“Os homens que eu tive”. No contexto em que essa frase se formula, o eu, saberemos, se refere a uma mulher. Ter é, a princípio, em nosso léxico linguístico, possuir, no sentido de ter posse de, mas também usufruir, desfrutar, gozar, significantes que, veremos, definirão ainda mais o destino de tal sintaxe. Por fim, os homens, o plural de homem — aqui não genérico de humanidade, mas indivíduo do sexo masculino — se refere a muitos, vários deles.
Não há dúvidas, pois, que esse enunciado subverte a lógica machista estruturalmente arraigada nas nossas relações, comportamentos e hábitos, portanto, definidora de nossas mentalidades com seus modos de ver e conceber o mundo social. Tal lógica de base patriarcal sustenta e é sustentada pela ideologia a partir da qual, realmente, “alguém possui alguém”: o homem a mulher. E nesse caso, possuir conota desfrutar não só como usufruir — ter prazer com aquele corpo — mas, submeter o corpo feminino ao prazer masculino, tomar a vagina como ausência, buraco, que só existe ao ser preenchido pelo pênis. Daí os significantes de dominação e posse sexual: comer, traçar, fuder. Do campo sexual, o possuir como dominar se estenderá ao político: comandar, governar, subjugar. Chegamos enfim ao modus operandi do patriarcado.
Ao nomear seu longa-metragem brasileiro, realizado entre 1972 e 1973, como Os homens que eu tive, a cineasta Tereza Trautman expõe, em plena ditadura militar — exercício totalitário do poder masculino no cerceamento das livres formas de expressão —, seu contrapoder feminista na forma de materializar aquilo que seu filme enuncia. Trata-se de um dístico que já é em si o manifesto daquilo que a narrativa cinematográfica de Trautman guarda em sua fatura: colocar em cena uma personagem mulher que, por sua vez, coloca em crise os desmandos patriarcais, com seus dispositivos disciplinares de moralização e salvaguarda do corpo feminino, não através de ataques diretos, mas pela naturalização do feminino em sua vivência do erótico e da liberdade sexual. Lembrando que, para Audre Lorde, “o erótico não diz apenas do que fazemos, mas da intensidade e da completude do que sentimos no fazer” (2019, p. 69).
Através de uma mulher protagonista, Pity (Darlene Glória), a quem a câmera acompanha o cotidiano sem cessar, ao longo de todo o filme, outra mulher, a cineasta, vai malograr os brios da sociedade falocêntrica — aquela que tem o falo, o pênis, em seu centro — ao não necessariamente inverter a lógica do quem come quem, portanto de quem domina quem, pois fazer isso igualaria seu posicionamento àquele que ela mesma critica (o machismo), mas ao questioná-la e assim subvertê-la.
Tal questionamento, como já dito, é indireto pois o dispositivo — formal, narrativo, e performativo — do filme funciona muito mais no sentido de virar as costas, portanto de suspender, como se ela (a dominação masculina) não existisse em pleno anos 70, tempos completamente abafados pela ideologia patriarcal, em que tradição, família, propriedade aparecem no ápice dos valores moralistas e conservadores, de base direitista-militarista, como posse masculina, sobre os quais a mulher não tem menor intervenção, nem possibilidade de reinvenção, ao contrário, a ela só resta zelar e conservar.
O problema é que esse caráter de suspensão da dominação, ao não tratar de trazer o inimigo para o campo de batalha cinematográfico e ali enfrentá-lo, como poderíamos considerar acerca dos documentários militantes do contra cinema de mulheres dos anos 70, como os de María Luisa Bemberg, na Argentina; Carole Roussopoulos, na França, Rita Moreira e Norma Bahia Pontes, e Helena Solberg (no Brasil e nos EUA), e mesmo algumas ficções como Amor Maldito, da cineasta brasileira negra Adélia Sampaio — pode não só ser subversivo, mas ainda mais potente do ponto de vista feminista.
Através da entrega completa aos quereres, ao comportamento, ou seja, as formas múltiplas de subjetivação da protagonista feminina que namora, transa, e se junta a vários homens, ao mesmo tempo, e ainda cuida de si mesma, erotiza seu ser no mundo, sem ser ou sofrer o estigma da prostituta, Trautman parece não insultar o inimigo, nem mesmo querer tratar com ele, mas abrir uma fenda para uma vida possível. Ao mostrar quão normal essa vida poderia ser, na agência de Pity sobre os seus sentimentos e relações, que mesmo em sua vida libertária, sofre, duvida, se transforma, e precisa estar só consigo mesma, ela menos idealiza um mundo do que o expõe como humanamente possível, independente do machismo.
Com Os homens que eu tive, tudo se passa como se em vez de fazer da cena, ou do cinema em si, um terreno de disputa que desse lugar também ao discurso machista para dele se contrapor, Trautman tivesse simplesmente ignorado tal discurso e construído com o cinema um mundo possível, onde as mulheres, na figura de Pity, poderiam ser o que quisessem pois seriam donas de seus corpos e desejos. Abre-se assim um cinema, como faria Barbara Hammer também nos anos 70 nos EUA, em relação à vivência lésbica, para que o ser mulher supere o assujeitamento aos desmandos capitalistas-sexistas: heteronormatividade e casamento compulsório, família e maternidade instituídas segundo tais normas. Aí pode-se dizer que aos olhos patriarcais-militares da época, a cineasta nomeia a vagina na experiência feminina, não aos moldes do falocentrismo1, mas trazendo a mulher e seu corpo para o centro da cena. Sem fazer de ambos objeto do deleite pulsional do olhar masculino (como o male gaze do qual nos fala Laura Mulvey), o filme, ao contrário da tradição industrial cinematográfica, elabora a mulher como aquela que é verdadeiramente protagonista, pois devolve-lhe sua vagina para qual ela mesmo pode olhar com erotismo, e pode experimentar com outros sem ser prostituta ou carregar o emblema negativo que a história machista conferiu a profissão.
O erótico é um recurso intrínseco a cada uma de nós localizado em um plano profundamente feminino e espiritual, e que tem firmes raízes no poder de nossos sentimentos reprimidos e desconsiderados … para se perpetuar, toda opressão precisa corromper ou deturpar as várias fontes e poder na cultura do oprimido que podem fornecer a energia necessária à mudança, no caso das mulheres, isso significou a supressão do erótico como fonte considerável de poder e de informação ao longo de nossas vidas. (Lorde, 2019, p.67)
Nesse sentido, Os homens que eu tive enfraquece o poder fálico, e anula a submissão feminina, ao tirá-lo da cena para encenar outra forma de vida, de desejo e de relação com o feminino.
Mesmo se apresentando como uma abertura para igualdade e não para a supremacia de qualquer gênero, Tereza Trautman nomeia o problema do machismo, como o feminismo sempre buscou, ao pleitear um lugar também para o corpo feminino e, portanto, descentralizar o pênis. Assim, o que o filme opera já é suficiente para ser lido como ameaça ao falocentrismo, portanto motivo cabal de censura na época. Não à toa o primeiro corte da censura, ainda no ano de lançamento, incide em cenas, mas também no título –– que conforme sugerido pela própria produtora deveria passar a ser Os homens e eu.
Contudo, as revelações sobre o aparelho de controle e condenação desse filme não param por aí, e é digno de avaliação cuidadosa o tamanho do dano que ele parecia causar nos brios do poder militar, governamental, institucional, cinematográfico. Dentro da instituição cinema de uma época, na qual a pornochanchada era dominante como produção e mercado, em que mulheres nuas e conteúdos obscenos eram comuns, o filme de Trautman não representaria nesse quesito nenhuma ameaça a mais. Numa censura que deixava passar filmes como A viúva virgem, de Pedro Carlos Rovai, também de 1972, ou Como é boa nossa empregada (1973), de Ismar Porto e Vitor di Melo; e em que Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor — de mesmo ano e com a mesma atriz de Os homens que eu tive, Darlene Glória, mas que faz ali o papel de uma prostituta —, é censurado, mas retorna às salas de cinema um ano depois2; não se tratava de preservar a moral familiar, mas de reinstituir uma moral que fortalece a figura do homem sobre a mulher.
Com Pity, a mão masculina será muito mais pesada, e ela parecerá bem mais perigosa, quando imaginamos que o filme de uma jovem cineasta de 22 anos pode balançar uma construção patriarcal secular em pleno regime militar quando os jovens subversivos e adeptos ao estilo de vida hippie eram considerados delinquentes. Porém, ao questionar o modelo da família burguesa de dentro dela — uma vez que Pity é uma mulher branca, estudada e de classe média do Rio de Janeiro, que frequenta a praia de Copacabana com os amigos e mora num apartamento bacana na zona sul da cidade —, a agência da mulher tida como recatada e do lar se torna uma realidade possível. A personagem não só se afasta daquela figura abjeta — a da prostituta de Jabor, totalmente humilhada no filme —, construída ao longo de séculos como um desvio (da bruxa3 à vagabunda), mas também inquire tal visão.
Tereza Trautman nos conta que a personagem foi totalmente inspirada em Leila Diniz, uma atriz carioca, lindíssima, que chocava a sociedade brasileira com seu pensamento libertário, suas roupas sempre insinuantes, e seu palavreado “pouco feminino” (ela falava palavrões aos borbotões) e assumia sua sexualidade de modo aberto (era “desbocada” no vocabulário da época). Famosa por ser a primeira mulher a usar biquíni grávida, e dar uma entrevista ao famoso semanário Pasquim, em 1969, dizendo, entre muitos depoimentos que afirmavam sua autonomia feminina: “Eu posso amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Já aconteceu comigo”, Leila morre em um acidente de avião no mesmo ano, 1972, em que começava ensaiar junto à cineasta cenas para Os homens que eu tive.
Se a associação com Darlene Glória, que viria a ser a atriz escolhida por Trautman para interpretar Pity, vai além de sua atuação no filme, mas nos permite traçar a relação com a figura cinematográfica da prostituta que ela encarna na mesma época no filme de Jabor, a associação com Leila Diniz também vai além do espírito contracultural que sua personalidade mobilizava para o longa já em seu roteiro. Ela nos lembra quão despolitizante do ponto de vista feminista pode ser a leitura de Os homens que eu tive como um filme que expressa e condensa em si o ideário hippie, que pode ser, na desculpa da abordagem histórica, bastante redutora. Leila não era uma hippie, ao contrário, era uma atriz de cinema, de classe média-alta, que frequentava o showbiz do Rio de Janeiro, e que empunhava a bandeira de que era possível ser mulher insubordinadamente no seio daquela sociedade. Não há dúvidas que o filme (e tal visão se encontra nas muitas críticas a ele destinadas), feito e passado nos anos 70, se refere ao momento de muita força de um ideal hippie que valoriza o amor plural, a abertura aos experimentos sensoriais e ao poliamor. Contudo, tal leitura pode ser feita para desmerecer a potência política da liberdade sexual feminina no filme buscando associá-lo à visão pejorativa do estilo hippie como um idealismo encampado por pessoas loucas, desgarradas, usuárias de drogas que vivem a vida sem compromisso e na vagabundagem, que representava e ainda representa um problema para o progresso capitalista.
No filme, temos uma mulher casada que tem relações consideradas extraconjugais, sem que os homens que estão com ela se perturbem com isso, e que constata sua crise não em relação ao marido, mas em relação aos seus desejos, que ainda que vividos com autonomia, não lhe parecem encontrar os múltiplos caminhos que necessita para se realizar. É no momento que o marido, Dôde (Gracindo Júnior), se magoa e se afasta, pois percebe que Pity agora não está apenas dormindo com outro, mas apaixonou-se, que entra em jogo uma problemática existencial da liberdade que a protagonista precisa enfrentar. É menos portanto questionar a abertura sexual do que os modos de lidar com seus sentimentos e com os dos outros, enfim, um confronto que ultrapassa modelos de conduta e que está na gênese da experiência da não monogamia e seus desafios. É preciso ler tal contenda como instituinte do espaço da liberdade e da diferença, independente de gêneros e de lugares hierárquicos que a eles se imputam. Pity precisa então de seu espaço, de ficar só, até novamente se reencontrar na coletividade de uma casa comunitária rodeada pela natureza, do pintor Torres (Milton Gonçalves), onde vai morar com a amiga. Lá ela se volta para si mesma, para seus escritos, e seu corpo, que transita pelos espaços ainda de forma erótica, no sentido de que a sensação de existir e de fazer algo dessa existência ainda a move.
Por outro lado, uma leitura que também enfraquece o feminismo em Os homens que eu tive é aquela que minimiza o ideário hippie, mas o faz para dizer que Pity, como qualquer outra mulher, continua a buscar por uma família, pela maternidade, ou pelo amor, ainda que em formatos e composições diferentes. Dizer que há mudanças no que seria o modelo patriarcal de família pode parecer um passo, mas é insuficiente para que a perspectiva feminista possa ser um projeto político decantado pelo filme, quando ainda é por ela que Pity clamaria. Essa leitura enfatiza a realização da mulher na família ainda que desconstruída, em vez de se ater ao traçado da personagem no tempo de sua vida que o filme nos permite acompanhar. Tal traço compõe uma condição feminina em que o erotismo e a sexualidade vêm antes de qualquer busca familiar, portanto a chave está em olhar para a forma como o corpo de Pity é conhecido e vivido por ela com paixão e desejo de existência. A família, portanto, não é um fim para ela, mas as relações se fortalecem na medida em que seu corpo é liberto e aberto para experiências contra as amarras da vida doméstica imputada à mulher nos anos 70. Portanto, falar de família, nesse contexto, é evocar a dona de casa4, que a protagonista não é quando se muda de um canto para outro, e produz seus escritos como forma de elaboração de si. Falar de família seria evocar a maternidade como destino da mulher porque ela porta um útero, contrariando, assim, os postulados de Simone de Beauvoir.
Em Os homens que eu tive a chegada à maternidade se dá depois desse traçado, não linear ou evolutivo de Pity, mas a partir de seu desejo de interação com a infância, quando em certo momento o casamento de sua irmã se mostra falido e ela passa um tempo junto aos sobrinhos, brincando e rindo com eles. Além disso, é na bela cena final quando confessa estar grávida e se nega a nomear um pai, que se desbanca mais uma vez o modelo patriarcal de família. Nesse momento, a câmera de longe acompanha o encontro da protagonista com Dôde (de quem ela não se separou, pois tal burocracia não parece relevante) e Torres, e pela conversa fica explícito que aquele filho será cuidado por muitos.
Numa visão atualizada de Os homens que eu tive pelo feminismo, ressentimos a escolha pelo universo branco e de elite. O racismo e o classismo não são problemas expostos à época por Tereza Trautman. Porém, o caminho talvez seja pensar que se o recorte é limitado, as questões sexuais, maternais e familiares que o filme traz ainda estão em disputa, e o quanto elas se complexificam nesses outros cortes interseccionais, para seguirmos nomeando os problemas e olhando os corpos das mulheres não como falta mas como presença.
Referências Bibliográficas
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. Vol. 1, Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971 [1963].
LORDE, Audre. Usos do Erótico: o erótico como poder. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Editora Autêntica, 2019.
BRASIL, Samantha. Tereza Trautman e Os homens que eu tive. In: LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila. Mulheres atrás das Câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
MULVEY, Laura. “Prazer Visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail (Org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983.
SAFFIOTI, Heleieth e Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
VEIGA, Ana Maria. Estéticas e políticas de resistência no “cinema de mulheres” brasileiro (anos 1970 e 1980) In: HOLANDA, K. (org.). Mulheres de Cinema. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2019.
