Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Camila Vieira

Realizadora e colaboradora do Verberenas desde agosto de 2016.

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CARTA AO INFERNINHO: HORA DE VOLTAR

Guto, Pedrinho e turma do Bagaceira,

Vocês já sabem que foi a segunda vez que assisti ao Inferninho no Festival de Brasília. No ano passado, o filme ainda estava em fase de finalização, dentro da Mostra Futuro Brasil, quando recebi o convite de vocês para a primeira exibição. Talvez nem imaginem, mas saí daquela sessão com um choro engasgado. Não tinha a intenção de publicar algum texto, até porque seria injusto escrever qualquer crítica de um filme que muitos nem sequer tinham visto. Fiquei com vontade de conversar com vocês depois, mas a correria do festival também não permitiu. Troquei algumas palavras com Pedrinho, quando disse que o filme me lembrava muito de Fortaleza. Uma certa relação com a cidade, que fazia com que muita gente de lá precisasse ir embora, para depois voltar. E agora em 2018, rever o filme já finalizado acabou por desaguar todo aquele choro antes contido.

Há uns cinco anos, eu me via em Fortaleza em estado emocional parecido com o de Deusimar no Inferninho. Em uma cidade com aquela mesma atmosfera decadente do bar. Um lugar onde as coisas pareciam se repetir e tudo ao redor respirava um cansaço letárgico. No filme, a cantora sempre faz o mesmo show todas as noites e o público permanece ali estagnado em torno das mesas. Sem dinheiro no bolso, aqueles personagens – Deusimar, a cantora, o coelho, a faxineira, o tecladista – persistem em manter o bar aberto. Eles continuam, mesmo sendo difícil. Em Fortaleza, tinha essa mesma sensação de que, ainda que tudo caísse na mesmice, havia a vontade de continuar fazendo junto.

Na reviravolta do filme, homens a mando do governo querem desapropriar o bar para ser implantado o complexo de entretenimento The Virtuarium. Pensei logo no Poço da Draga, onde comunidades foram ameaçadas de remoção por causa da construção do Acquario, projeto do ex-governador Cid Gomes. Saí da cidade onde nasci no momento mais intenso de discussão em torno desse empreendimento milionário que hoje se encontra suspenso e que faz parte da lógica de investimento turístico em grandes centros urbanos. Uma cidade transformada em vidros e ferros, que não guarda uma memória. Uma cidade que se modifica tão rápido que nem reconheço mais, sempre quando volto a cada seis meses.

Mas foi nessa mesma cidade que vi florescer um dos grupos de teatro mais importantes do Brasil. Comecei a acompanhar o Bagaceira ainda no início da minha carreira como jornalista e ver os espetáculos do grupo era sempre uma experiência fascinante. Com todos eles, aprendi que era possível encontrar formas de continuar em Fortaleza e, ao mesmo tempo, criar e se reinventar. Não é nada fácil permanecer junto. Sentir o Bagaceira reunido novamente – agora no cinema – me levou a reconectar com aquela energia. Gostaria que Yuri, Samya, Demick, Tatiana, Rogério e Rafael pudessem estar na sessão para dar um abraço forte em cada um. Não consigo ver o Inferninho apenas como um filme de Guto e Pedrinho, mas também como um filme do Bagaceira. É um amálgama de experiências estéticas, que cruzam o cinema com o teatro.

Rafa, preciso dizer novamente o quanto é maravilhoso ver você em cena? Sei que você se sente bem mais confortável como dramaturgo do grupo, mas aquela sequência da conversa do Coelho com a Deusimar é um dos melhores presentes que qualquer espectador do filme pode receber. Eu me via em prantos. Pensei que estava chorando sozinha, quando olhei para o lado e vi que outras pessoas também estavam emocionadas. Tudo o que o personagem fala nos envolve como um bálsamo, ainda mais porque estamos em um momento terrível de crise, de incertezas. É preciso não maltratar mais a vida e ir atrás dos nossos sonhos.

Saí de Fortaleza, porque a cidade já me sufocava. Muitos amigos já tinham ido embora, em busca de oportunidades em outros lugares. Outros tantos ficaram, permaneceram, resistiram. Não me esqueci nunca de todos aqueles com quem criei vínculos. Amigos e familiares sempre povoavam minhas lembranças. Depois de cinco anos no Rio, vejo que é hora de regressar ao lugar onde nasci e cresci. Para quem parte, sempre chega o momento de retornar. Voltar a viver em Fortaleza será uma experiência nova.

Abração,

Camila

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