Nosso filme Teko Haxy – ser imperfeita é uma experiência do encontro. Diante da câmera, criamos personagens, mas também colocamos nossos assuntos mais íntimos. Assumimos uma estética íntima – nosso diário relacional – um experimento visual feito por nós, duas mulheres de diferentes mundos que criaram um mundo dentro dessas diferenças. Nossa auto-mise-en-scène. Um deslocamento. Em deslocamento, deslocamos a câmera e o celular de uma mão para outra, deslocamos ser mulher de uma racialidade cultural para a outra. Somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito e ao mesmo tempo, também somos diferentes. Tivemos que nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades para a realização de nosso filme – algo que se parece fluido em se fazer. Em nosso processo, nos compreendemos um pouco mais, respeitamos a outra nos pontos divergentes, criamos um novo estado dentro do humano. Assim, o que de mais verdadeiro podemos oferecer é a justeza das nossas imagens, o pessoal que é político. Nos filmamos marcando nosso espaço como mulheres, como um mergulho espiritual no ser mulher, ser imperfeita.
Filmamos por quase três anos, desde o nosso encontro em 2015 e tivemos que nos adequar à linguagem das vídeo-cartas. Um esforço mútuo pois de um lado era uma pessoa com pensamento juruá (branco) e do outro, uma pessoa com os pensamentos Mbyá e a visão diferente das coisas que tínhamos. Em suspensão, tudo era novo e não sabíamos o que poderia acontecer. Um cinema-processo, inacabado, imprevisível, com informes de “em construção” em frente à obra – assim, construído narrativamente pela montagem de Tatiana Soares de Almeida (Tita). A fissura se deu, apenas quando compreendemos a natureza dos nossos corpos – colocados em relação e como aliados. Postas em movimento, avançamos mais um degrau em nosso crescimento e fomos colocando nossa experiência pessoal nesse trabalho, compreendendo que possuímos dores distintas de um corpo mulher que “naturalmente” sangra e dores distintas por trajetórias completamente díspares no recorte de raça, cultura e espaço social.
É nesse lugar entre eu e a outra (e quem nessa relação é a outra?), entre observar o real e inventar o real, entre fazer e esperar acontecer e entre as incertezas, é aqui que nossa relação se estreita e gera – como duas mulheres que podem, se quiserem, gerar a vida – possibilidades estéticas e políticas por meio das conversas entre imagens. É nesse lugar que localizamos nosso filme, como uma dobra no tempo, de passado, presente e futuro. Um tempo que ambas aprendemos a ter:
Patrícia:
Sempre me pergunto quais são as ações e quais as partes da minha cultura: até que ponto termina minha cultura e começa a outra? Penso muito nisso quando faço um trabalho e fico conversando com alguém de outra cultura. O que mais me possibilitou a entender isso foram as práticas e ações diferentes que seguimos em determinado espaço, crenças, valores e modos de agir em determinado assunto ou momento. Ou seja, isso me deu um sentido das coisas. Eu compreendi que isso é a nossa identidade própria (de cada uma) e apesar de sermos tão iguais – no meu modo de pensar, somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito, dois seres imperfeitos – e ao mesmo tempo, também somos diferentes. Somos iguais e diferentes. Tivemos que nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades. Sophia veio para minha aldeia e isso foi fruto de um esforço coletivo, pelo aprimoramento de valores culturais e materiais. Digo isso porque minha família acolheu Sophia, sendo que ela era de fora e nós tivemos um esforço de tentar compreender Sophia e Sophia nos compreender. E isso foi fundamental para entender os nossos valores morais e éticos que guiaram nossos comportamentos, nossa relação e nossa obra. Entender como esses valores internalizaram em nós e em como isso conduziu nossa relação uma com a outra. Primeiramente, nós aceitamos o desafio de mudar, de nos compreender.