Foto: Marcela Bonfim
11 de abril de 2021 foi o último dia da primeira edição do Guaporé Festival Internacional de cinema ambiental, festival criado este ano em Porto Velho, capital de Rondônia, via lei Aldir Blanc, uma iniciativa de Raissa Dourado. De São Francisco (EUA), onde vivo agora, acompanhei esse festival online com um entusiasmo especial. Escutei as vozes das pessoas realizadoras5, comentei no chat e assisti aos filmes locais desejando que eles fossem diferentes. A rapidez dos cortes, a temporalidade das imagens, o excesso de música sobre os sons, o desencaixe entre o ritmo dos filmes e as vidas que eles fazem vibrar em quadro me atravessaram com estranhamento. Busquei nesses filmes o tempo. Desejei um respiro antes de passar para a próxima imagem. Pedi silêncio. Estava constantemente esperando o momento fílmico em que seria possível ser tocada pelos sons ambientes que deveriam, ao meu gosto, emergir daquelas imagens.
Mas os filmes me surpreendem e me mobilizam. Sinto que esses filmes, realizados majoritariamente por mulheres, anunciam um vento bom vindo das terras do norte. O festival, um evento virtual sem nenhuma relevância no âmbito nacional, surge, talvez, como um momento histórico da invenção do cinema rondoniense porvir. E tudo isso ativa, em mim, um desejo de retorno.
Deixei Porto Velho para estudar cinema há 17 anos. Graduação, mestrado, mestrado, doutorado. A passagem decisiva de uma língua para outra língua se deu estudando o violento filme Iracema, uma transa Amazônica (1976), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, durante um mestrado em Paris. Foi lá que desenvolvi minha formação cinéfila e fortaleci meu amor profundo pelo cinema brasileiro. Como se estar longe me aproximasse do nosso cinema. Algo próximo do que sinto agora, diante desse cinema rondoniense ainda tão precário, mas importante de ser notado.
Passei os dias seguintes imaginando conversas a respeito dos filmes, com as cineastas de Rondônia. Eu disse mentalmente para a Roseline Mezacasa, historiadora indígena que fez um filme com o povo Makurap, que a cena da pesca do filme Kiteyã Toalet Makurap – Nosso conhecimento Makurap (2018) está entre as mais maravilhosas da história do cinema dedicadas a essa ação. Os planos em que acompanhamos cada gesto do encontro do indígena com sua pesca são tão deslumbrantes que quase consigo esquecer, por um segundo, o quão destoantes soam as músicas que foram inseridas em boa parte do filme. Na conversa imaginária com Michele Saraiva, correalizadora do curta experimental Banho de Cavalo (2016), de Michele Saraiva e Francis Madson, falei que gosto da maneira como o filme dela se desprende da razão para expressar o sentimento estarrecedor que sempre nos atravessa ao percorrer as margens do deserto crescente que é a BR-364. Como a Michele Saraiva se ocupou da montagem dos documentários da Simone Norberto (Nazaré Encantada, 2018) e da Raissa Dourado (Vozes da Memória, 2019), nossa conversa imaginária se desdobrava da intensidade dos cortes do curta dela para a elaboração dos dois documentários, um tanto convencionais, que ela ajudou a dar forma. Em meio às conversas imaginárias aconteceu uma conversa de verdade, virtual, com Marcela Bonfim. Da sala da espaçosa casa de madeira, de onde Marcela tem uma vista privilegiada do pôr-do-sol do Rio Madeira, ela me descreveu euforicamente os quatro projetos de filme em realização. Todos já tem título. Dois deles já receberam um “boneco” (uma primeira estrutura na timeline), enquanto que, para os outros dois, “estar em realização” significa que parte de suas imagens já foram extraídas do mundo.
Inspirada por essas conversas, imaginárias e reais, fabulei um espaço de troca possível através da escrita. As conversas com as realizadoras acabaram acontecendo, por meio do que a tecnologia nos permite hoje, e pontuaram os caminhos tomados neste texto. E por que escrever a respeito de cinco filmes rondonienses feitos por mulheres e somente deles? O sentido de conjugar iniciativas fílmicas tão variadas se deve ao fato de todas elas se empenharem, a seus modos, na criação de imagens e sons habitados pela escuta, pela memória, pelo encontro, pelo desejo e, por que não, pelo encantamento da beira do Rio Madeira e das vidas nas florestas. Também me interessa o fato de que os filmes são realizados por mulheres que atuam, em diversas frentes, pela consolidação de uma cena cinematográfica local. Os filmes delas dizem alguma coisa das minhas investigações, eles são pontos de partida que me ajudam a me reencontrar. E este ensaio dedicado ao cinema rondoniense feito por mulheres, surge, para mim, como uma maneira de me aproximar de casa.
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querer ver o que já não está
(notas sobre Banho de Cavalo, de Michele Saraiva e Francis Madson,
filmado em 2014, montado e lançado em 2016,
produção independente)
Às margens do pasto e da soja, há vida. Um cavalo no chão com as patas para o ar irrompe na tela logo após uma sucessão de planos mostrando aquilo que mais se vê nas estradas do Norte. Gado, máquinas, fumaça, carreta com gigantescas toras de árvore. Em outro instante rítmico, vemos uma pessoa caminhando em círculos dentro de um curral. Ela desaparece e aparece na imagem, repetidamente, aludindo a um recomeço sem fim. A repetição e o recomeço são fenômenos importantes nesse curta experimental que foge das regras da retórica clássica para tracejar alguns prenúncios do fim do mundo. O filme emerge da experiência de uma viagem de um mês pelo interior do Estado de Rondônia. Michele Saraiva e Francis Madson, diretor teatral, percorreram os 52 municípios do Estado no âmbito de uma itinerância do SESC-RO, onde Michele S. trabalhou durante alguns anos como técnica de cultura. Na época, ela já desejava viver com o cinema e a fotografia, e costumava sair com uma câmera junto ao corpo. As imagens que compõem o filme fazem parte de um arquivo privado de cerca de cinco horas de material bruto captado nos intervalos e pausas dessa pequena expedição. O curta-metragem traz também pequenos sketches, performances encenadas em lugares que instigaram a atenção ao longo do percurso. O filme se inventou aos poucos, improvisadamente, diante das paisagens, acontecimentos, conversas que marcaram essa experiência avassaladora que é ver de perto, profundamente, “as terras ardentes e sem árvores, percorridas por máquinas em todo lugar”6, como define tão bem Davi Kopenawa.
“O que a gente queria era trazer um pouco das sensações que a gente tinha e sentia olhando, de passagem, as cidades do interior e aqueles lugares (…) Um pouco da vastidão, da solidão, de um isolamento, de um incômodo, da devastação, da castanheira solitária que permanece no meio de um pasto. É toda essa imagem da destruição porque tudo virou pasto ou plantação de soja.”
Michele Saraiva
A história de Rondônia é essa: a modernidade chegou nas florestas pelo processo de colonização destruindo tudo, abrindo estrada, fazendo desaparecer o que está no caminho, tirando a vida por onde passou – e trazendo novas vidas também. Nas primeiras fotografias do território de Rondônia tomadas pelo estadunidense Dana Merrill, é possível ver o que já não está – cachoeiras, povos, bichos, florestas, trabalhadores do mundo. E o início do processo de destruição. Destruição que se dá hoje, como sugere o curta de Michele Saraiva e Francis Madson, de forma diferente, embora a lógica do desaparecimento continue a reinar. De umas décadas pra cá, até as pessoas que lutam pela natureza ou por condições de vida melhores desapareceram. Foi isso que me ocorreu ao me confrontar com o movimento de aparições e desaparições na cena do curral. Para Michele, que guarda um carinho especial pela cena – afirmando ser a passagem que mais gosta de seu filme –, o jogo aparição/desaparição é uma tentativa de expressar a sensação de imobilidade transmitida pelas pessoas com quem conversaram nos municípios onde vivem muitos trabalhadores rurais — a mão de obra barata dos latifundiários da região. Muitas pessoas demonstraram o desejo de sair de lá, “correr mundo” (como dizia Iracema no filme de Bodanzky e Senna), mas não viam perspectiva nenhuma para isso, comentou Michele. Estão enclausurados naquela vida de dias iguais, pobreza e pequenos prazeres. Ao descrever esses encontros, Michele acrescenta: “O filme é um fragmento de histórias ouvidas na viagem e de sensações que foram brotando ao longo do percurso”.
Era o fim da tarde e o sol sanfranciscano se punha quando Michele S. me contou que o título do seu curta-metragem experimental, Banho de Cavalo, provém de uma lenda que ela desconhecia até então. Falamos, num cara a cara virtual, sobre a importância do cinema em nossas vidas, apesar de termos crescido em lugares onde o cinema raramente chega. Michele nasceu e cresceu em Guajará-Mirim, cidade que faz fronteira com a Bolívia. Minha mãe também é originária de lá e isso favorece uma partilha de memórias e afetos entre a gente, embora nem nos conheçamos tanto. Nessa conversa, compartilhamos nosso estranhamento em relação a percepção do tempo ao deixar a temporalidade de Rondônia. Somos atravessadas por outro tempo, um tempo que escorre de outra maneira. Falamos do desencaixe intermitente que é confrontar a temporalidade das grandes metrópoles (ela vive agora São Paulo, eu vivi anos em Paris e agora em São Francisco), e como isso mexe conosco, altera nosso modo de sentir, de agir, de pensar, de habitar o mundo.
As alterações são inenarráveis, porém continuo sendo caracterizada como uma pessoa devagar. Talvez por isso queria encontrar outra temporalidade em Banho de Cavalo, desejei que os planos durassem mais e sinto muita falta dos sons ambientes ou pelo menos de alguns momentos de respiro e silêncio, sem música. Comentei isso em nossa conversa e Michele contou que de fato, no primeiro corte, ela buscou dar ao filme algo do “tempo amazônico” que sentimos. Só que suas imagens não a permitiam isso. Talvez pelo fato de terem sido tomadas num processo de deslocamento, avançando por aquelas paisagens, dentro de um automóvel, suas imagens carregam a mobilidade da experiência vivida e a sensação de aceleração. “São imagens de passagem, estávamos de passagem”, disse Michele. O intervalo de quase dois anos entre a tomada e a retomada das imagens no processo de montagem fez com que ela enxergasse no material outro filme, mais dinâmico e visceral. Michele montou Banho de Cavalo em São Paulo, remexida pelos sons e agitações da Rua Augusta, onde vive desde 2015.
Os planos que mostram o cavalo, filmados em dois tempos, na ida e na volta, deram origem ao título do filme. No trajeto de ida, eles avistaram um cavalo esparramado no chão, na beira da estrada. A cena inventada mostra o cavalo em primeiro plano e ao fundo um homem com terno branco, cuja presença faria referência à figura dos latifundiários, donos das imensas áreas de terra esquartejadas da região. No trajeto de volta, 1 mês depois, o cavalo estava no mesmo lugar, já em estado de decomposição. Diante dessa cena macabra, Michele optou por planos fechados, que apenas sugerem se tratar do mesmo animal e que permitem que o espectador construa algo sozinho a respeito dessas imagens.
No carro, ainda atônitos com os vestígios da morte animal, o motorista que os acompanhou na viagem, conhecido por todos como “Parente”, contou uma história sobre os cavalos:
“Vocês sabem como cavalo toma banho? Ele deita num lugar arenoso, se esfrega, se esfrega, se esfrega. Esse é o banho do cavalo. E se uma pessoa for no mesmo lugar e se esfregar na terra da mesma maneira que o cavalo, essa pessoa passa a ver como o cavalo, enxergar o mundo do animal. Para sair da visão do animal, a pessoa precisa tomar uma peia [quer dizer, ser acordada através da força].”
Ouvindo Michele, me veio à mente, imediatamente, uma página de A inconstância da alma selvagem, de Eduardo Viveiros de Castro, que havia rabiscado dias atrás, quando lia o capítulo Perspectivismo e multinaturalismo na América Latina. Essa lenda, que Michele desconhecia, nos coloca no terreno do pensamento indígena, evoca a noção de animismo e “perspectivismo ameríndio”. Terreno que encontrará mais fertilidade no filme de Simone Norberto, Nazaré Encantada (2018), e se materializa nas imagens de Kiteyã Toalet Makurap – Nosso conhecimento Makurap (2018).
Gostaria de comentar o plano final de Banho de Cavalo, que sintetiza muito bem a perspectiva crítica ao desenvolvimentismo do agronegócio que o filme tenta expressar. Em plano-sequência, num dos únicos momentos em que sinto o tempo escorrer na imagem, um homem nu de aparência indígena corre em uma estrada de chão, da frente para trás (em tempo invertido). Está chovendo, ele olha atônito para os lados, expressa angústia e medo, como se avistasse o céu caindo. O movimento retrógrado do homem na estrada se dá inicialmente numa cadência constante e desacelera rapidamente, o homem dá alguns passos para trás e para. A câmera se aproxima de seu corpo. Ele olha para trás, por alguns segundos, e retorna o olhar pra frente. Ficamos um tempo observando seu olhar que parece perdido no tempo, até que sua imagem desaparece aos poucos em fade-out.
De costas para o futuro, o homem nu vê no passado, à sua frente, um amontoado de ruínas. Reencontro nesse plano-sequência invertido, nos gestos desse homem nu, o “Anjo da História” descrito por Walter Benjamin em seu célebre ensaio Sobre o Conceito de História. Em 1921, o filósofo alemão escreveu:
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”
O último plano de Banho de Cavalo desponta impressionante, revelador da tempestade. Introduz-nos a percepção mais lúcida do progresso colado ao desenvolvimentismo do agronegócio, onde paira uma ameaça sobre cada ser, sobre cada território. Dentro desse plano benjaminiano, há outra declaração política, “kopenawana”, que se desdobra das imagens, também em tom profilático: “Quando a Amazônia sucumbir à devastação desenfreada e o último xamã morrer, o céu cairá sobre todos e será o fim do mundo”.7.
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“ele vê você mas você não vê ele, vê o bicho que tá encantado nele”
(notas sobre Nazaré Encantada de Simone Norberto
filmado em 2011, montado em 2018,
produção independente)
Nazaré Encantada (2018) é um longa-metragem que nos toca pelo ouvido, ao ouvir as histórias e causos contados pelos habitantes de Nazaré, comunidade ribeirinha situada na região do “Baixo Madeira” (cerca de 6 horas de barco de Porto Velho). Uma lição de pensamento ribeirinho que nos ensina as lendas e mitos da Amazônia pela perspectiva daqueles/as que acreditam neles. Ao longo dos relatos, entendemos que “Norato cobra grande”, “Boto rosa”, “Curupira”, “Matinta Pereira” e “Visages”, todas essas lendas, são atravessadas por um estado ou fenômeno misterioso por eles/as descrito como encantamento. No encanto do “Boto rosa”, por exemplo, as moças são encantadas pelo boto quando o encontram na beira do rio. A moça vê um boto, apesar deste ser um homem. “Ele [o homem] vê você mas você não vê ele, vê o bicho que tá encantado nele”, explica um dos entrevistados. Esta é, para Simone Norberto, a realizadora do filme, a melhor definição do encantar.
