“É importante saber que o que eu estou vivendo agora é o futuro que alguém sonhou para mim há muito tempo, e por isso que eu peço a benção dessas pessoas mais velhas”
Trecho inicial de NoirBLUE – les déplacements d’une danse, de Ana Pi.
A autorreferência artística ou o que se vem chamando de arte autorreferencial, como a própria etimologia da palavra explica, remete ao processo de falar de ou referir-se a si mesmo. É a capacidade de refletir o “eu-autor” que envolve questões de metalinguagem, identidade e memória. Já existem alguns estudos que percebem uma tendência a essa prática nas artes contemporâneas, principalmente no audiovisual, com obras cada vez mais em primeira pessoa, autorreferenciais, autorreflexivas, autotélicas. Autorretratos, filmes-ensaio, filmes-diário são alguns dos processos que revelam uma tendência que vai desde um resgate da memória familiar, através dos arquivos — como álbuns de fotografias e vídeos caseiros — a pesquisas sobre ancestralidade e origens familiares, que envolvem rituais de reimigração, pesquisas sobre identidade e história.
Se por um lado temos alguns trabalhos e autores já bem consagrados dentro do arcabouço temático, como o diretor Jonas Mekas, que ao longo dos seus mais de cinquenta anos de carreira construiu uma obra em torno do filme-diário, tornando-se um precursor do gênero e contribuindo para se pensar a autorrepresentação na esfera do audiovisual; ou Andrea Tonacci em Já Visto Jamais Visto (2013), em que utiliza de filmes e fotografias de seu acervo para investigar a passagem dos anos e o seu processo de amadurecimento enquanto pessoa e também enquanto diretor; ou ainda outros movimentos importantes, intimamente ligados aos documentários autobiográficos, herdeiros da tradição do cinema direto, como Miriam Weinstein, Kiko Goifman com 33 (2002), e Um Passaporte Húngaro (2001), de Sandra Kogut.
Por outro lado, quando se pensa em memórias afrodiaspóricas, em corpos pretos e afrodescendentes, os exemplos se tornam mais escassos, e mais recentes. Eu, autora, eu, mulher negra, fiz meu caminho ao autorreferencial em 2019 quando participei de um curso na Escola de Cine e TV de Cuba (EICTV). Apesar desse estilo altamente filosófico e reflexivo, que ajudou muito a me reconhecer e assumir como cineasta (e também que tipo de cineasta eu sou), por outro lado faltavam referências mais próximas a mim: onde estavam os trabalhos autorreferenciais de pessoas negras e indígenas?
Muitos desses trabalhos partem justamente de dois conceitos praticamente opostos: ausência e registro. Ausência que gera uma busca, uma busca por um passado, por uma identidade, por sua própria história. Ausência de registros, de arquivos, de memória, ou o apagamento e esquecimento de uma história. O registro de um cotidiano, um diário. Nos primórdios do cinema, muitos dos filmes tinham essa característica, de serem registros da realidade, do cotidiano, do dia a dia, da cidade. O registro está intrinsecamente ligado à representação, ou seja, estamos falando de representatividade (ou a falta dela).
“Representatividade, vem do ato de sentir-se representado, por alguém ou movimento mais influente, geralmente nas grandes mídias. Representatividade é, também, a qualidade de nos sentirmos representados por um grupo, indivíduo ou expressão humana, em nossas características, sejam elas físicas, comportamentais ou socioculturais. É por meio desta qualidade que nos sentimos parte de um grupo, pertencentes a ele, compartilhando experiências, impressões, sentimentos e pensamentos com seus membros” (FARIAS).