Então, acredito que sobre todas as coisas houve diferenças culturais. E acho que não poderia haver uma evolução espiritual para nós duas sem a nossa abertura de compreensão para nossos dois mundos. Dessa forma, foi possível alcançar nosso objetivo, pelo menos pra mim. Houve uma espécie de consciência de nós duas, como humanas. Foi muito rápida nossa elevação para ver o amor, para ver nosso interior e a realidade de cada uma. E acho que quando a gente percebeu essa verdade fomos acolhidas uma pela outra. Nosso amor começou a se manifestar em cada uma das coisas e no ambiente em si. E assim, todo o processo pra mim foi uma busca espiritual de vida – cada vez mais maravilhosa – que foi colocada em nós duas.
Sophia:
Combinávamos alguns vídeos, mas outros surgiam de maneira espontânea. Embora tivéssemos nossos temas guiando as filmagens, nossa experiência e a espontaneidade das coisas foram, na verdade, nosso roteiro. A cada início de filmagem, a performance diante da câmera era fabulada, como uma câmera diário em escrita compartilhada feita da nossa relação.
O extracampo (tudo que envolve a cosmologia Mbyá) está sempre presente nas ações de Patrícia como ser. Seu “modo de ser” (o nhadereko guarani) está presente cotidianamente em qualquer atividade que ela faça. Nas coisas simples como escolher qual parte da galinha cortar, quando vai tomar banho de rio, quando me ensina sobre os cuidados sexuais e a produção do corpo entre meninas e meninos… Aprendi de dentro pra fora (da casa para o mundo) a cultura Mbyá. E assim, o movimento de dentro pra fora e de fora pra dentro manteve-se constante entre mim e Patrícia. Deslocamento que ela faz constantemente entre sua etnia e os juruá kuery (brancos).
Trazemos à tona uma questão pouquíssimo discutida na antropologia, nas artes visuais e no audiovisual que são “as questões das mulheres”: a casa, a maternidade, a mulher e suas relações afetivas, a sexualidade, o corpo, as dores, as somatizações disso tudo. Principalmente, como todos esses temas comuns, do dia-a-dia , estão diretamente imbricados em nossa vida política, social e cultural. Confrontando assim, a desvalorização universal do domínio doméstico. O mais bonito disso tudo é como as camadas das nossas personalidades e nossas formas de ver o mundo a partir das nossas experiências cotidianas vão se tensionando e deixando nossas contradições expostas. Patrícia quando diz para os brancos: “acho que vocês queriam que a gente não existisse” no limite, ela também destina a mim. Mas, ainda sim, somos nós, Patrícia e Sophia, vulgo “mulher branca” e “mulher indígena” criando uma obra artística juntas e isso sim, pode ser uma arma pra rasgar o peito de todo olhar com viés etnocêntrico, etnocida, preconceituoso e machista. Nos filmamos marcando nosso tempo como mulheres. É como um laboratório do nosso feminino. Um mergulho em ser imperfeita.
Em nossos acordos de filmagens e em nosso calendário, tivemos algumas incompatibilidades, um movimento duplo de se adequar uma ao tempo da outra. Um jogo de espelhos complexo do reconhecimento da construção do sujeito em todo lugar, em que se aprende a ver o mundo através do que a autora Bahri (2013, p. 683) chama de “lógica da adjacência”: “leríamos, então, as mulheres no mundo não como iguais, mas como vizinhas, como ‘moradoras próximas’ cuja adjacência pode tornar-se mais significativa […] leríamos o mundo não como único (no sentido de já estar unido), mas como um conjunto”.
Por fim, através dos nossos conflitos subjetivos e coletivos e das nossas formas de ver o mundo, estávamos sob o risco, pois lançar-se na incerteza pode não dar certo, mas até o que “não dá certo” nos é importante e faz parte do nosso processo. Como salienta MacDougall (1975, p. 128, tradução nossa): “conjecturar que um filme não precisa ser uma performance estética ou científica: ele pode se tornar a arena de uma investigação”. Na presença desse “campo” investigativo, a abordagem das nossas imagens por meio do desenho e da câmera explora justamente a aproximação e a tensão desses métodos.
Referências:
BAHRI, Deepika. Feminismo e/no pós-colonialismo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 659-688, maio-ago. 2013.
OVERING, Joanna. Men Control Women?: The Catch-22 in Gender Analysis.
International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, issue 2, p. 135-56, 1986.
MacDOUGALL, David. Beyond observational cinema. In: HOCKINGS, Paul (Ed.).