“Encantar a Palavra”8, poderíamos resumir assim o processo que leva Simone a realização de um filme. Nazaré Encantada deriva de uma reportagem da Rede Amazônica (afiliada da Rede Globo em Rondônia), para a qual Simone, na época repórter, esteve em Nazaré a fim de fazer uma matéria sobre um grupo musical composto por jovens e crianças da comunidade, chamado “Minhas Raízes”. O processo de feitura do documentário se inicia tempos depois, distante do modo de produção televisivo, junto à pesquisa de mestrado realizada por Simone entre 2010 e 2012, na qual a jornalista propõe uma análise sociocultural dos mitos e lendas da comunidade ribeirinha à luz das teorias pós-coloniais (Franz Fanon, Albert Memmi, Edward Said).9
Tendo em mente a maneira como os entrevistados aparecem em quadro, pouco surpreende saber que, mais uma vez na história do cinema brasileiro, a ideia de fazer um filme sobre elementos culturais de uma comunidade tradicional surgiu de uma reportagem jornalística (foi o caso de Aruanda, por exemplo). A esta linhagem, pode-se acrescentar também que Nazaré Encantada não só se inscreve na tradição do cinema de entrevista como se aproxima, em certa medida, da empreitada da “Caravana Farkas”. No âmbito da “Caravana”, lembremos, o grupo de cineastas-intelectuais saindo de São Paulo para filmar as tradições das comunidades do “Brasil profundo” foram severamente taxados por impor, em seus filmes, uma visão externa, expositiva e sociológica das tradições populares nordestinas. No caso de Nazaré Encantada, trata-se de uma iniciativa fílmica de uma cineasta-intelectual da cidade interessada em escutar e historicizar a tradição oral dos ribeirinhos de seu território. Se velhas associações merecem realce, merecem também ponderações. E se algo forte da forma jornalística permanece em Nazaré Encantada, a energia narrativa do cinema documentário se afirma e se institui. Talvez porque antes de se colocar à escuta dos moradores de Nazaré, a jornalista-documentarista-cineclubista já havia realizado doze filmes de não-ficção, curtas e médias documentários e experimentais que ela denomina “vídeo-poemas”.10 Quando Simone Norberto praticou, pela primeira vez, um cinema de entrevista, ela carregava aprendizados de experiências cinematográficas das mais variadas.11
Para fazer o filme, Simone passou um mês vivendo na comunidade, convivendo e conversando com seus moradores, experiência que lhe permitiu “criar uma relação de confiança, indispensável”, como ela destacou algumas vezes ao longo das duas conversas que tivemos para a elaboração desse texto. A grande referência de Simone é o cinema de Eduardo Coutinho. Ela se interessa pela maneira na qual o cineasta “mesmo interferindo, sempre se coloca com muita humildade para ouvir o outro”. Simone preza pelo “respeito pelo outro” na “hora de documentar”. Essa postura cuidadosa diante de sujeites entrevistades já caracterizava seu trabalho enquanto repórter jornalística (Simone atuou como repórter, apresentadora, editora e pauteira da Rede Amazônica por quatorze anos) e se reativa a cada processo de Nazaré Encantada, da elaboração ao momento de exibição. Trata-se de, convivendo e conversando com os moradores de Nazaré, adotar um método de filmagem em que se tenta “escutar ao máximo, não levar uma ideia pré-estabelecida do que ‘tirar’ da conversa, esforçar-se para deixar a história tomar um rumo, por si só”. Essa abertura resulta em um filme interseccional, que atravessa as lendas locais para desembocar em questões sociopolíticas, e vice-versa.
A montagem de Nazaré Encantada é intensamente dinâmica, pautada por planos relativamente curtos. Solução formal que também o distancia do cinema da oralidade, este que favorece a observação das expressões e gestos de sujeites filmades, e o aproxima da reportagem televisiva. A impressão que ficou, em mim, ao sair do filme, é que o procedimento de montagem, agenciado numa lógica de fragmentação dos depoimentos para serem organizados em função de uma temática, dissolveu a possibilidade de sentirmos as potências do encontro entre quem filma e os sujeites filmades e algo de mágico da expressão oral – como ocorre no cinema de Coutinho. Em relação ao campo sonoro, Simone optou por não incluir sua voz ou narração, no intuito de deixar que os/as/es sujeites filmades contem sua própria história. “Eu queria que eles falassem”, escolha que Simone define como uma “postura pós-colonial”.
Para Simone, há uma responsabilidade envolvida no processo de fazer e oferecer imagens de outras individualidades. A esse respeito, ela me contou que remontou um trecho do filme após a “pré-estreia” em Nazaré, por ter percebido um desconforto da plateia que enchia a arena da comunidade diante de uma passagem do filme. Um desconforto causado, digamos, pelo encontro de epistemologias. No trecho excluído, o entrevistado comenta que comadre “tal” virou porco e o compadre “tal” virou cavalo. O que significa, naquele território, que comadre e compadre, comprometidos em seus respectivos casamentos, haviam tido relações sexuais. Para Simone, contudo, tratava-se apenas de mais uma das diversas metamorfoses de humano e não-humano que atravessam os mitos e lendas do território ao qual o filme se dedica.
Em nossa conversa, Simone me explicou que as lendas amazônicas são vestígios do “encontro colonial”, frutos conjecturais desse momento decisivo em que os mitos fundadores e a cosmologia indígena se deparam com a crença branca. “Então, há dois níveis: o mito é mais profundo, enquanto que a lenda, oriunda do encontro do indígena com o branco, adquire uma linearidade e reflete a questão da apropriação cultural. (…) A lenda da curupira é exemplar nesse sentido: a curupira é uma protetora da Amazônia. Mas por que ela precisa proteger a floresta?” Nessa pergunta, Nazaré encantada encontra Banho de cavalo. Uma constelação envolvendo esses filmes absolutamente distintos se compõe, meio que naturalmente.
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ver e aprender com outros territórios de conhecimento
(notas sobre Kiteyã Toalet Makurap – Nosso conhecimento Makurap,
de Roseline Mezacasa com o povo Makurap
filmado em 2017, lançado em 2018
realizado por meio da primeira e única edição do Prêmio Lídio Sohn)
Em meados de 2013, Roseline Mezacasa, professora e pesquisadora que atua no campo da História Indígena, começou a frequentar a aldeia do povo Makurap, situada no interior da Terra Indígena Rio Branco, a 575 km de Porto Velho. Roseline chegou na aldeia pela primeira vez a convite da anciã Juraci Menkaika Makurap. Foi também um convite de Juraci, ou melhor, um pedido, que a motivou a encontrar meios para realizar um documentário com o povo Makurap. Roseline me contou, com a voz emocionada, os detalhes desse encontro, de tudo que ela viveu e aprendeu com os Makurap ao longo dos anos de pesquisa para sua tese de doutorado que também foi dedicada a esse povo – nomeada Por histórias indígenas: o povo Makurap e o ocupar seringalista na Amazônia.12 O filme é, portanto, para a realizadora, mais uma maneira de contar a história e a vida desse povo indígena. Roseline percebe o cinema como “uma estratégia para pensar e comunicar histórias”, mas uma estratégia absolutamente potente, pois “usar um filme em sala de aula impacta muitos mais os alunos, sensivelmente, do que ficar lá a tarde inteira falando sobre esse povo”. Trata-se de tocar, sensibilizar, afetar, estimular o pensamento com o coração, através do cinema.
Em nossa conversa a respeito de Kiteyã Toalet Makurap – Nosso conhecimento Makurap, Roseline destacou que a possibilidade de um documentário surgiu das experiências vividas com os Makurap. “Eles queriam que as outras gerações tivessem acesso àquelas histórias”. Os processos descritos no filme foram decididos coletivamente. “Porque tem temas que eles não queriam. Tem coisas que querem mostrar e outras que não querem”. Os povos indígenas da região convivem, desde a chegada dos brancos, com a ameaça da injustiça territorial e a cobiça fundiária. Certamente essa luta constante pela proteção de seu território poderia estar no filme, mas eles preferiram fazer um filme permeado de “coisas que eles fazem e que são extremamente importantes para vida, para o cotidiano, para sociabilidade, para a questão territorial”. O filme é atravessado pelo comprometimento em registrar aspectos do modo de vida tradicional nos Makurap para que as próximas gerações possam acessar mas, também, para que esses saberes circulem fora do território, permitindo que outros indígenas e não-indígenas possam conhecer um pouco da vida Makurap.
Kiteyã Toalet Makurap – Nosso conhecimento Makurap segue o propósito do acolhimento de outros saberes, saberes que são governados por outros princípios, e nos seus 30 minutos de duração se torna uma oportunidade rara para testemunhar aspectos do modo de existência do povo Makurap. Logo nos letreiros de abertura, o filme nos ensina que
“Os Makurap são indígenas do tronco linguístico Tupi e fazem parte do complexo interétnico da margem direita do Guaporé, nas cabeceiras do Rio Branco no Estado de Rondônia. No início do século XX tiveram seu território invadido por seringais com imposição do regime de aviamento e a incidência de epidemias avassaladoras. Vivem, em grande maioria, na área demarcada das Terras Indígenas Rio Branco e Rio Guaporé, numa população de aproximadamente 600 Makurap”.
Letreiros de abertura de Kiteyã Toalet Makurap – Nosso conhecimento Makurap
Dividido em 6 blocos, o filme se compõe de um rigoroso trabalho de documentação que acompanha em detalhes o processo de produção do marico13, da pesca com arco e flecha, da pintura de jenipapo, da preparação do gonguinho (bichinho de terra comestível) e da chicha (bebida à base de mandioca). É interessante notar que os processos documentados, com exceção da pesca, são protagonizados por mulheres. À esse respeito, Roseline pontua que o fato dela ser uma mulher pesquisadora fez com que ela fosse “abraçada pelas mulheres”:
Por muitos anos, os antropólogos eram homens e conversavam com homens. Então há muitos estudos de um povo X, que acabou se tornando a história do povo X. Enquanto que conversando com as mulheres, a gente vai acessando universos femininos das mulheres, que muitas vezes um pesquisador homem não vai acessar. A relação que eu criei lá dentro, por conta de ser acolhida pela anciã Juraci, é muito ligada à experiência das mulheres. A produção do marico, por exemplo, é muito um processo das mulheres.
Roseline Mezacasa
Gostaria de fechar esse fragmento do texto destacando dois pontos que permitem evocar algo da minha experiência com o filme. Em primeiro lugar a bonita sequência de abertura em que conhecemos a história do começo do mundo na perspectiva Makurap, contada pela anciã Juraci, transcrita e traduzida para o português nas legendas do filme. Essa oportunidade de ouvir um discurso em língua originária e ler a sua tradução, que outros filmes de cineastas indígenas ou não-indígenas vêm nos oferecendo, merece destaque uma vez que, como sugere o filme logo na sequência seguinte, a preservação da língua Makurap é um dos movimentos importantes no processo de transmissão de saberes entre gerações. O filme se abre com a grandiosidade das palavras da anciã e se fecha com elas, momento em que descobrimos sua imagem.
Vez ou outra, mais uma vez, deu vontade de estar diante de imagens que duram e de sentir o tempo se construir na sequência desses processos calmamente vividos. É somente na sequência da pesca que encontramos a ressonância do momento filmado. A câmera está em fase com os gestos discretos e ciosos do homem. Com precisa e intensa atenção de cada minievento, o cinema se guia mais pelo tato do que pelo olhar. Com essas imagens, deu vontade de poder desprender o olhar para reencontrar o som, ouvir o canto do rio, o canto dos passarinhos, o canto dos peixes – inaudíveis pela presença quase onipresente de música.
São essas questões que me fizeram desejar que esse filme fosse um pouco diferente. A dificuldade de recebê-lo tal como ele é colocou uma dúvida, e com ela uma esperança: se desejo outro filme, seria só porque esse olhar que se debruça sobre os saberes Makurap é muito domesticado pela retórica documentária clássica? Ou seria o cinema indígena, de cineastas indígenas, que já deslocou suficientemente a maneira como sinto as imagens?
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a memória coletiva que se vê e as memórias que não cabem num filme
(notas sobre Vozes da memória de Raissa Dourado
filmado em 2018, lançado em 2019
realizado por meio da primeira e única edição do Prêmio Lídio Sohn)
Vozes da memória (2019) é um filme importante na cinematografia rondoniense em plena elaboração.14. O filme toca o coração daqueles que (re)conhecem as histórias e os lugares rememorados pelos sujeites entrevistades, arranca sorrisos e lágrimas de todes que constituíram um vínculo com Porto Velho, informa aqueles espectadores que nada sabem da vida e da geografia das periferias do Brasil. Seu forte é esse e já é um feito e tanto, considerando a escassez de produções audiovisuais na região.
Com esse documentário, Raissa Dourado se propõe a assumir a impossível tarefa de definir num só filme o que seria a identidade cultural de uma cidade, Porto Velho, recorrendo a procedimentos estéticos que aproximam o cinema da reportagem televisiva (o uso da entrevista a serviço da corroboração de uma tese pré-concebida, a ilustração do passado por meio de imagens de arquivo, pessoas servindo de matéria-prima à construção de tipos – o músico e o poeta local, a artista de rua, o cineasta das antigas, a presença indígena). Nesse sentido, como muitos documentários convencionais dedicados a condensar aspectos culturais, o filme convoca o universo crítico de ressalvas feitas aos filmes da dita “Caravana Farkas” e àquilo que Jean-Claude Bernardet nomeou, há quase vinte anos, o “feijão com arroz do documentário cinematográfico e televisivo” (em texto chamado “A entrevista”).15.
Interessa pouco me deter nesses problemas aqui, porém parece-me útil destacar um deles, relacionado a tentativa declarada de totalização das coisas. A metodologia discursiva totalizante, esta que conduz a associação de um depoimento ao outro e estrutura o filme sob o signo da adição, visa, na maioria das vezes, constituir um todo harmônico e homogêneo (embora reúna muitas vozes). É precisamente assim que Vozes da Memória se oferece e, como se a história fosse um rio tranquilo, o filme sugere a elaboração de uma memória única e unívoca.
Só que, é sempre bom lembrar, a história de um território, assim como a memória de seus habitantes, é complexa, múltipla, fragmentária. Há sempre uma história deslembrada. Há sempre uma memória que falta. Uma delas se anuncia no filme, aliás, em depoimento da militante indígena Márcia Mura. Em fragmentos de sua fala recortados pela montagem, Mura pontua a necessidade de falarmos mais da percepção dos indígenas em relação a construção da estrada de ferro que provocou a criação da cidade de Porto Velho (E.F.M.M) – construção e criação que significaram, a um só tempo, a destruição do modo de vida indígena naquele mesmo território. “Não tem como a gente falar das comunidades que estão às margens do Rio Madeira, sem construir essa memória indígena”, diz Márcia Mura. Ao invés de puxar o gancho e desenvolver com a voz de Márcia, minimamente, essa questão crucial para a história da colonização brasileira, o filme salta rapidamente de suas palavras para adicionar mais uma discussão em torno da memória da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Ouvimos então um antigo trabalhador da E.F.M.M demandar a necessidade de revitalização dos trilhos para que o trem volte a circular novamente como atividade turística. Em seguida, retornamos a Márcia Mura, cujo relato evidencia, agora, a existência de uma disputa de memória entre os que vieram trabalhar na ferrovia.
“Fala-se muito dos Barbadianos, não que eu ache que não deva falar. Tem que falar sim! Mas não só deles, né? Cadê as outras histórias, as outras memórias do Bairro Triângulo? Como [as histórias] das comunidades dos seringais, como das mulheres que lavavam roupa dos coronéis, dos médicos, militares, né? Porque não tinha outra possibilidade de emprego pra elas. Quem são essas mulheres vindas dos seringais, as mulheres indígenas. Então tem essa memória afetiva, também. Mas depois que eu fui construindo esse processo de consciência crítica eu percebi que a ferrovia foi também essa destruição, e essa representação da morte para os indígenas e para os trabalhadores.”
Márcia Mura
Esse trecho é exemplar de como o excesso de montagem pela perspectiva da totalização pode enfraquecer as vozes dos(as/es) sujeitos(as/es) entrevistados(as/es). Num primeiro momento, logo após o corte, a impressão inicial é que o filme desviou, engoliu a seco, aquela discussão. Não é o caso, já que reencontramos a entrevistada alguns planos depois. Porém a dissolução de seu depoimento em fragmentos, aqui e acolá, acaba por esmagar a singularidade e força da argumentação de Márcia Mura. Muitas vezes, como já nos demonstraram tantos filmes e cineastas, deixar a voz ecoar longamente, do início ao fim do depoimento, significa acentuar por meio das formas aquilo que é dito pela pessoa filmada.
