Foi difícil começar a escrever sobre Temporada. Assistido naquela sala enorme onde acontece o Festival de Brasília, à medida em que seu tempo de duração avançava, eu sentia uma excitação tranquila tomar conta ao perceber o que estava diante de mim. Algo meio mágico, místico. Era um filme especial. Por isso mesmo, a dificuldade: como escrever um texto inteiro tecido em elogios que contribua para uma discussão estética? Como evitar a generalização e delimitar o que conferia ao filme tamanha suavidade e precisão?
Temporada acompanha Juliana, personagem vivida pela grande atriz e dramaturga Grace Passô, que se muda de Itaúna para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, consegue uma vaga para trabalhar no combate a endemias e espera a chegada de seu marido no novo endereço. A marca do naturalismo e sensibilidade com os quais o diretor e roteirista André Novais Oliveira trata suas histórias, em filmes anteriores vividas por atores não profissionais de sua própria família e de sua convivência, como em seus curtas-metragens e no longa-metragem Ela volta na quinta (2014), permanece presente.
Juliana, aos poucos, constrói laços com os personagens e com o espaço da cidade em seu novo contexto. Em planos em tons de azul claro com pitadas de amarelo e vermelho, assistimos a suas caminhadas pelos bairros batendo de porta em porta e interpelando desconhecidos para prevenir os focos de mosquitos. As interações são singelas. Vemos seu ponto de vista do alto de um telhado. A paisagem da cidade se alterando, Juliana como parte dessa paisagem.
Os laços que Juliana tece são tecidos por nós também. Os novos amigos de Juliana, com destaque para o personagem de Russão, são também nossos. Estamos ali. Na conversa que Juliana tem com uma amiga na pequena mesa encostada na parede da cozinha, em que o sentimento de confissão e confiança é tremendo, sentimos que também estamos guardando um segredo. A preocupação carinhosa que Juliana tem com os acontecimentos na vida de Russão é nossa também.
E, portanto, de cena em cena, de diálogo em diálogo, de movimento de câmera em movimento de câmera, com eventuais clarinetes, dos azuis aos amarelos até chegar ao maiô vermelho na cachoeira, Temporada se constrói como uma obra ritmada, de tempos e sensações que parecem ter sido esculpidos; chega a parecer uma música. Digo naquele sentido de que os sons, as canções, tocam o âmago de uma maneira tão visceral e simples que é difícil de ser destrinchada (e queremos destrinchá-la?).
Ao mesmo tempo, vejo Temporada como um filme de cumplicidade. É um filme de silêncio: o nosso, do espectador, que silencia para ouvir melhor. Para sentir um clima e intuir. Sem megalomanias ou exageros de complexidade artificialmente implantados com o objetivo de produzir emoções específicas, sem uma instrumentalização óbvia do cinema. E, nesse sentido, me peguei pensando no potencial político de um filme como esse.
Caminhando pelo Festival de Brasília nas edições dos últimos quatro anos, foi possível ouvir comentários pejorativos sobre a política que se constrói nos filmes. Como se um filme político fosse um filme que não pensa suficientemente na forma, na estética, em questões existenciais e universais. Como se fosse possível fazer um filme sem se imbricar na forma, na estética e em questões também universais. Existe um olhar anacrônico que defende que um filme precisa optar entre a política e a estética. E, normalmente, é justamente esse olhar que cobra de sujeitos que escapam aos marcadores sociais hegemônicos (que talvez possam ser definidos no Brasil como: um homem branco, heterossexual, da capital, sudestino e de classe média alta) algo que represente alguma “reivindicação” evidente.
Quando a estrutura que nos constrói como sujeitos históricos está organicamente entrelaçada à experiência do filme, por vezes corre o risco de se tornar ponto cego no olhar dos que nunca precisaram fazer esse esforço para ver. Desacostumados. Felizmente, sinto que o caminho que tem sido trilhado possibilita que cada vez mais essas opacidades no olhar sejam desmanchadas e/ou reconhecidas; que exista ao menos consciência do que não se vê, do que não se ouve. Em Temporada, ouvimos e vemos nossos arredores (os de Juliana, na verdade). Sentimos o tempo passar entre as caminhadas, a mudança do penteado, a nova estação vindo no vento.
Não sou a primeira a dizer que o filme de André Novais Oliveira sinaliza algo nesse sentido de uma política que se dá pelo cotidiano e pela relação. Entre masculinidades, feminilidades, negritudes, ausências e presenças, a existência no espaço de Contagem. Questões sociais fundamentais dessa rede de afetos e solidões de Juliana estão presentes ali no filme para serem sentidas, vividas e discutidas, enquanto há essa magia no ar que se alastra. Temporada é um filme preciso, suave e verdadeiro. É especial, por ser assim de uma forma que talvez não deva ser esmiuçada em palavras, muito menos em termos técnicos. Uma questão de intuição.
Leia também o texto sobre Ela volta na quinta (2016).
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