Principles of visual anthropology. New York, NY: Mouton de Gruyter, 1975. p. 115-132.
TRINH, Minh-ha T. Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença. Tradução de Augusto de Castro. Forumdoc.BH 2012 [Catálogo], Belo Horizonte, 2012. p. 201-206.
TEKO HAXY – ser imperfeita (2018)
Documentário experimental, colorido, 39min
Sinopse: Um encontro íntimo entre duas mulheres que se filmam. O documentário experimental é a relação de duas artistas, uma cineasta indígena e uma artista visual e antropóloga não-indígena. Diante da consciência da imperfeição do ser, entram em conflitos e se criam material e espiritualmente. Nesse processo, se descobrem iguais e diferentes na justeza de suas imagens.
Exibições “TEKO HAXY – ser imperfeita”
2018
II FINCAR – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras (BR)
Môtif Film Festival (EUA)
6º Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (Cocaal) e do Colóquio de Cinema de Autoria Feminina (cocaf) (BR)
IV Pirenópolis Doc – Festival de Documentário Brasileiro (BR)
51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (BR)
2019
Programação Abril Indígena – Sesc SP (BR)
14ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto (BR)
MINIBIOGRAFIA PATRÍCIA FERREIRA PARÁ YXAPY:
Patrícia Ferreira (Pará Yxapy) é realizadora audiovisual indígena da etnia Mbyá-Guarani. Mora na Aldeia Ko’enju, em São Miguel das Missões/RS, onde é professora desde 2006. Em 2007, co-fundou o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema e hoje é a cineasta mulher mais atuante do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). Atualmente está finalizando seu primeiro longa autoral e circula com o filme TEKO HAXY – ser imperfeita, codirigido com Sophia Pinheiro. Dentre as premiações de seus trabalhos destacam-se os prêmios: Menção Honrosa – XIV FICA (2012) pelo filme Desterro Guarani, o Prêmio Cora Coralina de melhor longa no XIII FICA (2011), o Prêmio Melhor longa/média do III CachoeiraDoc e Menção Honrosa mostra Competitiva Nacional do forumdoc.bh.2011 pelo filme As Bicicletas de Nhanderu; Em 2015 o Prêmio Melhor curta Júri Oficial e menção honrosa Júri Jovem do VI CachoeiraDoc pelo filme No caminho com Mário. Em 2014 e 2015, participou de residências artísticas com os cineastas indígenas Inuit, no Canadá. Já realizou os filmes: As Bicicletas de Nhanderu, 2011/45min; Desterro Guarani, 2011/38min; TAVA, a casa de pedra, 2012/78min e No caminho com Mario, 2014/20min.
MINIBIOGRAFIA SOPHIA PINHEIRO:
É pensadora visual, interessada nas poéticas e políticas visuais, etnografia das ideias, do corpo e marcadores da diferença, principalmente em contextos étnicos, de gênero e sexualidade. Atua principalmente nas seguintes áreas: processos de criação, antropologia, artes visuais, intervenções artísticas urbanas, arte & tecnologia, fotografia, videoarte e cinema. Doutoranda em Cinema e Audiovisual do PPGCine-UFF, mestre em Antropologia Social pela UFG (2017) e graduada em Artes Visuais pela mesma universidade (2013). Participa do grupo de pesquisa Documentário e Fronteiras. Ganhou dois prêmios como artista visual e cinematográfica no Fundo de Arte e Cultura de Goiás (2015), participou do VIII Prêmio Pierre Verger de Ensaio Fotográfico (2016) e ganhou o 23º Prêmio Sesi Arte e Criatividade em 2º lugar na sessão Obras Sobre Papel (2017). Seus trabalhos artísticos já foram expostos no nordeste, sudeste e centro-oeste brasileiros além de países como Argentina, Paraguai, Espanha e Alemanha. Recentemente realizou sua primeira exposição individual “MÁTRIA” em Barcelona (ES). Atualmente circula com seu primeiro média-metragem “TEKO HAXY – ser imperfeita” codirigido com a cineasta Patrícia Ferreira Pará Yxapy, é professora da Academia Internacional de Cinema (RJ) e artista bolsista do programa Formação e Deformação – Emergência e Resistência 2019 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ).
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