Na conversa com Raissa, falamos bastante a respeito dessas questões ligadas ao modo de enunciação, tanto em relação à pretendida objetividade quanto à maneira na qual o filme organiza o seu discurso. Ela pontuou que num primeiro momento, durante a filmagem, estava seduzida pela ideia de um filme que daria conta de abarcar diferentes percepções da cidade – do centro, da periferia, dos povos originários, dos imigrantes –, em suas respectivas temporalidades – jovens e velhos. Só que no processo ela percebeu que não dava pra fazer esse filme idealizado e, na urgência da montagem, ficou assim, um “filme mal resolvido”, mas que contempla muitas coisas que ela desejava mostrar. Comentei que essa inquietação em torno da identidade cultural de Porto Velho já foi minha. Há 11 anos, percorri a cidade com uma pequena câmera DV, acompanhada de duas amigas incríveis – Nina Kopko e Carla Italiano –, para fazer um trabalho de fim de curso de Cinema, intitulado Rumo ao norte. Esse documentário teve como tema a trajetória de imigrantes do Nordeste e do Sul que se instalaram em Porto Velho e contribuíram para constituir a “identidade cultural” da cidade – muitas vezes a despeito dos povos originários que lá estavam. Lembro que um dos inúmeros problemas desse filme de estudante era justamente o lugar que a entrevista havia tomado. Na época, minha maior inspiração era o cinema de entrevistas “à la Johan Van der Keuken”. Porém o resultado fílmico ficou muito distante dos trabalhos do cineasta holandês, e não demorei a perceber que a causa disso foi a ausência da dimensão subjetiva que caracteriza o cinema de Keuken e todas as imagens por ele filmadas.
Tenho impressão que o excesso de objetividade documentária que acabei por impor àquele exercício documentário, e que causou problema, é o mesmo que emerge de Vozes da Memória. Como numa reportagem televisiva, o filme não nos permite saber quem fala por trás daquele discurso elaborado pela montagem, tampouco quem fala quando alguém toma a palavra dentro dos planos; quer dizer, as pessoas entrevistadas não são identificadas. Obviamente, a falta de identificação afeta o sentido e as sensações que nós, espectadores, temos ao receber os relatos dos entrevistados. Num dos momentos mais interessantes do filme, dedicado às atividades de cinema no Estado, essa vontade de saber quem fala é acentuada. Após uma passagem divertida retomando fragmentos de um outro documentário que também abraçou as expressões culturais da capital rondoniense como tema, o média-metragem de Beto Bertagna chamado Porto das esperanças (1991), surge na tela um homem falando a respeito de um Cinema com projeções em Super 8 que ele montou num acampamento de garimpeiros no Rio Madeira.
Rapaz, vamos montar um cinema no garimpo. Aí eu contei a história que eu tinha visto um Super 8 tá tá tá tá tá tá tá…aí nós arrumamos dinheiro emprestado e fomos comprar uma máquina, um projetor de filmes em Manaus. (…) Teve um filme que fez um sucesso! À meia noite encarnarei no teu cadáver. Era um filme do Zé do Caixão. (…)
Personagem de Vozes da Memória
Foi conversando com a cineasta que descobri que o projecionista garimpeiro é o pai da realizadora, cujas experiências de cinema influenciaram fortemente o caminho que ela acabou por trilhar. Mas, no filme, nada nos indica essa relação entre quem filma e quem é filmado.
São relatos como esse do projecionista garimpeiro, absolutamente inusitados, que nos fazem lembrar como podem ser preciosas as iniciativas fílmicas que se dedicam a testemunhar a história cultural de um lugar. Fico pensando que uma cena cinematográfica rondoniense já existe, há tempos, só que eu não sabia.
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o que nós vemos, o que nos olha
(notas finais, sobre um filme porvir de Marcela Bonfim)
Nas conversas mais recentes que tive com Marcela Bonfim – cujo filme Jonathan e Gabriel está em processo de montagem – , sempre me surpreendo com seu fulgor ao reafirmar, eloquentemente, que a vida está acima da arte [leia-se: a vida importa mais do que a arte, o processo mais do que o objeto artístico, os problemas sociopolíticos mais do que a “bolha” do cinema e da arte]. Marcela tem muita clareza que a fotografia, assim como o cinema, sempre foram companheiros de processos de destruição e colonização, e é necessário subverter essa lógica. Subversão que ela pratica em atividades das mais diversas: das brincadeiras de cinema com as crianças da vizinhança à elaboração de projetos fotográficos ambiciosos. Marcela é ativista cultural, como ela gosta de se descrever, e ficou conhecida pelo Brasil com seu projeto fotográfico Reconhecendo a Amazônia Negra. Em Rondônia, ela se faz conhecer agora por sua nova aposta na música, através da Gig Soul Preta, banda formada com colegas músicos portovelhenses. Ouvindo-a cantar suas próprias composições, que reverberam traços da sua subjetividade, concluí que Marcela é sobretudo uma poeta civil. A poesia está presente em todas as formas de expressão nas quais ela se aventura. Com o cinema, trata-se de uma aventura em elaboração. À pergunta “que tipo de cinema você gostaria de fazer?”, Marcela me respondeu:
Quero fazer um cinema possível. E a forma mais possível é de filmar como as coisas acontecem. Não sou eu que estou fazendo as coisas acontecerem. As coisas que eu filmo já estão acontecendo. Eu fico lá, observando esses movimentos incríveis que acontecem na minha frente. (…) Então as coisas que eu filmo acontecem independente de mim, independente de eu estar lá. É a vida. (…) Às vezes eu crio umas situações, mas eu não tenho controle sobre elas.
Marcela Bonfim
Ao ver o corte inicial do filme porvir (provisoriamente intitulado Jonathan e Gabriel), encontrei um cinema como captação de forças. Com esse filme em que a vida das crianças filmadas pulsa em toda a sua potência, algo novo vai despontar na pequena constelação do cinema rondoniense realizado por mulheres. Um filme rondoniense do acaso, da vibração, do voluntariamente improvisado está ganhando forma neste instante.
Algo da prática cinematográfica da Marcela, dialoga com uma observação da cineasta Dácia Ibiapina, compartilhada durante o curso “Essa terra é a nossa terra”, organizado pelo Forum.doc (maio 2021). Dácia comentou que “é muito importante construir um modo de produção, inventar o seu modo. Não é o orçamento que faz o filme, mas você se sentir à vontade com certo modo de produção”. Numa localidade como Rondônia, em que os investimentos em cultura e arte são raríssimos, essa observação de Dácia se expande a um horizonte possível.
Conversando com Marcela, lembrei que o cinema pode ser só um pretexto para estar junto, entrar em relação, encontrar outros mundos. Assim como a experiência de escrita deste texto foi para mim. Um texto do acaso, da vibração; voluntariamente improvisado. Talvez seja um texto precipitado. Talvez esta movimentação de um cinema de mulheres da beira do Rio Madeira que anuncio cesse por aqui. Pouco importa. Ao menos esse texto nos ajudará a lembrar que ela aconteceu. Digo isso porque já aprendemos, com a história do cinema brasileiro que foi escrita, a constante ameaça da gente, realizadoras mulheres, “sumir”.
E ao mesmo tempo em que escrevo essas linhas, eu me digo: “Esse cinema meio desajeitado, inventando seus modos de produção, tateando suas formas, ele é uma promessa. Sem pressa, fazendo pressão para que Editais de Fomento ao Audiovisual aconteçam e se perpetuem, esse cinema rondoniense se expandirá; e acontecerá, deixando muitos vestígios”.
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Veja também: Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais – UFMG
Referências
ARAÚJO, Juliano. “Documentário rondoniense: filmes, realizadores e contextos de produção (1997-2013)”, Revista C-Legenda, no 38/39, 2020, p.158-171.
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Bruce Albert e Davi Kopenawa, A queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
MAYA, Paulo. “’Como suas palavras são lindas!’ – dedicado à memória do rezador Valdomiro Flores, indígena Ava do Coração da Terra – Ava Yvi Pyte”. Belo Horizonte: Catálogo forum.doc, 2020.
MEZACASA, Roseline. Por histórias indígenas: o povo Makurap e o ocupar seringalista na Amazônia. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Santa Catarina, 2021.
MEZACASA, Roseline “As Mulheres Makurap e o saber-fazer do Marico”. Revista Brasileira de Lingústica Antropológica, Volume 10, Número 1, Julho de 2018, p. p.23-45.
NORBERTO, Simone. Mito e identidade em Nazaré (RO) – Uma leituras pós-colonial das manifestações culturais de uma comunidade ribeirinha. Porto Velho: Temática Editora, 2020.
Os Jovens Baumann é um filme de vestígios.
Se por um lado o filme nos faz adentrar nas férias de verão de herdeiros de um cafezal, a família Baumann, uma atmosfera que parece trazer um diálogo com a frivolidade presente em filmes como Bling Ring ou Maria Antonieta de Sofia Coppola, por outro, o suspense do found footage (vídeos caseiros encontrados) nos imerge na busca em desvendar o mistério do desaparecimento dos primos.
A estrutura narrativa também traz junto consigo a nostalgia da década de 90. Mas a força motriz, a principal chave de leitura me parece ser o contexto geográfico e social inscrito na certidão de nascimento de cada um dos desaparecidos da família Baumann. O suspense extrapola a simples questão pessoal do desaparecimento desses personagens e expõe junto também os vestígios de um passado colonizador tenebroso.
A questão da herança colonial nos implica perguntas que vão muito além da primeira máxima que surge: o que aconteceu com os Baumann?
O filme coloca em cheque toda uma estrutura de poder que nos faz refletir sobre as possíveis causas do desaparecimento dos primos e até imaginar o possível fim que os Baumann tiveram.
Mas a tensão aqui é histórica e as perguntas que vem à tona são atravessadas pela máxima da memória, da história e do esquecimento de um país.
Diante do contexto de escrita da história do Brasil, estruturada no apagamento das nações fundantes dessa terra Brasil: como negros e indígenas, é potente enxergar a fissura no tempo que se cria nos Jovens Baumann e a oportunidade de se colocar em perspectiva o próprio presente repleto de vestígios colonizantes ao olhar para o macabro passado escravocrata brasileiro.
Nos Baumann, o suspense aflinge a memória do colonizador. É ela que está em risco. Ela que é apagada. Ela que desaparece.
A partir da criação dessa fissura no tempo o filme faz parecer ser possível redesenhar a própria história do país a partir da lembrança das tensões escravocratas que permeiam nosso passado e insistem em ser sistematicamente esquecidas, ora por incêndios em museus ora pela negação da urgência de reparações históricas.
Nosso filme Teko Haxy – ser imperfeita é uma experiência do encontro. Diante da câmera, criamos personagens, mas também colocamos nossos assuntos mais íntimos. Assumimos uma estética íntima – nosso diário relacional – um experimento visual feito por nós, duas mulheres de diferentes mundos que criaram um mundo dentro dessas diferenças. Nossa auto-mise-en-scène. Um deslocamento. Em deslocamento, deslocamos a câmera e o celular de uma mão para outra, deslocamos ser mulher de uma racialidade cultural para a outra. Somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito e ao mesmo tempo, também somos diferentes. Tivemos que nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades para a realização de nosso filme – algo que se parece fluido em se fazer. Em nosso processo, nos compreendemos um pouco mais, respeitamos a outra nos pontos divergentes, criamos um novo estado dentro do humano. Assim, o que de mais verdadeiro podemos oferecer é a justeza das nossas imagens, o pessoal que é político. Nos filmamos marcando nosso espaço como mulheres, como um mergulho espiritual no ser mulher, ser imperfeita.
Filmamos por quase três anos, desde o nosso encontro em 2015 e tivemos que nos adequar à linguagem das vídeo-cartas. Um esforço mútuo pois de um lado era uma pessoa com pensamento juruá (branco) e do outro, uma pessoa com os pensamentos Mbyá e a visão diferente das coisas que tínhamos. Em suspensão, tudo era novo e não sabíamos o que poderia acontecer. Um cinema-processo, inacabado, imprevisível, com informes de “em construção” em frente à obra – assim, construído narrativamente pela montagem de Tatiana Soares de Almeida (Tita). A fissura se deu, apenas quando compreendemos a natureza dos nossos corpos – colocados em relação e como aliados. Postas em movimento, avançamos mais um degrau em nosso crescimento e fomos colocando nossa experiência pessoal nesse trabalho, compreendendo que possuímos dores distintas de um corpo mulher que “naturalmente” sangra e dores distintas por trajetórias completamente díspares no recorte de raça, cultura e espaço social.
É nesse lugar entre eu e a outra (e quem nessa relação é a outra?), entre observar o real e inventar o real, entre fazer e esperar acontecer e entre as incertezas, é aqui que nossa relação se estreita e gera – como duas mulheres que podem, se quiserem, gerar a vida – possibilidades estéticas e políticas por meio das conversas entre imagens. É nesse lugar que localizamos nosso filme, como uma dobra no tempo, de passado, presente e futuro. Um tempo que ambas aprendemos a ter:
Patrícia:
Sempre me pergunto quais são as ações e quais as partes da minha cultura: até que ponto termina minha cultura e começa a outra? Penso muito nisso quando faço um trabalho e fico conversando com alguém de outra cultura. O que mais me possibilitou a entender isso foram as práticas e ações diferentes que seguimos em determinado espaço, crenças, valores e modos de agir em determinado assunto ou momento. Ou seja, isso me deu um sentido das coisas. Eu compreendi que isso é a nossa identidade própria (de cada uma) e apesar de sermos tão iguais – no meu modo de pensar, somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito, dois seres imperfeitos – e ao mesmo tempo, também somos diferentes. Somos iguais e diferentes. Tivemos que nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades. Sophia veio para minha aldeia e isso foi fruto de um esforço coletivo, pelo aprimoramento de valores culturais e materiais. Digo isso porque minha família acolheu Sophia, sendo que ela era de fora e nós tivemos um esforço de tentar compreender Sophia e Sophia nos compreender. E isso foi fundamental para entender os nossos valores morais e éticos que guiaram nossos comportamentos, nossa relação e nossa obra. Entender como esses valores internalizaram em nós e em como isso conduziu nossa relação uma com a outra. Primeiramente, nós aceitamos o desafio de mudar, de nos compreender.
Então, acredito que sobre todas as coisas houve diferenças culturais. E acho que não poderia haver uma evolução espiritual para nós duas sem a nossa abertura de compreensão para nossos dois mundos. Dessa forma, foi possível alcançar nosso objetivo, pelo menos pra mim. Houve uma espécie de consciência de nós duas, como humanas. Foi muito rápida nossa elevação para ver o amor, para ver nosso interior e a realidade de cada uma. E acho que quando a gente percebeu essa verdade fomos acolhidas uma pela outra. Nosso amor começou a se manifestar em cada uma das coisas e no ambiente em si. E assim, todo o processo pra mim foi uma busca espiritual de vida – cada vez mais maravilhosa – que foi colocada em nós duas.
Sophia:
Combinávamos alguns vídeos, mas outros surgiam de maneira espontânea. Embora tivéssemos nossos temas guiando as filmagens, nossa experiência e a espontaneidade das coisas foram, na verdade, nosso roteiro. A cada início de filmagem, a performance diante da câmera era fabulada, como uma câmera diário em escrita compartilhada feita da nossa relação.
O extracampo (tudo que envolve a cosmologia Mbyá) está sempre presente nas ações de Patrícia como ser. Seu “modo de ser” (o nhadereko guarani) está presente cotidianamente em qualquer atividade que ela faça. Nas coisas simples como escolher qual parte da galinha cortar, quando vai tomar banho de rio, quando me ensina sobre os cuidados sexuais e a produção do corpo entre meninas e meninos… Aprendi de dentro pra fora (da casa para o mundo) a cultura Mbyá. E assim, o movimento de dentro pra fora e de fora pra dentro manteve-se constante entre mim e Patrícia. Deslocamento que ela faz constantemente entre sua etnia e os juruá kuery (brancos).