A representatividade está, como se pode constatar, fortemente vinculada à noção de identidade, mas apesar das conquistas recentes, como o dia da Consciência Negra no Brasil e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, existe toda uma luta que é inesgotável, pois parte de um processo de desconstrução da estrutura. No caso do audiovisual, se busca não só essa representatividade como também parte-se de um processo de rememoração e revisionamento da história. O curta-metragem Something Good — Negro Kiss (1898)hoje talvez seja um dos principais exemplos de como esse debate sobre a falta de registros e de representatividade negra está em pauta. A obra foiredescoberta somente em 2017 e adicionada ao American National Film Registry em 2018, e acredita-se seja a primeira representação cinematográfica da afeição entre um casal afro-americano. Um gesto tão simples e representativo, assim como são as histórias familiares. Por que quando falamos de amor, algo tão universal, sempre mostramos os mesmo tipos de pessoas, os mesmo tipos de imagens? Se tomamos como base pessoas negras e suas histórias, a ausência se torna mais presente e a necessidade de um registro ainda mais necessário. Como podem cineastas negros autorepresentarem-se e refletir sobre seus trabalhos se por muito tempo fomos literalmente ignorados e apagados?
Por isso, quando escrevo audiovisual autorreferencial da diáspora negra, estou falando de formas mais contemporâneas, pois só recentemente tomamos os meios para conseguir refletir sobre nossa existência e falta dela nos meios de comunicação na arte. Não à toa grandes partes das nossas produções nesse sentido são curta-metragens, vídeos, performances, ensaios. Alguns exemplos que tratam do registro desse cotidiano que corporificam autores e famílias negras em tela são Filme de Família Preta (2019), de Flávio Rocha, Dádiva (2020), de Evelyn Santos, e os filmes da diretora negra americana Camille Billops, que inclusive falam sobre essa busca por sua história e traumas. Esses filmes e o curta-metragem Travessia (2017), da brasileira Safira Moreira, usam do formato como metalinguagem crítica a essa falta de memória e de registro de pessoas negras. O uso de câmeras analógicas aqui tem um sentido de registrar aquilo que esteve ausente na maioria das famílias negras.
No caso de Travessia, Safira se motivou a fazer esse filme ao perceber a escassez de fotografias antigas de negros no Brasil, principalmente após tentar, sem sucesso, encontrar fotos de suas bisavó e avó maternas. Se é por meio da memória que histórias, pessoas e culturas sobrevivem à inevitável passagem do tempo, deixando para as futuras gerações legados e aprendizados, no filme há uma crítica às imagens antigas em que aparecem pessoas negras (como escravizadas, babás, etc.) e por isso se propõe a criar outras. Novas fotografias, novos registros, uma metalinguagem potente, que concretiza uma certa reparação histórica, afirmando que nós negros estamos aqui para sermos vistos e lembrados.
O cinema acaba por se tornar um lugar de memória. De acordo com Pierre Nora (1993), a midiatização modificou o modo de transmissão e conservação de valores — os usos da memória. Os “lugares de memória”, em sua análise, se constituem da necessidade de criação de arquivos, como suportes externos, pois constata a impossibilidade de existência de uma memória espontânea. Assim, sendo o audiovisual esse agente externo (ainda mais contemporaneamente com o celular e câmeras portáteis) que “constrói narrativas visuais e sonoras que se revelam importantes disseminadoras de conteúdos que estabelecem formas de dominação, os quais representam e constituem o imaginário simbólico da sociedade, ou seja, existe nessas produções uma ʽvontade de memóriaʼ e, assim, ʽa necessidade de criar arquivosʼ”.
A questão da memória e do apagamento, como visto, não é algo novo. As comumente chamadas “autobiografias” ou filmes em primeira pessoa têm relação muito íntima com o documentário. Falam de uma busca por identidade, por uma história, mas quando trazemos o recorte de filmes de pessoas da diáspora, esse sentimento se torna ainda mais complicado. Por exemplo, um dos temas tratados pela maioria das produções é o exílio, a morte e apagamento de uma memória familiar, ancestral. Nós não sabemos nem exatamente de onde viemos, pois vivemos o processo de escravização, em que nossos antepassados foram tirados da África. Não se trata de uma busca pessoal, mas sim de uma busca por toda uma história política, cultural que nos constitui hoje enquanto povos.
Assim trago os exemplos dos dois curtas da diretora britânica Onyeka Igwe, Sitting on a Man (2018) e Specialised Technique (2018); NoirBLUE — les déplacements d’une danse (BR 2018), de Ana Pi, e os documentários da diretora pernambucana Tila Chitunda, FotogrÁFICA (2016), e Nome de batismo — Alice (2017, melhor curta do Festival É Tudo Verdade), que falam sobre lugares de memória, deslocamento, performances e corporificação.
