O cheiro não é codificável. O sentido do perfume é um sinal opaco que expande, pelo ar, mensagens entre o Brasil e Angola.
Kalunga nkoko unene, lungila meso, k’ulungila ntambi ko
(Kalunga é um grande rio que se pode percorrer com os olhos, mas não com as pernas)
— Provérbio de adivinhação usado entre os Bampanga da República Democrática do Congo1
Este texto-rosário é guiado pelas palavras de Elton Panamby e pelo documentário ‘’A Rainha Nzinga Chegou’’ (2019), de Isabel Casimira e Júnia Torres. Outras vozes também contam as contas dos mistérios que regem o rito das palavras, e serão anunciadas ao longo desta corrente. Por mistérios entende-se aqui o conjunto de eventos significativos que se relacionam com o invisível, acontecimentos esses inscritos nos tempos do documentário. Cada parte tenta uma aproximação com os momentos do filme no sentido de ‘“digerir o que o mistério não revela’”2, fugindo de uma linearidade dos acontecimentos encadeados na estrutura fílmica e buscando um caminho curvo entre os instantes misteriosos do filme, que ecoam, entre si, as sonoridades narrativo-textuais do Rosário.
I) Mistério da Anunciação
”Senhora Rainha
— Cântico do Congo
Chega na janela
Venha ver sua guarda
Sá rainha
Eu cheguei com ela”
O arquivo de um tambor incorpora o começo do filme, propulsionando a dança, o toque, e o canto das imagens uma vez que a presença da Rainha Cassimira será anunciada. O som dos tambores restitui a memória, a lembrança e a história do povo africano em exílio3 como nos conta Leda Maria Martins, Rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Afrografias da Memória. O som do arquivo incorpora uma atmosfera de rito que se abre, quase tudo é cantado nas primeiras sequências do filme: exceto a breve narração de peso etnográfico que apresenta o Candombe. Ouvir a guarda, em um longo espaço de tempo, diminui o nosso ritmo para entrar na velocidade do que está em cena. A repetição recria a dinâmica de estar com o filme. Em outro arquivo restituído para a exposição do documentário vemos a Rainha Isabel — a mãe — recebendo a visita de outro Reinado.
Enquanto a câmera tenta fixar o instante de chegada da guarda, algo escapa ao foco da captura e extrapola a cena: um som fora da marcação do ritmo se destaca dos demais. Ao contrário do instante histórico previsto, o som de patangome preenche os vazios da banda em harmonia na visita, quebrando a repetição no ar. Fora do centro de atenção da câmera, enquanto os Reinados se saúdam, encontramos quem ousa o som: uma criança balançava o patangome em outro tempo, até que um mais velho toma o instrumento de sua mão.
II) Mistério da Entrega
”Moçambiqueiro
— Cântico do Moçambique
É hora
É hora de viajá
É céu
É terra
É mar
Moçambiqueiro na beira do mar”
Assumo esta conta do rosário para compartilhar que já estive em dois ritos de entrega em cerimônias outras do catolicismo afrobrasileiro4, situadas em territórios distantes de Minas Gerais. O apego com o meu olhar a partir da presença nesses momentos vem de um laço com o momento de Entrega da Rainha-mãe Isabel. A dor da entrega de um posto, de um reinado, de uma coroa, ou de um rosário é a dor do fim de uma época, de uma estação, de um tempo comunitário em torno de uma Rainha que ali se entrega — é a soma de vários lutos. Quando uma Rainha é entregue os fundamentos não se encerram, mas a forma de tecer e reger os rituais ganham outra direção. A câmera, entre o aperto de uma sala cheia, direciona-se aos objetos de entrega, como um gesto de desesquecimento5. O registro de uma Entrega é um gesto ambivalente na medida que uma das motivações da captura é o grande volume de tempo que leva para o rito acontecer, no sentido de fixar o instante histórico. Por outro lado, desesquecer é um movimento que lembra a imagem das santas metamorfoseadas de Nossa Senhora do Rosário, como uma estratégia de reverter a ação erosiva do tempo sobre a memória.
III) Mistério do Acaso
”Essa noite nós andemo
— Cântico do Congo
À procura de um luar
Encontrei Senhora do Rosário
Hoje só que eu pude encontrá
Dim dim rim dim
Eu quero ver
Dim dim rim dim
Eu quero ver”
A História está andando uma vez que a Rainha-filha Isabel é a palavra viva que caminha pelas calçadas de Luanda. ‘’O que tem aqui tem lá, e o que tem lá tem aqui’’. A ação, com desejo espontâneo, do casal viajante que vai de encontro ao canteiro de Lágrimas de Nossa Senhora (ao mesmo tempo que a câmera recua como se previsse a aproximação) mistura o momento direto com o movimento dos companheiros de viagem, dando origem ao reencontro com a raiz das sementes.
IV) Mistério glorioso
‘’Palácio do rei
— Cântico do Congo
De longe avistei
Palácio do rei
De longe avistei
Rainha coroada
Coroa do rei’’
A câmera registra a Rainha-filha rezando diante do mar: ali é o território da realeza, e a câmera não ultrapassa o limite de seu sagrado — posicionando-se atrás de Isabel. As experiências do retorno às origens vivenciadas pela Rainha-filha remetem a direção compartilhada do documentário. Não é apenas um filme sobre as gerações de Rainhas do Reinado do Treze de Maio. É um filme da Rainha: a experiência de sua viagem é reinscrita no filme através de seu direcionamento compartilhado com Junia Torres. Os acontecimentos protagonizados pela Rainha-filha borram a perspectiva de um visionamento desencantado que lê as cenas como forçadas.
V) Mistério do mar
‘’Queira Deus
— Cântico do Congo
Queira Deus
Ô, povo do mar.
Queira Deus
Queira Deus
É hora de navegar’’
A água infinita se move em dois planos que dobram os tempos do documentário. Nas ruas de Concórdia a Guarda de Moçambique Treze de Maio preenche o ar anunciando que “é céu, é terra, é mar” após a entrega da Rainha-mãe Isabel ao rito de vida-morte. A mão sobre o som da Guarda reordena o tempo do filme nos deslocando para o outro lado da água infinita. De Luanda, o que tem lá tem aqui — e o que tem aqui tem lá. A continuidade sonora do Reinado Treze de Maio sobre o plano do mar de Luanda faz o canto deslizar no oceano, ao mesmo tempo que a voz da Guarda se apresenta como um portal entre-mundos. O plano do mar, como força matricial, retorna no final da viagem junto ao filme — como quem nos busca de volta para apanhar o que ficou para trás.
Observação: todos os cânticos que estão presentes no texto foram encontrados em Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá (1997), de Leda Maria Martins.