Trazemos à tona uma questão pouquíssimo discutida na antropologia, nas artes visuais e no audiovisual que são “as questões das mulheres”: a casa, a maternidade, a mulher e suas relações afetivas, a sexualidade, o corpo, as dores, as somatizações disso tudo. Principalmente, como todos esses temas comuns, do dia-a-dia , estão diretamente imbricados em nossa vida política, social e cultural. Confrontando assim, a desvalorização universal do domínio doméstico. O mais bonito disso tudo é como as camadas das nossas personalidades e nossas formas de ver o mundo a partir das nossas experiências cotidianas vão se tensionando e deixando nossas contradições expostas. Patrícia quando diz para os brancos: “acho que vocês queriam que a gente não existisse” no limite, ela também destina a mim. Mas, ainda sim, somos nós, Patrícia e Sophia, vulgo “mulher branca” e “mulher indígena” criando uma obra artística juntas e isso sim, pode ser uma arma pra rasgar o peito de todo olhar com viés etnocêntrico, etnocida, preconceituoso e machista. Nos filmamos marcando nosso tempo como mulheres. É como um laboratório do nosso feminino. Um mergulho em ser imperfeita.
Em nossos acordos de filmagens e em nosso calendário, tivemos algumas incompatibilidades, um movimento duplo de se adequar uma ao tempo da outra. Um jogo de espelhos complexo do reconhecimento da construção do sujeito em todo lugar, em que se aprende a ver o mundo através do que a autora Bahri (2013, p. 683) chama de “lógica da adjacência”: “leríamos, então, as mulheres no mundo não como iguais, mas como vizinhas, como ‘moradoras próximas’ cuja adjacência pode tornar-se mais significativa […] leríamos o mundo não como único (no sentido de já estar unido), mas como um conjunto”.
Por fim, através dos nossos conflitos subjetivos e coletivos e das nossas formas de ver o mundo, estávamos sob o risco, pois lançar-se na incerteza pode não dar certo, mas até o que “não dá certo” nos é importante e faz parte do nosso processo. Como salienta MacDougall (1975, p. 128, tradução nossa): “conjecturar que um filme não precisa ser uma performance estética ou científica: ele pode se tornar a arena de uma investigação”. Na presença desse “campo” investigativo, a abordagem das nossas imagens por meio do desenho e da câmera explora justamente a aproximação e a tensão desses métodos.
Referências:
BAHRI, Deepika. Feminismo e/no pós-colonialismo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 659-688, maio-ago. 2013.
OVERING, Joanna. Men Control Women?: The Catch-22 in Gender Analysis.
International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, issue 2, p. 135-56, 1986.
MacDOUGALL, David. Beyond observational cinema. In: HOCKINGS, Paul (Ed.).
Principles of visual anthropology. New York, NY: Mouton de Gruyter, 1975. p. 115-132.
TRINH, Minh-ha T. Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença. Tradução de Augusto de Castro. Forumdoc.BH 2012 [Catálogo], Belo Horizonte, 2012. p. 201-206.
TEKO HAXY – ser imperfeita (2018)
Documentário experimental, colorido, 39min
Sinopse: Um encontro íntimo entre duas mulheres que se filmam. O documentário experimental é a relação de duas artistas, uma cineasta indígena e uma artista visual e antropóloga não-indígena. Diante da consciência da imperfeição do ser, entram em conflitos e se criam material e espiritualmente. Nesse processo, se descobrem iguais e diferentes na justeza de suas imagens.
Exibições “TEKO HAXY – ser imperfeita”
2018
II FINCAR – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras (BR)
Môtif Film Festival (EUA)
6º Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (Cocaal) e do Colóquio de Cinema de Autoria Feminina (cocaf) (BR)
IV Pirenópolis Doc – Festival de Documentário Brasileiro (BR)
51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (BR)
2019
Programação Abril Indígena – Sesc SP (BR)
14ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto (BR)
MINIBIOGRAFIA PATRÍCIA FERREIRA PARÁ YXAPY:
Patrícia Ferreira (Pará Yxapy) é realizadora audiovisual indígena da etnia Mbyá-Guarani. Mora na Aldeia Ko’enju, em São Miguel das Missões/RS, onde é professora desde 2006. Em 2007, co-fundou o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema e hoje é a cineasta mulher mais atuante do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). Atualmente está finalizando seu primeiro longa autoral e circula com o filme TEKO HAXY – ser imperfeita, codirigido com Sophia Pinheiro. Dentre as premiações de seus trabalhos destacam-se os prêmios: Menção Honrosa – XIV FICA (2012) pelo filme Desterro Guarani, o Prêmio Cora Coralina de melhor longa no XIII FICA (2011), o Prêmio Melhor longa/média do III CachoeiraDoc e Menção Honrosa mostra Competitiva Nacional do forumdoc.bh.2011 pelo filme As Bicicletas de Nhanderu; Em 2015 o Prêmio Melhor curta Júri Oficial e menção honrosa Júri Jovem do VI CachoeiraDoc pelo filme No caminho com Mário. Em 2014 e 2015, participou de residências artísticas com os cineastas indígenas Inuit, no Canadá. Já realizou os filmes: As Bicicletas de Nhanderu, 2011/45min; Desterro Guarani, 2011/38min; TAVA, a casa de pedra, 2012/78min e No caminho com Mario, 2014/20min.
MINIBIOGRAFIA SOPHIA PINHEIRO:
É pensadora visual, interessada nas poéticas e políticas visuais, etnografia das ideias, do corpo e marcadores da diferença, principalmente em contextos étnicos, de gênero e sexualidade. Atua principalmente nas seguintes áreas: processos de criação, antropologia, artes visuais, intervenções artísticas urbanas, arte & tecnologia, fotografia, videoarte e cinema. Doutoranda em Cinema e Audiovisual do PPGCine-UFF, mestre em Antropologia Social pela UFG (2017) e graduada em Artes Visuais pela mesma universidade (2013). Participa do grupo de pesquisa Documentário e Fronteiras. Ganhou dois prêmios como artista visual e cinematográfica no Fundo de Arte e Cultura de Goiás (2015), participou do VIII Prêmio Pierre Verger de Ensaio Fotográfico (2016) e ganhou o 23º Prêmio Sesi Arte e Criatividade em 2º lugar na sessão Obras Sobre Papel (2017). Seus trabalhos artísticos já foram expostos no nordeste, sudeste e centro-oeste brasileiros além de países como Argentina, Paraguai, Espanha e Alemanha. Recentemente realizou sua primeira exposição individual “MÁTRIA” em Barcelona (ES). Atualmente circula com seu primeiro média-metragem “TEKO HAXY – ser imperfeita” codirigido com a cineasta Patrícia Ferreira Pará Yxapy, é professora da Academia Internacional de Cinema (RJ) e artista bolsista do programa Formação e Deformação – Emergência e Resistência 2019 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ).
Dirigido por Brunna Laboissière, Fabiana (2018) é um filme com uma trajetória surpreendente e merecida. A obra nasceu viajando e não por acaso esse é o seu destino final. Destaca-se o esmero paciente na captura das imagens e sons, assistimos a paisagens que não são formadas apenas por características geográficas particulares, mas também por características sociais únicas, ao mesmo tempo que híbridas e transversais, um paradoxo bem brasileiro.
A escolha estética opta por lugares e corpos possuírem a mesma importância narrativa, um afeta e modifica o outro, portanto muito da identidade de Fabiana é formada por sua vivência na estrada, ao passo que muito do que a estrada é hoje se dá pela ocupação dela sendo caminhoneira mulher transexual e lésbica. Toda essa curiosidade pela vida do outro é desenvolvida sob o tempo e ambiência da viagem, em uma poética existencialista, da observação da janela que coloca a personagem para pensar e os espectadores também, enquanto o destino final vai tendo sua importância reduzida.
Foi através do grupo “Mulheres do Audiovisual – Brasil” no Facebook, que soube do filme, na época, Brunna, a diretora, fez um post anunciando sua estréia no Olhar de Cinema e divulgando o cartaz de Fabiana. Ela era de Goiânia e eu de Brasília, isso me trouxe empatia na hora, fiquei muito ansiosa para assistir esse raro road movie protagonizado e dirigido por mulheres. É animador saber que um filme de direção e personagem principal goiano estreou em um dos maiores festivais brasileiros e está percorrendo outros diversos festivais internacionais, além, é óbvio, do feito heróico da Brunna rodar sozinha seu primeiro longa-metragem operando a câmera (uma Cânon C300), o som, fazendo a direção e a produção em um mês de carona vivendo e gravando dentro um caminhão.
Apenas quando chegou o Festival de Brasília de 2018 que consegui assistir ao filme, na mostra paralela Festival dos Festivais, foi exibido à tarde seguido de um debate com a diretora, Brunna Laboissière, e a montadora, Bruna Carvalho. Nesse momento refleti o quanto são maiores as chances de conseguirmos filmar com respeito e espontaneidade as pessoas que não conhecemos, se utilizarmos o Cinema de Observação como base, ou seja, deixar a câmera ligada acompanhando a rotina das pessoas sem uma interferência maior que isso, desviando da entrevista formal.
O debate também ressaltou o papel da montagem nesse tipo de filme e da obrigatória afinidade com a montadora, pois são milhares de horas de material bruto para serem vistos e discutidos. Diretora e montadora contaram da dificuldade que foi juntar todas as cenas e criar uma linha narrativa que fizesse sentido e as ferramentas que utilizaram para isso, desde a degravação de todas as falas até a organização da ordem das cenas através de fotografias impressas e a criação de locuções em voice off, como por exemplo, a cena um pouco desconexa do aeroporto em que Fabiana admira os aviões decolando e um funcionário do aeroporto fala nas caixas de som do lugar.
É um filme de fluxo, às vezes lento, mas muito imersivo que conta uma história de vida dura com alegria e altivez. Os beats da narrativa são criados através dos detalhes, de assuntos profundos ditos em frases curtas, de comportamentos quase subentendidos, o rádio também é crucial e quando toca “Decide aí” de Matheus e Kuan a gente se sente apaixonada junto. Já o movimento e o ritmo vêm por meio dos travellings da janela contrapostos aos planos estáticos com diálogos externos ao mundo isolado do caminhão.
É fato que a sinopse incomum gera curiosidade dentro do nosso CIS-tema. Não estamos acostumadas com protagonistas trans, ainda mais Fabiana, uma caminhoneira dona de si, que viaja o Brasil todo e namora outra mulher trans, a Priscila, que aparece mais no meio da história e acrescenta outra camada ao filme.
As telas de cinema ainda priorizam narrativas patriarcais e heteronormativas, recheadas de uma ética e cultura visual eurocêntricas e coloniais, e o está fora disso é criticado e tido como uma ameaça a estrutura dominante. Há sempre uma estratégia de ‘’higienização” dos sujeitos políticos para que eles possam ser aceitos – lembrando que muitas vezes os personagens transgêneros do cinema são representados por atores cisgêneros – e quando essas pessoas estão na frente das câmeras, espera-se que elas se foquem em suas transidentidades e as expliquem detalhadamente. Porém, no filme, Fabiana está mais interessada em registrar e curtir sua última viagem antes da aposentadoria, se afirmando como mulher independente e trabalhadora que agora terá seu descanso merecido.
Nos momentos que ela se lembra da câmera e tira a atenção um pouco da estrada, Fabiana se mostra uma legítima contadora de causos lá do interior do Goiás, aquele riso frouxo desajeitado que conta histórias absurdas com falsa modéstia enquanto fuma cigarros. Ela conta histórias de romances quentes cheios de aventura e sedução, possui uma fama de conquistadora que inquieta seus colegas homens e a faz ter orgulho.
Seus gostos envolvem fascínio por máquinas grandes como caminhões e aviões, saudade do seu cachorrinho Billy e do seu filho, que não verá no natal por conta do trabalho. Mas Fabiana tem um lado durão e fechado, que inclusive me remete a Geração Beat – portanto, ela realiza meus sonhos de quando adolescente: ser uma beat mulher.
Aos 14 anos não percebia tanto a forma que a misoginia atuava, inclusive na falta de referências, mas já sabia muito bem que mulheres na estrada era quase uma proibição. Thelma e Louise (1991) já me ensinava isso quando eu era mais nova e meu pai fazia questão de relembrar os perigos do filme quando eu falava que queria sair por aí viajando.
Pouco antes de escrever este texto senti que estava velha demais para ainda não ter pego carona no dedão, precisava fazer isso logo, antes de passar dos vinte e poucos como mandam os filmes. Se eu enxergasse a paisagem da mesma altura que a câmera em Fabiana talvez pudesse fazer uma crítica melhor. Tudo de real que eu sabia desse universo eram apenas as histórias que o Fred, meu namorado, contava, tipo adotar uma cabra no interior de Ibimirim e levá-la de carona para João Pessoa.
Se a Flor (nome da cabra) conseguiu, eu também seria capaz e lá fomos nós para a BR 101 no sentido de Recife para chegar em Aracaju. Foi uma viagem relativamente tranquila, tirando as queimaduras de sol de ficar horas pedindo carona e o meu medo de não conseguir chegar no mesmo dia e ter que dormir no chão de algum posto de gasolina habitado predominantemente por homens ou então ficar presa em algum lugar deserto e escuro e homens aparecerem.
A ida e a volta da nossa viagem duraram cerca de doze horas, sendo que de carro seria somente umas quatro. Em compensação não gastamos quase nada, menos de 15 reais cada um e conhecemos vários lugares.
A solidão dos caminhoneiros é um fato e a hospitalidade deles também, se a gente acha a Internet revolucionária, imagina eles. Compreendi melhor o tempo da estrada que o filme mostra, percebi a vontade de conversar, contar histórias e também de fazer perguntas. Algumas delas nos deixavam até sem graça, tipo se nós íamos roubá-los ou se meu namorado ia me engravidar e sair por aí (perguntas feitas olhando para o Fred e não me incluindo muito na conversa).
Na volta, por coincidência, pegamos carona com um caminhoneiro de Goiânia e, bem efusiva, perguntei se ele conhecia alguma Fabiana, “uma caminhoneira que fez um filme” e ele disse que não, mas que era cheio de mulheres caminhoneiras e que ele acompanhava os vídeos que elas faziam para o YouTube. Ali tive mais certeza que a estrada também é nossa e lembrei da Brunna Laboissière com seu mochilão no meio das sessões do Festival de Brasília.
Nunca pensei em ser cineasta. Mesmo tendo crescido fascinada por imagens, sobretudo pela televisão, até eu entrar na faculdade nunca havia passado pela minha cabeça a possibilidade de trabalhar com cinema. Apesar de meus pais terem um amigo próximo cineasta, durante meus anos de formação escolar essa era a única referência de alguém de uma realidade parecida com a minha que fazia parte do “mundo mágico” do cinema. Nunca soube de nenhuma mulher, muito menos uma mulher negra, que tivesse alcançado esse status.
Não pretendo falar da minha trajetória dessa vez, gostaria de falar sobre possibilidades, sobretudo a possibilidade de transformar realidades através da invenção. Acredito que muito da crença na possibilidade de mudança vem daquela sensação de identificar em outras experiências caminhos que as tornem palpáveis, quase como: “hum… bom, se fulana conseguiu, eu também consigo”. E no caso de uma menina negra da zona leste de São Paulo conhecer a trajetória de outras mulheres negras pobres que ousaram fazer filmes é manter a fé de que pode ser possível transformar realidades, nem que seja inventando nas telas novas formas de viver. Não ignoro as dificuldades materiais, nem as urgências do cotidiano que nos impedem de nos dedicarmos ao cinema, mas acredito que alimentar nossos sonhos é uma forma de alimentar nossas existências.
E aí que eu escrevo esse texto para você, jovem negra com poucos recursos, mas cheia de sonhos. E parto da experiência de uma cineasta, mulher, negra, pobre e muito ousada, mas também invisibilizada pelo racismo e machismo da cinematografia brasileira: Adélia Sampaio. Nascida em Minas Gerais, filha de empregada doméstica, Adélia foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, mas seu filme Amor Maldito, lançado em 1984, ficou quase trinta anos num ostracismo revelador das estruturas que sustentam o mundo das artes brasileiras.