Sitting on a Man (2018) e Specialised Technique (2018) têm em comum a temática da dança e a apropriação de imagens da África dos arquivos do Império Britânico. Eles integram, junto com Her Name in My Mouth (2017), o tríptico No dance, no Parlaver. Onyeka nesse projeto se propõe a tratar do poder das mulheres, a resistência ao colonialismo e o problema da relação entre a comunicação e o uso da força. Sitting on a Man refere-se a uma maneira tradicional das mulheres do povo Igbo na Nigéria expressarem seu descontentamento com o mau comportamento de um homem. Elas cercam sua casa, dançam e cantam para protestar, e muitas vezes usam até da violência.
Esse tipo de ação ganhou importância histórica devido à Guerra das Mulheres de Aba (guerra liderada por mulheres nas províncias de Calabar e Owerri, no sudeste da Nigéria, em novembro e dezembro de 1929). Deveu-se à organização do sistema de administração colonial segundo o critério patriarcal europeu, com a consequente exclusão das mulheres do poder. Portanto, além do protesto contra os homens, era uma forma africana de desobediência civil e de luta sem armas, embora não inteiramente pacífica. Duas dançarinas e duas vozes confrontam o registro dos colonizadores nas três telas de Sitting on a Man. A montagem do som e os movimentos corporais jogam essa “imagem de África” e protesto. O Specialised Technique segue na linha do questionamento e protesto contra as regras estabelecidas pela Colonial Film Unit (instituição de propaganda e filmes educacionais do governo britânico) para representar os nigerianos nativos. As legendas apresentam um diálogo utópico (que não pôde nunca ocorrer) entre os personagens do filme e quem o dirige, os realizadores do Colonial Film Unit — e, por extensão, o espectador. A diretora faz perguntas a si mesma e questiona os personagens sobre como foram filmados e como gostariam que o filme tivesse sido feito. Também interage com o cartório, intervindo nele de várias maneiras.
A utopia do diálogo com esse cinema “científico”, e também a voz que “fala” ao passado desde o presente do poder colonial, respondem à irrupção de um corpo, presumivelmente o da realizadora. Ela entra no filme passando pelo feixe do projetor e filmando-o em seu colo.
Este último detalhe conecta ambas as peças, no que diz respeito ao corpo, e à falta de solução de continuidade entre a comunicação e o uso da força. Nos filmes colonialistas citados existe um poder exercido sobre quem foi filmado, contra o qual recorrer à palavra é uma ilusão. Em vez disso, os rebeldes nigerianos puderam usar a dança para impedir o funcionamento das instituições coloniais e responder à sua violência. Os curtas servem como uma tentativa de usar a proximidade crítica, estando perto ou entre o trauma visual do arquivo colonial para transformar a maneira como encontramos as pessoas que ele contém.
Tila Chitunda é diretora e produtora audiovisual em cinema e TV e é filha de refugiados angolanos. Ela transforma as histórias da sua família em documentários, investigando a memória e a relação entre as identidades dos povos brasileiro e angolano.
“Vem Tila, quem está falando é um Orixá muito próximo do orixá que lhe rege, e ele está dizendo que os caminhos estão abertos. Quando a gente busca nossa ancestralidade, a gente busca o início da nossa história, até encontrar nossa raiz e saber de que árvore nós viemos.”
Assim começa o curta FotogrÁFRICA, com essa fala de yalorixá Beth de Oxum enquanto joga búzios para Tila, que está começando esse trabalho de busca por sua história. O documentário é uma conversa com dona Amélia, sua mãe, para saber de seu passado numa Angola que ela desconhece, mas que influencia muito em toda sua formação enquanto pessoa, sendo a diretora a única filha da família que nasceu no Brasil. Montando um mural da matriarca cheio de imagens e fotografias da família, mãe e filha reconstroem a trajetória da família até a vinda desta para o Brasil. Um detalhe que logo chama atenção é sobre a questão da perda da identidade já em Angola, quando Amélia e seu marido tiveram que abdicar de seus costumes, de sua religião, romper com suas origens para virarem católicos e assim se “civilizaram”, ascenderam socialmente. Uma história que tem muita relação com esses rituais de deslocamentos, exílio, fuga. Como citado, esse tipo de narrativa sobre pessoas em busca de suas histórias familiares é muito comum, mas a história de Amélia e Tila ajuda a nos compreender enquanto povo. Um outro exemplo é quando Amélia conta que saiu de uma casa grande em Angola e foi obrigada a morar em um bairro pobre com toda família grande em casa de taipa aqui no Brasil ou que aqui as pessoas não tinham referências de africanos, então muitas tinham medo. O filme é um retrato dos conflitos e adaptações que falam muito sobre a relação entre África e Brasil.
