possível ruptura do eu, ao elaborar a proposição do eu-nós, em que a pessoalidade não se restringe à noção de indivíduo, mas que se desdobra para a transformação do coletivo, numa rede de compartilhamento de afetos, memórias e experiências.
Castiel canta para todas elas, num é? Apesar da câmera empunhada para si, em “Para todas as moças” a artista ativa um jogo contínuo desse eu-nós. Não apenas na coletividade do grupo que anuncia (bichas, travestis, testículos femininos), mas com todas as existências visíveis e invisíveis do universo recriado, em que ela é, ao mesmo tempo, corpa, vento e ar. Não confinada em si, ela propõe um infinito de corporeidades que se transmutam à medida em que ela canta seu ponto. “Se meu corpo é água de hibisco…” Não consigo ver, mas imageio.
“Eu queria ser peixe”, diz Castiel, em “Uma noite sem lua” (2020). Em “Para todas as moças”, Castiel é rio e cu. É corpa que se tornará ventania e chuva. É metamorfose, ou melhor, transmutação. Dentro dessa encruzilhada, ela vive-comunica-produz-habita estados físico-químicos-espirituais da mudança. E foge, nos força à imaginação/imageação. A produzir imagens que estão vibrando no invisível, e que nos são compartilhadas através de outros registros, que não os da transparência.
Sobre opacidade e vulnerabilidade
A tradição da transparência é ocidental, hegemônica, ligada ao sujeito moderno, e como Castiel falou9, não há prosperidade sem acumulação e sem a violência dos nossos corpos pretos, uma vez que esse mundo se estrutura eliminando tantos outros mundos possíveis. Se queremos interromper o suposto tempo contínuo da história e produzir um evento suspenso e efêmero que nos impossibilite sonhar com a promessa de tornar-se sujeito… A criação desses eu-nós, que Leda nos sugere, seria uma rota possível para escaparmos dos processos de expropriação e captura?
Num mundo em que não apenas nossos corpos, mas as nossas ideias vendem, como escapar pelas imagens, uma vez que esse projeto de modernidade e sua constante reatualização são incompatíveis com a possibilidade de nos manter vivas? Retomo ao início dessa conversa: como acreditar nas nossas presenças sem implicar, necessariamente, na ativação da ideia de ser sujeito? Sem exigir, nas telas, a integralidade de nossos corpos? Como acreditar naquilo que as matérias e os materiais sussurram, cochicham, fagulham e emitem sobre esses eu-nós?
Em “Uma noite sem lua” (2021), Castiel diz: “Eu tenho medo ainda maior de enxergar cores que não consigo ver com meus olhos humanos. Com meus olhos que nunca foram humanos. Eu tenho medo de enxergar essas outras cores que não tenho nome. Eu tenho medo de enxergar essas outras cores que eu não sei dizer. Eu tenho medo dessas outras cores que me produzem cheiros e sabores que eu nunca senti, mas que eu lembro, que fazem parte de mim, mas que eu lembro delas, mesmo não lembrando de como dizê-las.” E se a gente abandonasse, ao menos por um instante, o ocularcentrismo e o logocentrismo? E se os territórios das opacidades, na produção das imagens (e nas nossas relações com elas), nos permitissem vislumbrar coisas que podemos lembrar ou sentir, ainda que não consigamos nomear ou ver?
No trecho citado acima, Castiel enfatiza duas sensações: angústia e medo. Ambas me parecem produzir estados de vulnerabilidade. Como essas sensações podem ser estimuladas ao ponto de nos permitirem aproximações com aquilo que não conseguimos traduzir em totalidade, mas que apostamos enquanto possibilidade relacional? Seria possível que os estados de vulnerabilidade reduzam as assimetrias relacionais que nos são impostas pela noção da diferença? Seria a instabilidade um momento possível de encontro e de troca (com os filmes)? Como estabelecer uma relação de confiança com as imagens enquanto estamos vulneráveis, e levantar como possibilidade trafegar entre territórios, até então, desconhecidos?
Desobedecer ao projeto do sujeito racional moderno é bagunçar radicalmente o campo das percepções. Estar com os filmes deixaria de ser um movimento de captura/interpretação para tornar-se um exercício das sensibilidades. Vulnerabilidade passaria a não ser visto como moralmente ruim ou indesejável, mas como estado de abertura para as relações até as últimas consequências, nos possibilitando criar campos de forças hipersensíveis e instáveis, que moveriam as fronteiras de nossas sensorialidades. Num eterno movimento de fuga e rearticulação do eu-nós, poderíamos, nem que seja por um instante, romper com o cerco da racionalidade. Um instante em que sensações, como a intuição e o pressentimento, habitem nosso encontro com as imagens. Um intervalo que, possivelmente, nos libertaria da cobiça de reduzi-las, compreendê-las ou aprisioná-las.
Referências
FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: ed. Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.
FREITAS, Kênia. Afro-fabulações e opacidade: as estratégias de criação do documentário negro brasileiro contemporâneo (2020). In: Pensar o Documentário: textos para um debate. Organização: Laécio Ricardo. Recife. Ed. UFPE, 2020.
GLISSANT, Édouard, Costa, K. P., & Groke, H. de T. (2008). Pela opacidade. Revista Criação & Crítica, (1), 53-55. https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i1p53-55
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. Editora Perspectiva, 1995.
MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. In: Arte e descolonização. MASP & Afterall. Org. Amanda Carneiro. São Paulo, 2020.
OLIVEIRA, Janaína. COHEN, Mark. With the Alma no Olho: Notes on Contemporary Black Cinema. Film Quarterly (2020) 74 (2): 32–38.
SANTANA, Tiganá. Tradução, interações e cosmologias africanas. Cad. Trad., Florianópolis, v. 39, nº esp., p. 65-77, set-dez, 2019.