Amor Maldito foi o título de uma reportagem do jornal carioca O Fluminense publicado no início dos anos 1980. A crônica jornalística trazia um caso que aconteceu no bairro de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, e narrava a história de duas mulheres lésbicas que haviam tido um relacionamento, e após seu fim, uma delas havia se suicidado. Entretanto, a ex-companheira da falecida foi acusada de assassinato e o caso levado a tribunal. O longa-metragem de Adélia, inspirado nesse acontecimento, narra a partir do julgamento de Fernanda (Monique Lafond), sua relação com a ex-companheira Suely (Wilma Dias) e traça um retrato da justiça e da sociedade brasileira a partir de figuras caricatas, como a família evangélica de Suely e o advogado sensacionalista da acusação.
Estamos falando de um filme produzido nos anos 1980 e pensar a trajetória de Amor Maldito nos convida a refletir sobre sexualidade, gênero e raça no contexto do cinema brasileiro e seus diálogos. Amor Maldito pode ser visto como uma obra à frente do seu tempo, mas tanto a escolha certeira em sua abordagem temática quanto as questões ligadas a sua produção e distribuição marcam o retrato social de uma época: anos de ditadura militar, conservadorismo político e moral, e estruturas que mantém as desigualdades de gênero e raça. O filme teve de ser “fantasiado” de pornô para conseguir alguma visibilidade, e ganhou mais destaque pela atmosfera sexual que o rodeava, do que pelo debate que propunha, tendo seu conteúdo praticamente ignorado tanto pelo público, quanto pela crítica.
Numa breve historiografia do cinema nacional, podemos reparar nas dinâmicas, muitas vezes homofóbicas, que marcaram as construções narrativas em torno das vivências das pessoas LGBTs. Na época das chanchadas, populares nos anos 1940 e 1950, personagens homossexuais homens foram majoritariamente representados como estereótipos de gays afeminados, servindo à narrativa como alívio cômico ou travestidos de forma assexuada. Dessa forma ficava mais tragável para o público a aceitação desses personagens, pois suas subjetividades não eram postas na narrativa. A temática também foi deixada de lado pelo cinema novo, que preferia discussões sobre classes sociais, e encontrou um pouco mais de penetração no cinema marginal. Foi a partir dele que personagens homossexuais começaram a ocupar papéis centrais nas narrativas, ainda que ligando a homossexualidade à marginalidade.
A temática lésbica, entretanto, ganhou apelo nos filmes da pornochanchada, que valorizava o desejo e a curiosidade do homem heterossexual, trazendo personagens com pouca ou nenhuma afetividade e complexidade. O lesbianismo era apenas um estágio na história pela qual a mocinha passava para levá-la a ficar com um homem. Além da falta de sutileza com a qual era inserida, normalmente a “lésbica real” da história — a corruptora da mocinha — se torna uma assassina, serial killer, ou seja, o verdadeiro obstáculo a ser combatido. Um exemplo dessa representação pejorativa é encontrada em As Intimidades de Analu e Fernanda (1980), de José Mizziara, com atuação de Monique Lafond.
Monique Lafond foi atriz de diversos filmes pornôs e viveu a personagem Fernanda em Amor Maldito, a executiva acusada do assassinato de sua ex-companheira. Já Wilma Dias, que interpretou Suely, era a “garota da banana” que aparecia na abertura do programa Planeta dos Homens (1976), da TV Globo, cuja imagem tinha um forte apelo sexual. Na busca por reportagens, notícias e críticas sobre o longa de Adélia foram encontradas menções ao filme quando vinculados às suas atrizes. O que chamava atenção para Amor Maldito era a atmosfera sexual que o rodeava, mais do que a visão crítica que da sociedade brasileira e de como ela condenava as relações homossexuais na época.
Amor Maldito é um dos filmes que aborda o lesbianismo de forma mais positiva na produção nacional, sendo um retrato social da época. Inovou não na linguagem, mas na abordagem sensível e crítica de uma temática marginalizada, porém a dificuldade em sua distribuição – atrelada ao preconceito homofóbico e as barreiras impostas a uma mulher negra – não o tornou conhecido do grande público. À época de sua produção, a Embrafilme era a empresa responsável pela regulação das políticas públicas e incentivos financeiros para a produção e circulação de filmes nacionais. Dentro do contexto político e social da ditadura militar e do forte conservadorismo no que diz respeito às relações sexuais, a empresa chegou a reduzir o orçamento da produção até chegar a zero, afirmando que não compactuava com uma obra que perpetuasse e fosse vista como panfletagem de uma “doença”. Em busca de alternativas para produção, Adélia liderou um sistema de cooperativa, prática muito comum no teatro (onde ela trabalhou durante anos) para que o filme tomasse corpo.
No Brasil, quando da exibição de Amor Maldito em salas de cinema, o filme foi recusado por diversos exibidores que se negavam a dar espaço para esse tipo de debate. Até que o longa foi apresentado a um exibidor, conhecido como Magalhães, que se interessou pelo tema e viu nele a oportunidade de circulação desde que fosse vendido como filme pornô. E foi assim que Amor Maldito estreou na Galeria Olido, em São Paulo, em 13 de maio de 1984, em meio programações de filmes pornôs e cartazes sexualmente apelativos.
Mesmo que suas opções estéticas gerem controvérsias, principalmente devido às encenações exageradas e caricatas, o filme é bastante ousado e bem-intencionado, mas no meio da pornochanchada, não há espaço para boas intenções. Amor Maldito foi visto à época de seu lançamento como um intermediário entre uma obra-prima e as concessões aos apelos eróticos, o que o fez ficar sem público. O filme pouco tem desse apelo, na verdade: Adélia busca explicar a bestialidade que enreda a patética mitologia do sexo descartável, e oferece uma antologia de sexo com sentimentos de culpa.
“Só uma cineasta ousada é capaz de tornar reais coisas que a sociedade condena, como o casamento de Monique e Vilma”. Essa foi a descrição usada por Ailton Assis em sua crítica sobre Amor Maldito publicada na Tribuna da Imprensa de 1983. E Adélia é de fato uma vanguardista, uma cineasta sensível a temas marginalizados socialmente. Durante sua carreira esteve envolvida com outros temas das minorias representativas, e atrás das câmeras contava com presença massiva de mulheres em sua equipe. Antes de dirigir Amor Maldito, a cineasta já havia produzido dezenas de filmes do cinema novo e marginal, mas um episódio significativo de seu trabalho e que diz muito sobre as relações raciais no cinema brasileiro chama atenção: a presença do filme Parceiros da Aventura de José Medeiros no Festival de Gramado em 1980 que ficou conhecido como o “filme dos negrinhos”. Na ocasião, Adélia atuou como diretora de produção do filme, que apesar de ter chamado grande atenção do público, esbarrou na resistência racista dos jurados do festival, que não o premiaram por considerá-lo negro demais.
É essa resistência racista, em reconhecer o trabalho de artistas negros em prol da manutenção de uma estrutura que enaltece a produção de cineastas brancos, um dos fatores que influenciou o ostracismo no qual caíram Adélia e seu filme. O papel da Embrafilme, por exemplo, foi fundamental para os caminhos que levaram Adélia ao esquecimento. Enquanto seu filme não recebia apoio nenhum, filme dirigidos por homens brancos cujas temáticas favoreciam a manutenção do status quo recebiam financiamento e apoio para distribuição (cenário que não é completamente diferente de hoje, mas isso é assunto para um outro texto). Assim, eu questiono: Terá sido só a temática que fez de Amor Maldito um filme esquecido pelo público e crítica? Como esse mesmo público e crítica olharam para um filme dirigido por uma mulher negra nos anos 1980? E como esses olhares moldaram sua trajetória?
Talvez a trajetória de Amor Maldito tivesse terminado aí, se não fosse sua redescoberta no começo dos anos 2010, por outra mulher negra. Em 2013, Edileuza Penha de Souza realizou tese de doutorado pela Universidade de Brasília chamada Cinema na Panela de Barro: Mulheres Negras, Narrativas de Amor, Afeto e Intimidade. Ainda que esse não seja o foco da tese, a pesquisadora propõe uma discussão acerca do que é conceitualmente o Cinema Negro e faz um levantamento dos realizadores e realizadoras negras do cinema nacional, citando o pioneirismo de Adélia Sampaio.
A tese de Edileuza faz parte de um contexto maior de estudos e políticas afirmativas e identitárias que conquistaram espaço público no Brasil com mais força a partir dos anos 2000. Fruto das mobilizações sociais do movimento negro, organizado no Brasil desde os anos 1970, a implementação de uma política de cotas raciais nas universidades e órgãos públicos brasileiras tem mudado não só a composição racial dos cursos, mas tem transformado a produção de conhecimento com o surgimento de trabalhos nas mais diversas áreas, que tratam das relações raciais e de gênero a partir da perspectiva dos sujeitos negros. Este é um movimento que tem ganhado corpo no Brasil, em diálogo com outros países da diáspora africana, e encontrado reverberações na cultura digital, na política e também nas artes.
Desde que a figura de Adélia ressurgiu na pesquisa de Edileuza e foi difundida, sobretudo entre realizadores, curadores, militantes e pesquisadores negros, uma nova reescritura da história do cinema nacional tem sido proposta, sobretudo pelas mulheres negras. De 2015 para cá, Adélia Sampaio e Amor Maldito circularam pelo país num movimento de reconhecimento do trabalho de uma cineasta, mulher e negra, que foi propositalmente deixado de lado durante tantos anos. As reivindicações pelo reconhecimento do cinema feito por mulheres negras no Brasil tem pipocado, sobretudo desde 2016, e nos feito questionar, repensar e mover certas estruturas.
A redescoberta do filme acaba por escancarar a necessidade de reescrever a história desse cinema e está fortemente ligada aos movimentos organizados por pessoas negras. O reconhecimento do pioneirismo de Adélia traz à luz a discussão sobre os processos de invisibilidade das pessoas negras na sociedade brasileira, sobretudo em espaços tão elitizados quanto o cinema, e nos faz refletir sobre a influência dos debates públicos atuais na repercussão dos filmes. Mas, acima de tudo, destaca a necessidade de construção de um ambiente de possibilidades para que outras mulheres negras, como eu e você, enxerguemos no fazer cinema uma alternativa para inventar novas formas de viver e transformar as realidades que nos cercam.
Assistir aos filmes, desenvolver o olhar
Peguei-me refletindo no que mais pode ser dito sobre Café com Canela, longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa que estreou há pouco em algumas capitais brasileiras, depois do costumeiro percurso em festivais. Já li toda sorte de elogio, de enquadramento – a maioria merecidos –, debates despertados. Meu texto talvez se fragmente então entre a descrição da minha experiência como espectadora negra, alguns conceitos que me vêm quando penso nisso tudo, e algumas cutucadas atiradas livremente.
Assisti ao filme pela primeira vez no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado (2017) e me lembro dos suspiros finais, das risadas com Cidão, uma das personagens, senti no rosto algumas lágrimas, mas a impressão final foi de confusão. Não consegui montar com exatidão um mapa da minha apreciação.
“Gostei, mas…” e aí? Ver tantos filmes ao longo de vários dias e encontrar amigas e amigos logo após a sessão com inquisitivos “achou bom?” põe a mente numa disposição que nem sempre privilegia a fruição. E aliás, quem é que está no festival para fruir? Tanto quanto está estampado nos rostos presentes o amor pelo cinema, estão também as tensões todas, políticas, de representação, de espaço, as disputas. Pelo menos no Festival de Brasília, que acompanho há anos, tem sido assim, cada vez mais. De modo ambíguo e um tanto triste, quase sinto falta de quando ignorava todos os discursos que atravessavam as sessões, de quando era só uma estudante de ensino médio que ia ao festival para descobrir filmes que sabia que não seriam exibidos na televisão. Era uma chance e eu aproveitava ao máximo, muitas vezes sem saber se haveria ônibus para voltar para casa.
Mas eu disse quase. Porque se outros conflitos – ainda que até então apenas internos – não me atravessassem, talvez não estivesse aqui, escrevendo sobre cinema, tentando participar (com alguma discrição) dos debates atuais. Foram anos e anos desafiando os filmes com o olhar, tentando entender porque as ausências tornavam as presenças mais fracas e menos saborosas. Daí: universidade, faculdade de cinema, bell hooks, olhar para si, testar-se cineasta, fazer cinema, fazer cinema negro e feminista, perguntar-se que é afinal cinema negro. De lá pra cá a fruição muitas vezes ficou em segundo plano, em função do olhar oposicional e do cultivo crítico. Ainda amo cinema? É claro que sim, ou não despenderia tanto esforço.
Em 1992, bell hooks publicou Black Looks: Race and Representation e daí vem um de seus mais famosos ensaios, O Olhar Oposicional: Espectadoras Negras (1). Entre as tantas contribuições maravilhosas desse texto, bell hooks explica o olhar oposicional, o olhar crítico e aplicado das mulheres negras sobre o cinema, um olhar outro que não o da identificação, da objetificação, do voyerismo, ou tudo que a teoria feminista queria descortinar, mas que não nos abrangia por completo. Mais que um conceito a ser aplicado de maneira automatizada (como aliás vem sendo ultimamente na academia), é claro para mim como o olhar oposicional descreve o estado mental que muitas mulheres negras aprenderam a cultivar para simplesmente estar nas salas de cinema, ver e assistir tantos filmes em que nossa ausência declarada em imagem e discurso poderia ter sido, anos após anos, uma completa mensagem de desistência.
Que mulheres negras não tenhamos desistido do cinema – após décadas do mais absoluto desprezo por nós – é o atestado empírico do que dizia bell hooks. Há algum poder no olhar, por menor que seja, e nos apegamos a ele com muita força, sem nem saber bem para onde nos poderia levar. Aguardamos, eventualmente chegamos a pequenas ilhas, lugares maravilhosos, como Café com Canela. E treinada, habituada ao olhar oposicional, crítico, construtivo, na companhia de colegas que fazem o mesmo, como é num festival de cinema, nem sempre consigo habitar com plenitude a ilha de um cinema tão raro para mim.
Café com Canela, a travessia
Rara também é esta experiência dúbia, então. De um lado, o olhar oposicional, que me permitiu possuir o cinema sem ser por ele possuída, de maneira que pudesse me encantar com o que está na tela, mesmo com a plena consciência do quase institucionalizado desprezo por imagens negras, e imagens negras femininas ainda mais. Com esse olhar assisti Café com Canela no festival, deixei-me atravessar por algumas emoções de maneira organizada, quis pescar referências, analisar linguagem, chegar a um veredicto, acompanhar esse importante momento político, uau, um filme desses, co-dirigido por uma mulher negra, não só selecionado como vencedor do prêmio do júri popular. Mas não me deixei possuir e nem me dei conta que podia.
Do outro lado, o que experimentei ao rever o filme na sala de cinema, eu e a tela, sem a pressão do veredicto, sem precisar me opor. Nos primeiros minutos de exibição, ainda nas cenas em que Margarida assiste a vídeo de aniversário do filho morto, escutei as risadas, vi a bicicleta, era meu aniversário. O tio dorminhoco que sequer segura o copo, talvez bebum, talvez cansado depois do trabalho, era meu tio. Margarida não parece minha mãe, mas de alguma forma é minha parente. Talvez uma tia-avó risonha que tenho. Risonha mas sofrida. O bolo do flamengo, a cervejinha, meu pai. Coxinha, bombom, rosa, toda sorte de alimento também para a memória.
Fui entrando, me acomodando. Foi fácil. A tristeza não trouxe desconforto. O filho morto são as duas filhas da minha avó, que tão cedo também morreram. Cidão é uma tia-avó minha que é uma figura. Ivan não é meu parente, mas é uma mistura de vários amigos, inteligentes, doces, engraçados, gays. Margarida e Violeta são tantas, e ao mesmo tempo são linguagem. Violeta é o próprio espírito do filme, o corpo/imagem pelo qual passaram depressão, renascimento, fome, nutrição, o jogo de equilíbrio que se fez veículo para a travessia espiritual em vida de Margarida.