Já em Nome de Batismo — Alice a diretora vai até Angola saber mais sobre sua história. Aqui a relação com o deslocamento, a desterritorialização e reterritorialização fica mais explícita. Esse curta começa com uma carta da avó de Tila (lida na sua língua original) falando da felicidade de saber que sua nova neta levaria seu nome. A partir daí acompanhamos a viagem de Tila em Angola, como forma de cartas a essa avó, ela nos conta suas experiências no país dos seus pais, no encontro com seus familiares até então desconhecidos, nas paisagens, do seu encontro com sua história e ancestralidade. Acompanhamos também suas reflexões, seu medo pelo que vai encontrar, por conta perda dos referentes espaciais, e de se sentir um pessoa desenraizada. Nas imagens mais diretas escutamos sua mãe, que a acompanha nessa jornada e em alguns momentos se apresenta como uma guia turística, dizendo “essa aqui é minha terra”, em outros já não sabe ou não se lembra.
Se FotogrÁFRICA funciona o estilo “falar do outro para falar de si mesmo”, como fez Maria Clara Escobar com Os Dias com Ele (2012), aqui é o próprio ritual de descolamento, o encontro proporcionado pela viagem que é motivador do filme. Nessa mesma linha segue o curta-metragem documentário de Ana Pi, bailarina, artista brasileira que trabalha com imagem e coreografia, com pedagogia contemporânea. Menos documental e mais performática, Ana trata desse deslocamento, dessa ida e encontro com África, como forma de reconectar-se com suas origens por meio do gesto coreográfico, engajando-se em uma experiência espaço-temporal que combina movimentos tradicionais e contemporâneos. NoirBLUE – les déplacements d’une danse não traz arquivos, fotos; se centra numa dança, pois na dança (e na música) nos conectamos com a nossa ancestralidade africana. Uma dança de fertilidade e cura, afinal África é o berço da humanidade. Mãe África. A pele negra sob o véu azul passa a fazer parte do espaço, produzindo assim novas formas e cores que evocam a ancestralidade, o pertencimento, a resistência e a sensação de liberdade.
As interpretações deste estudo revelam uma espécie de “corpografias negras” de resistência no uso da linguagem audiovisual, afinal estamos vendo a reapropriação de nossas imagens, um protesto contra o uso indevido delas e a busca pela história que foi apagada. Assim como essas diretoras e artistas muitas outras estão reconfigurando suas memórias afrodiaspóricas, elaborando uma conexão com a construção da identidade e a reivindicação da autorrepresentação simbólica. Nunca poderemos reaver tudo que nos foi tirado, é uma busca incessante que muitas vezes nos leva a lugar nenhum. Mas o que esses projetos mostram, e que uso para terminar esse texto (agora falando enquanto pesquisadora e cineasta que também trabalha com essas questões) é que nós temos o poder, aprendemos como usar dos mecanismos que criaram para nos explorar, nos matar e apagar nossa memória. Ninguém vai falar da gente, sem a gente; que continuemos assim, nos autorreferenciando.
Referências
FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove Press, 1967.
HALL, Stuart. A identidade na cultura pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeus da Silva, Guaracira Lopes Louro. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista do Programa de Estudos Pós-graduação em História e do Departamento de História da PUC-SP, n.10. São Paulo, dez. 1993.
FARIAS, Jordão. Representatividade negra como meio de auto afirmação: usos e sentidos. 2018. <Disponível em http://medium.com/@fariasjordao>