E que promoveu também a minha travessia por onde nem sei, ali no escuro do cinema, diante de tão pungente representação daquelas experiências. Morte, impermanência, busca por sentido que não se encerra enquanto há vida, estava tudo ali. Ao final do filme, estava em lágrimas, pensei em tantas coisas sem nem saber que estava em ebulição. Senti que passara por uma sessão de fruição, pura e simples, guardei a oposição no bolso, não precisei me opor.
Política, enfim
Café com Canela é um filme fácil, e isso não é pejorativo. É facilmente reconhecível no cinema que se propõe a fazer, algo pelo qual estamos sempre aguardando, havia lugar para aqueles sons & imagens no meu eu espectador, certamente no de muitas pessoas, negras ou não. Se para mim a maior facilidade/felicidade residiu na fruição, para outros infelizmente talvez possa residir no encaixotamento. “É um retrato negro” seguido de vários bonitos adjetivos soa como reconhecimento, mas há um burburinho que denuncia certa condescendência.
É triste, a condescendência. Muitas vezes denuncia que aquele espaço está sendo aberto à força, digamos, duma voluntária aceitação do material artístico por valores outros que não o da arte. Ainda que as discussões internas já tenham superado essa falsa dicotomia arte/política (superaram?) é fato que existe um público que quer se emocionar, fruir, e espera, até mesmo sem saber, poder guardar no bolso qualquer nível de olhar oposicional que possam ter cultivado para não precisar abrir mão de gostar de cinema.
Se Café com Canela é um “bonito retrato negro”, talvez seja porque negra também é a vida, negra também é a arte, negros são também os espectadores. Isso é apenas um lembrete. Vale se esforçar mais nas definições, na descoberta do próprio olhar resistente que a crítica branca muitas vezes não sabe que tem, mas tem. Nesse caso, o olhar que não procura as profundezas da condição humana em narrativas negras. É um olhar que se imagina num lugar em que pode ditar o coeficiente artístico de uma obra, porque entende a função da arte e olha (de cima) para os filmes de pessoas negras/sobre pessoas negras como ainda carente, ainda por ser.
É o olhar que foge à sensibilidade – sensibilidade, não certeza – de que “o objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar a alma”, como disse Tarkovsky (2), e que ao cinema feito por/com/sobre pessoas negras não falta nada além de espaço, respiro, tempo e alimento para se desenvolver sempre e mais como cultivo da alma que é, e será. Se resta dúvida, sugiro assistir Café com Canela de novo. E de novo.
***
Para pensar sobre os rumos e possibilidades do cinema negro no Brasil atual, sugiro dois textos que alimentaram minhas reflexões e que possuem a virtude de expandir questões em vez de encaixotá-las. São eles: O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro em 2018, de Heitor Augusto, e a resposta de Juliano Gomes, Carta ao Heitor (ou Desculpe a bagunça ou Ao mesmo tempo).
(1): Uso o termo olhar oposicional presente na tradução do texto de Raquel D’Euboux Couto Nunes para o livro Traduções da Cultura (org. Izabel Brandão). Na tradução de Maria Carolina Morais, disponível no blog Fora de Quadro (de Carol Almeida), o termo usado é olhar opositivo.
(2): reflexão presente em Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovsky, no capítulo “Arte: Anseio pelo ideal”.
(Re)ler A Câmara Sangrenta da escritora Angela Carter este ano me fez adentrar mais uma vez no mundo dos contos de fada pelos seus caminhos mais sombrios: a floresta que esconde o monstro, o sexo e a violência que habita em todos nós. Uma leve obsessão pelas histórias, os temas e símbolos explorados por Carter tem me acompanhado pelos últimos meses. Ao longo dos dez contos em A Câmera Sangrenta, Carter explora contos de fadas já conhecidos do imaginário popular evidenciando os temas latentes dessas histórias ao mesmo tempo que os subverte e se aprofunda neles através de uma sensibilidade contemporânea e feminista.
A recorrência de dois temas em particular tem me interessado: a câmara sangrenta, que dá título à coletânea e ao seu primeiro conto, e a experiência liminal, a existência em um lugar onde se é duas coisas ao mesmo tempo. Esse segundo tema é explorado ao longo de todo o livro, mas em especial nos contos sobre lobisomens, The Werewolf, Wolf-Alice e The Company of Wolves.
Por sua própria natureza, o lobisomem é duas coisas ao mesmo tempo, uma criatura entre a humanidade e a bestialidade que não pertence a nenhuma das duas. As dicotomias entre educação e instinto, civilização e natureza, bem e mal são questionadas por Carter utilizando-se desse não-lugar do homem-lobo. Esses questionamentos foram levados para a tela do cinema quando Neil Jordan, acompanhado de Carter como co-roteirista, dirigiu a versão cinematográfica de The Company of Wolves, traduzida como A Companhia dos Lobos (1984), mais uma das minhas obsessões nos últimos tempos.
Outra coisa que estava me tirando o sono este ano era a expectativa para a estreia comercial do longa-metragem As Boas Maneiras (2017) dos cineastas Juliana Rojas e Marco Dutra, dois dos diretores cujo trabalho eu acompanho com maior avidez. Qual a minha surpresa, então, ao descobrir que Dutra e Rojas haviam escolhido justamente o filme A Companhia dos Lobos para compor uma sessão com os dois longas dirigidos pela dupla, Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras, no Instituto Moreira Salles em São Paulo. Meu primeiro pensamento foi ‘Conexão mental-artística-espiritual!’, mas, é claro, é natural que artistas cujo trabalho nós admiramos tenham referências que dialogam com as nossas. Mas, além dessa explicação um tanto quanto óbvia, eu acredito que exista algo de fundamental e primitivo que faça humanos retornarem ao folclore e aos contos de fada.
Voltei a pensar sobre isso quando a cineasta Anna Biller – que ficou conhecida por dirigir o filme de horror camp-vintage-feminista The Love Witch (2016) – tuitou sobre seu próximo projeto, um filme baseado no conto de fadas O Barba Azul, a mesma história que dá nome à coletânea de Angela Carter, A Câmara Sangrenta, remetendo ao lugar onde a violência e a libertação ocorrem. Ao longo do livro, a câmara reaparece em todas as histórias, ele é o quarto da vovozinha que é devorada pelo lobo e onde Chapeuzinho e o lobo se confrontam, o quarto onde o mestre do Gato de Botas e a mulher que ele ama transam e matam o marido dela, é onde o Tigre e sua noiva se despem de suas roupas e pele humanas.
Em As Boas Maneiras também há uma câmara sangrenta. O quarto da violência e da transformação. Como A Câmara Sangrenta, The Love Witch e tantas outras obras que exploram o horror, a fantasia e os contos de fada, As Boas Maneiras retorna a esse lugar metafórica e literalmente. Não por acaso, a lenda do lobisomem existe em quase todas as culturas do mundo e continua a ser revisitada e recontada por novas perspectivas.
Antes de assistir a As Boas Maneiras, ouvi o filme ser descrito como um horror-musical-lésbico-com-lobisomens e meu primeiro pensamento foi que a personagem lésbica era o lobisomem – ou a lobiswoman, no caso. Associei o não-lugar da sexualidade rejeitada com o não-lugar do monstro automaticamente e cresceu minha vontade de ver o filme não porque eu acredito que lésbicas sejam monstruosas, mas porque eu acredito que é o momento de reclamar a monstruosidade como um direito de existir para além do não-pertencimento imposto a qualquer um que não se enquadra numa sociedade conservadora.
Em muitas das histórias com lobisomens e outros monstros, eles são colocados na posição de vilões. Como nos contos de fadas, no cinema e na literatura os monstros por muito tempo foram aquilo que dava forma aos medos e ansiedades da cultura dominante. Marcados pela suas diferenças, na grande maioria das histórias, os monstros deveriam morrer, como King Kong, ou se transformar para se integrar à sociedade e ser amados, como a Fera.
Mesmo representações mais complacentes para com monstros ainda terminavam com a sua transformação ou destruição, como a Criatura de Frankenstein. Mary Shelley, inspirada por pesadelos e os rápidos avanços científicos da revolução industrial, escreveu sobre um homem que descobre como criar a vida e dá origem a um monstro que ele abandona – assim como Deus teria abandonado Lúcifer e Adão depois de os criar. A Criatura de Mary Shelley não representava só uma ameaça aos humanos, mas era também uma vítima deles. O medo que ela inspira devido a sua aparência monstruosa é tão grande quanto o medo que ela sente após ter sido abandonada por um criador que a despreza. O monstro é, a princípio, ainda mais humano que o homem que o criou e a sociedade que o rejeita, mas a revolta contra sua exclusão faz com que ele se entregue à perversidade que todos dizem fazer parte de sua natureza. Para Shelley, a morte do criador e da criatura é o único desfecho possível.
Em Frankenstein, Shelley explorou a ideia de que a monstruosidade que existe dentro de nós é tão destrutiva quanto a do Outro. Sua inspiração não estava só nos medos e ansiedades causados pelas rápidas mudanças trazidas pela revolução industrial, mas em sua própria vida. Shelley foi filha de dois intelectuais que nunca casaram e seu nascimento causou a morte de sua mãe com poucos dias de vida. A própria Mary Shelley se envolveu com Percy Shelley quando ele ainda era casado com outra mulher e os dois tiveram uma filha prematura que morreu pouco tempo antes de ela começar a escrever Frankenstein, aos 19 anos. Partos monstruosos e a exclusão social eram duas coisas que ela conheceu na própria pele. Não é de se admirar que ela tivesse simpatia pela figura do monstro, ela mesma – bastarda, adúltera, mulher – vista também como O Outro.
Com o nascimento do cinema, muito da representação dos monstros nos filmes de horror e fantasia se voltou para fora. A monstruosidade estava novamente localizada no exterior, e não em nós mesmos. Muitos desses monstros carregavam códigos que remetiam a grupos marginalizados. Bela Lugosi, por exemplo, ficou célebre por encarnar o vampiro Drácula em diversos filmes com forte sotaque que evidenciava seu status de imigrante, filmes como King Kong (1933) e O Monstro da Lagoa Negra (1954) remetem à ideia de homens não-brancos obcecados por mulheres brancas, muitos vilões e monstros ao longo de toda a história do cinema foram e ainda são codificados como queer – não é preciso analisar muitos filmes da Disney para ver esse padrão se repetir, mas talvez o maior exemplo seja a bruxa do mar, Úrsula, de A Pequena Sereia (1989), inspirada pela drag queen Divine.
Não é de se admirar que, conforme o cinema se torna uma arte mais aberta à diversidade (mesmo que timidamente), pessoas que se identificam com os monstros – os seres que a sociedade em geral rejeita – comecem a fazer filmes em que os monstros não precisem mudar, não precisem se conformar a uma sociedade que os exclui, não precisem aprender boas maneiras. Nos últimos anos, temos visto uma leva de filmes que os colocam numa posição muito mais empática do que no passado, e sua jornada em direção à monstruosidade tem sido explorada, eles têm se tornado protagonistas, heróis e objetos de desejo.
Analisando por esse aspecto, fica ainda mais clara a escolha de Dutra e Rojas de exibir A Companhia dos Lobos junto aos seus dois filmes. O conto em que o filme se inspira apresenta um narrador que nos orienta a ficar longe da floresta e temer os lobos, ele é a voz do senso comum da vila. No filme, ao invés de um narrador, temos uma velhinha que conta histórias. É a avó de da Chapeuzinho Vermelho – chamada Rosaleen, no filme – tecendo narrativas a fim de desencorajar sua neta adolescente a se deixar seduzir pelo uivo melancólico das criaturas que não têm lugar entre os aldeões.
A menina ama a avó e se encanta pelas histórias, mas nem seu afeto nem encanto são suficientes para deter sua curiosidade e autonomia. Quando Rosaleen afinal se vê cara a cara com um lobisomem, ela não sente o medo nem o desprezo que sua avó tentou despertar. Pela primeira vez, Rosaleen toma as rédeas da história e ocupa o lugar de narradora, compartilhando com o lobisomem a história de uma mulher-lobo ferida pelos humanos, demonstrando não só compaixão por ele, mas também identificação. A menina ama o monstro, a menina é o monstro.
Além desses monstros-marginais chegarem ao centro das histórias no cinema, outros monstros têm se tornado mais presentes, monstros que podem ou não ter forma, mas que remetem a medos cada vez mais discutidos pela sociedade contemporânea, como a depressão, o capitalismo, a misoginia e a desigualdade social. Podemos ver isso com muita clareza no cinema de Rojas e Dutra e de outros diretoras brasileiras contemporâneas como Anita Rocha da Silveira e Gabriela Amaral Almeida.
Os monstros que eram O Outro agora estão dentro de nós, são nossas doenças mentais, a estrutura da sociedade de que fazemos parte e ajudamos a sustentar. Se antes nós tínhamos medo de ir para a floresta onde o desconhecido habitava, nosso medo agora está no isolamento que sentimos cercados de pessoas na cidade grande, no shopping que é exatamente igual a todos os outros shoppings no mundo inteiro, com sua frieza fabricada e replicada.
É interessante perceber esse movimento em As Boas Maneiras em especial porque as subversões e críticas sociais trazidas tornam a atmosfera de conto de fadas do filme algo quase difuso. Duas mulheres vivendo juntas isoladas do resto do mundo (no meio de uma metrópole) em uma cidade cortada por um rio (separando a parte rica da parte pobre) esperando um monstro (bebê) que quando cresce foge para o bosque (Bosque de Cristal, o shopping do outro lado do rio) onde coisas horríveis acontecem.
Os três protagonistas do filme rejeitam e são rejeitados pelas convenções sociais: Joel, o lobisomem que aos sete anos começa a tomar consciência de si como um indivíduo e do espaço que ocupa no mundo, Ana, a mulher abandonada pela família por recusar ter a autonomia de seu corpo violada por um aborto forçado e Clara, a mulher negra, lésbica e pobre que os ama a ponto de dar seu próprio sangue.
Em uma dinâmica estranha e delicada, as três personagens navegam esse espaço de exclusão, exclusão essa que, apesar de compartilhada, não é igual. As relações raciais e de classe pesam no romance construído por Ana e Clara, uma relação que começa como um vínculo empregatício desigual e que segue em desequilíbrio, mesmo quando o dever vira afeto. Clara se dedica a Ana e, depois, a Joel, com um amor que a torna feroz. Sua força se origina do afeto e também de sua própria exclusão, afinal, ela é, também, um monstro, os três são.
A câmara sangrenta de As Boas Maneiras é o quarto onde Joel fica preso nas noites em que se transforma. Acorrentado à parede para não ferir e não ser ferido, ele se revolta contra essa exclusão, seu desejo é participar, como todos as outras crianças, da festa junina da escola que acontece em noite de lua cheia. A consciência de sua diferença causa uma transformação ainda maior que aquela pela qual ele passa todos os meses, é algo que vem de dentro.
O não-lugar dos marginalizados o transforma em monstros, mas a monstruosidade já não é algo a se temer, é arma e armadura, é ponto de encontro. No final, encurralados na câmara sangrenta, Clara e Joel se veem igualmente ferozes, e rugem, preparados para atacar o mundo de volta.
Eu falei sobre a gravidez em As Boas Maneiras no meu podcast, o méxi-ap, você pode escutar o episódio aqui.
Falei também sobre filmes de horror brasileiros lá no Expresso Café, você pode escutar o episódio aqui.
Esse texto deveria ter sido escrito há muito tempo, quando o Muito Romântico não saía da minha cabeça, mas não estava interessada em investigar as fronteiras entre a ficção e o documentário tão presentes no filme. Também não queria tentar desvendar qual é a nova sacação do cinema contemporâneo, muito menos se tratando de filmes brasileiros, tão díspares e marcados por um cenário histórico cheio de curvas e buracos. Na época queria apenas suspirar por escrito e dizer que assistir Muito Romântico foi muito romântico, porém a ideia foi se tornando mais ambiciosa.
Já faz mais de um ano que o filme estreou nos cinemas brasileiros, assisti na última sessão antes dele sair de cartaz, lá no Cinema Itaú do Casapark. Passado o tempo, a empolgação não é mais a mesma, as coisas mudam, o viés desse texto já mudou, mas minha procrastinação ainda persiste em me atrapalhar a fazer coisas importantes. Sou medrosa e prefiro sonhos megalomaníacos à realidade dispendiosa. Mas escrever esse texto virou uma questão de honra e fechamento de um ciclo, tenho que aprender que somos formigas empilhando grãozinhos!
A partir dessa minha frase de autoajuda, lembro também de um ótimo conselho que o filme me deu: em uma das primeiras sequências, Gustavo, interpretando ele mesmo (Gustavo Jahn, o diretor e roteirista do filme), coloca um papel de parede no seu apartamento com a ajuda de um amigo, esse por sua vez diz a ele que precisam se concentrar mais no trabalho, que tem certeza que ambos ainda vão fazer coisas brilhantes. ‘‘Não dá mais pra desperdiçar tempo com festas, pessoas, drogas, bebida, você sabe. A gente precisa produzir”, afirma o amigo alemão.
Em seguida entra em cena Melissa (Melissa Dullius, a também diretora e roteirista do filme), a outra moradora do apartamento de um cômodo só, ela segura um espelho bem grande e pesado. Melissa e Gustavo são um casal de cineastas brasileiros arrumando a vida em um novo apartamento em Berlim, cidade em que moram faz alguns anos. Os dois penduram o espelho na parede, o amigo se observa nele e em seguida os dois também repetem a ação. Coloco aqui esse momento como um exemplo marcante de uma presença que acompanha todo o filme: a observação da vida, das coisas, pessoas, hábitos, memórias, sentimentos e até das mudanças estéticas de Berlim. Acho que o argumento do filme é uma revisitação à toda relação do casal que cresce para além deles e movimenta mais pessoas e situações, mesmo o carvão da narrativa sendo eles.
Muito Romântico é a junção de muitos grãozinhos empilhados pelos dois realizadores, nove anos de grãozinhos de haleto de prata que formam uma bela pirâmide faraônica. Apesar de ter estreado na Berlinale e ter conseguido distribuição no Brasil, sinto que o filme não foi totalmente descoberto ainda. Gostaria de poder conversar com mais amigos do cinema sobre esse filme, assim como fazemos com outros que seguem uma produção bem mais industrial e setorizada. Em uma entrevista para o canal no Youtube da Ccine10, Melissa revela que a forma como o filme foi feito é um reflexo da forma como eles sempre fizeram cinema, desde o começo, independente e colaborativo.
É um trabalho árduo e analógico, filmado em película. Começou com filmagens realizadas no navio cargueiro os levando à Europa, e nove anos depois se transformou nesse filme, que se inspira em histórias que aconteceram e cria outras, como diz Gustavo na entrevista para a 40ª Mostra Internacional de Cinema. Eles se expõem com ousadia, mostram seus próprios desafios e fraquezas, os sentimentos vividos em cada fase da vida, uma vida cinematográfica e corajosa. Acho necessário enfatizar esses adjetivos.
Falando em coragem, acho justo dizer que quando escavei esse filme não estava sozinha, estava com meu ex-namorado em nossa última (e única) comemoração de aniversário de namoro. Nosso relacionamento estava naquela crise que antecede o término. Por ideia minha fomos ao cinema para ver se as coisas melhoravam. Esse passeio prometia ser a solução para o meu coração angustiado, mas o silêncio entre eu e ele era brutal e irreversível, apesar do blazer e da camisa social que ele vestiu para fazer graça e me deixar constrangida naquele lugar chique.
Lembro bem desse dia e do filme, não consigo pensar neles separadamente. Foi uma experiência de catarse a longo prazo, um ano maturando pensamentos. Na época o filme me fez refletir a busca do casal por individualidade, a origem da inspiração artística e outras coisas mais sensoriais e emotivas que filmar em película cai muito bem, escolha deles que vai além do atual fetiche pela imagem com grãos, afirmo isso porque sei que, lá em 2011, eles já deram um oficina de revelação de película no Janela de Cinema em Recife.
Assisto ao filme de novo para escrever esse texto, e constato que algumas dessas inquietações já foram iluminadas, a partir de então nasce um olhar mais teórico e formal, que busca referenciais interpretativos e comparativos para compor esse texto.
De primeira, do que mais me lembrava era a voz calma de Gustavo, junto às imagens veranis azuis e vermelhas bem combinadas que relaxavam e acalentavam as minhas mãos geladas e meus olhos cabisbaixos que não viam nada bonito há tempos. Lembro que peguei na mão do meu ex, para aquecer a minha, era como se quisesse também que a voz do Gustavo fosse a dele, e que me deixasse calma, mas ele soltou a minha mão bem rápido sob o pretexto de comer pipoca.
O filme começa com imagens realizadas pelo casal em um navio cargueiro, um filma o outro em diferentes momentos da viagem. É interessante observar como um amante observa o outro. As imagens são da época em que eles partiram do Brasil em direção à Alemanha, isso é contextualizado através de uma carta a uma amiga que Gustavo lê em voice off contando o quanto eles estão otimistas com a nova empreitada. Começa aí o resgate da memória, relembrando uma época que já passou mas como se estivesse acontecendo naquele tempo cênico. Essa escolha será feita também em outros momentos como os da leitura de diários antigos. O próprio Gustavo diz em uma cena que são escritos para o futuro e não para o presente.
O processo estético do filme mescla o fazer experimental com o documental e o ficcional, mas defini-los cartesianamente não é relevante porque não é possível mapear perfeitamente as fronteiras de cada dentro do filme. Não saberemos o que aconteceu e o que não aconteceu, se o bilhete de amor que Gustavo encontra nas coisas de Melissa foi de fato real ou não. Foi real para os personagens, assim como todo o processo de Gustavo se tornar um Dom Casmurro de apartamento e de Melissa se sentir sufocada, como representado na cena em que ela emerge afoita de um mar de roupas.
A narrativa cresce em uma estrutura de ficção que possui um suave arco dramático com início, meio e fim culminando na abertura de um buraco negro que rompe o tempo e o espaço num cantinho da parede do apartamento. Há um uso do Deus Ex Machina sem receio, subversivo. No entanto, a estrutura narrativa é secundária, menos importante que as sensações que jorram de forma picotada, alternando o ritmo entre veloz e musical. O filme valoriza o que é feito a mão, o Do It Yourself punk que guia os Black Bananas sem medo do ridículo, e isso é tão sentido que o espectador relaxa na cadeira do cinema e ri.
Cinema é um fluxo de energia muito potente, e isso me lembra da parte do filme em que era exibida uma sequência de fotografias passadas rápidas, o movimento delas gerava um estrobo na tela do cinema e esse movimento das imagens aliado ao jeito barulhento como eu comia a pipoca e tomava o refrigerante no canudo deixou meu ex tão louco que ele apelou e começou a chacoalhar a pipoca e abrir e fechar a garrafa da Coca-Cola cheia de gás, criando um som de chaleira musical ou um beatbox desconsertado, rimos alto na sala quase vazia e o clima ficou mais leve, a energia da tela foi recebida e dispersada partir da recepção particular de cada um. Ressalto que a relação público e obra não é passiva.
O filme é uma colcha de retalhos feita de pedaços assimétricos costurada por mãos que não usam dedal, como vemos a metalinguagem, de forma literal – mesmo –, na cena em que os personagens ateiam fogo em uma colcha de retalhos, criando uma representação tangível do discurso do filme, de misturar tudo e ao mesmo tempo negar conceituações. É defendido que a sensação é mais importante que a narrativa, o sentir é diferente e mais importante do que o saber. Ativar sensações se torna mais importante que qualquer limite formal, que a união racional de acontecimentos e que apego à mise en scène, características do cinema clássico. Ideias que pertencem ao conceito de cinema de fluxo desenvolvido pelo pesquisador Luiz Carlos Oliveira Jr(1).
E quanto à mise en scène, há um processo intenso de autofabulação pelos personagens-roteiristas, e esse conceito é abordado pela pesquisadora Mariana Baltar. A partir desse estudo, fica a reflexão e a curiosidade de saber como foi a preparação para performar em frente às câmeras do Muito Romântico, pois há um confrontamento direto do eu e do facework, autoimagem que o indivíduo adota ao interagir com os outros em diferentes grupos, nesse caso com os amigos que participam da produção e com o público.
Não é possível constatar de forma clara os momentos em que essa gestão da autoimagem dos personagens é visível, ou que ela vem a falhar, ou até mesmo os momentos nos quais essa falha é criada intencionalmente no roteiro, comparando esse filme com ”Jogo de Cena” do Eduardo Coutinho, por exemplo. Falhar nessa gestão da autoimagem significa revelar alguma ação não prevista ou previamente refletida, como uma fala espontânea e talvez embaraçosa, o riso, o choro, a gaguez e etc.
Eles parecem muito à vontade dentro desse universo que criaram, não é possível perceber o desconcerto frente ao dispositivo cinematográfico, dialogam face a face sem timidez, enfrentam a câmera, outros personagens, equipe e o público. Houve algum momento de falha na gestão da autoimagem nesses momentos de interação intersubjetiva? O que no feitio do filme eles não conseguiram controlar? O que descobriram nesse processo? Fica a curiosidade do meu imaginário que talvez tenha assistido a filmes demais.
O termo sororidade tem sido muito utilizado nas discussões e rodas feministas dos últimos anos. Uso a palavra aqui no sentido de solidariedade entre mulheres em relação à opressão masculina e a experiência vivida em culturas patriarcais, sem cair, entretanto, na ideia de que existe um sentimento “natural” de amizade entre mulheres. Enquanto os papéis de gênero aproximam a noção de disputa amorosa a rivalidade feminina, a empatia entre mulheres pode ser um artificio para desconstrução do patriarcado. Estereótipos que reforçam os papéis de gênero ao invés de subvertê-los foram, por vezes, representados no cinema nacional e internacional. Trago aqui alguns exemplos da representação da complexa relação entre mulheres que oscilam entre a solidariedade e a rivalidade no cinema brasileiro contemporâneo.
O documentário A falta que me faz da diretora Marília Rocha apresenta a história de quatro jovens (Alessandra, Valdênia, Priscila e Shirlene) que habitam o município de Curralinho, Minas Gerais. É uma narrativa sobre afetos e sobre as marcas que eles deixam não só na alma, como também nos corpos, no ambiente, na vida que circunda os indivíduos afetados.
A narrativa se inicia com uma das meninas marcando em seu corpo o nome do namorado. A temática amorosa irá permanecer durante boa parte do filme e, principalmente, durante a cena emblemática de Priscila ao contar que Valdênia tinha lhe traído ao ficar com seu namorado.
Marília (diretora): Priscila, da outra vez que a gente veio aqui, a Valdênnia falou que você era a melhor amiga dela
Priscila: Agora acabou, ela traiu minha confiança.
Enquanto conta o acontecido, Priscila arremessa pedras no lago, no extracampo, não dá para saber até onde elas chegam, talvez uma metáfora para a relação da personagem com a amiga: não sabemos de fato como elas se relacionam. No começo do relato, Priscila fala em traição, mas depois diz que tudo acabou se resolvendo e as duas voltaram a se falar. O plano que antecede (caminhando) e o plano que sucede (água) o relato de Priscila destacam o ponto de reflexão de um conflito que depois de solucionado desagua na submersa complexidade dos afetos.
Quando Priscila finda o relato sobre as imbricações amorosas dela e de Valdênia (Priscila também ficou com o ex-namorado da amiga), ela inicia uma reflexão sobre o casamento e como são poucos os horizontes para as mulheres daquela realidade: casar e ter filhos. Priscila acredita que casamento não dá certo, muito menos casamento por amor, é mais interessante “casar por conveniência”.
Ao relatar a traição da amiga, Priscila logo faz o mea culpa e, ao invés de se colocar em um papel de vítima, ela complexifica a relação de amizade das duas. Ao falar do casamento, Priscila reflete sobre a realidade comum das mulheres daquele lugar.
No longa mais recente da mesma diretora Marília Rocha, A cidade onde envelheço, premiado no 49º Festival de Brasília, vemos também outra relação de amizade entre mulheres. Duas portuguesas imigrantes no Brasil. “A gente fazia muita merda”, diz Teresa. É toda a informação que temos sobre as memórias das duas amigas. É através do cotidiano que iremos entender qual é de fato a relação existente entre Chica e Teresa – mulheres tão diferentes: contrariando o estereótipo europeu, Teresa se mostra espontânea, um tanto entrona e palhaça; Chica parece ser uma mulher mais séria, reservada e responsável. No entanto, as duas compartilham uma identidade comum: ambas são portuguesas, ambas amam Lisboa. Nesta produção, não vemos intrigas amorosas entre as amigas, mas conflitos cotidianos pela diferença de personalidade das duas em contraposição a sua nacionalidade. São pedaços de vida retratados em um longa que preza pelo o retrato da intimidade e do cotidiano como construção das relações de amizade.
Em Amor, plástico e barulho as protagonistas também possuem algo em comum: o sonho de se tornar estrelas do brega no Brasil. Para contar esta história, Renata Pinheiro não só se apropria da estética do brega, repleta de cores, sons e dança, mas bem como das histórias “por trás da fama”.
Jaqueline (Maeve Jinkings) e Shelly (Nash Laila) são cantoras na cidade de Recife (PE), a primeira com mais experiência, já Shelly acaba de iniciar a carreira como dançarina na Banda Amor com Veneno. A relação das duas personagens transita entre a rivalidade e a admiração. Shelly enxerga em Jaqueline sua inspiração e por isso deve traçar o mesmo caminho que a musa, inclusive namorando com o ex de Jaque, o cantor famoso da banda Amor com Mel.
A produção reflete sobre a lógica da fama. Jaqueline compara o sucesso com um “copo de plástico”: descartável e efêmero. Neste meio, as mulheres “servem” para ser musas – motivo da música – ou dançarinas – corpos que rebolam, no mais, tornam-se descartáveis, como o próprio sucesso do qual Jaqueline fala.
Entre as intrigas e a admiração, tanto Jaqueline como Shelly reconhecem seus defeitos e suas agruras. Presas no campo da “afetividade feminina”, elas se consolam bebendo e dançando juntas.
No filme de André Novais, Ela volta na quinta há uma abordagem mais comum desta rivalidade. Maria José e Noberto passam por uma crise no casamento. O conflito, no entanto, não é exposto, ele é colocado sempre nas entrelinhas. A interpretação não é nenhum pouco melodramática, mas naturalista. Não à toa, Novais utiliza a própria família para encenar um drama ficcional. Noberto tem um relacionamento extraconjugal, Maria descobre, mas tão pouco se desespera – ao contrário de Amor, plástico e barulho, aqui a estética não é do excesso, mas do sutil. Maria resolve fazer uma viagem e só volta na quinta-feira, fato que dá título ao filme.
O sentimento de raiva de Maria se volta mais contra a outra companheira de Noberto do que contra ele próprio. É interessante observar uma senhora idosa como Maria chamar uma outra mulher de ‘vadia’, denotando o ciúme em relação ao marido que ela jamais demonstra, no entanto, sente.
Esta rivalidade entre as mulheres ocasionada pelo ciúme é menos problematizada no filme de Novais, que apesar de abordar os afetos em seu estado poético cotidiano, re-apresenta uma visão recorrente em relação a disputa feminina. Percebe-se que a personagem de Maria é sensível, forte e interessante, entretanto acaba por ser minada pelos conflitos de Noberto, que seriam “mais importantes” dentro da trama, reforçando uma perspectiva patriarcal dos relacionamentos.