Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras Diálogos de cinema & cultura audiovisual por mulheres realizadoras

Isabella Poppe

Colaboradora do Verberenas desde setembro de 2021.

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“APENAS UMA DONA DE CASA COM FILHO?” DILEMAS INTERIORES DE UMA CINEASTA CHILENA NO EXÍLIO

A aproximação subjetiva e íntima dos/as cineastas em documentários vem se consolidando como uma tendência produtiva no cinema, em que os/as realizadores/as são colocados/as no centro do relato e elaboram sobre questões evocadas a partir de sua própria experiência. Ao mesmo tempo em que esse cinema inclui o “eu”, também dialoga com fenômenos e eventos políticos mais amplos, trazendo à tona a maneira como os indivíduos são afetados pelos acontecimentos e processos históricos. No lugar de apenas informar e demonstrar respostas fechadas para as questões abordadas pelos filmes, a enunciação em primeira pessoa do/da diretor/a volta-se para a si próprio como o sujeito da experiência e expressa sentimentos, dúvidas e incertezas. Nesse sentido, os documentários relatam o ponto de vista do/a cineasta que reconhece prontamente a sua posição subjetiva.

O filme Diário Inacabado, realizado por Marilú Mallet em 1982, pode ser considerado um precursor do domínio da subjetividade no cinema latino-americano sobre as ditaduras militares que assolaram a região. Híbrido entre documentário e ficção, aborda a experiência de exílio da cineasta, que deixa o Chile após o golpe militar em 1973, passando a viver como exilada política no Canadá. Antes disso Mallet havia morado em Cuba, onde atuou como professora de História da Arquitetura na Universidade de Havana. De volta ao Chile, no final de 1971, trabalhou no Instituto de Cine Educativo. Contudo, pouco tempo depois, sua vida seria marcada pelo golpe de Estado, que derrubou o governo da Unidade Popular (1970-1973) no Chile e instaurou uma ditadura no país. Com a brutal perseguição que ocorre desde o início do regime militar, Mallet é obrigada a deixar o Chile junto com parte da família. Foi do exílio que Mallet produziu grande parte de sua filmografia. 

O ISOLAMENTO DO EXÍLIO

No início de Diário Inacabado, após uma projeção de paisagens exteriores cobertas pela neve, o espectador é levado para dentro da casa onde Mallet vive em Québec. A câmera subjetiva passeia pelo interior daquele espaço privado, acompanhada pela voz da diretora que diz estar impressionada com a calma e o silêncio das pessoas.  Na imagem, alguns de seus familiares dentro de casa realizam atividades artísticas: o irmão toca um violão, a mãe pinta um quadro e o filho pequeno lê um livro, enquanto os objetos de decoração nas paredes remetem ao seu país natal. “No começo, eu pensei que tudo era provisório, que não estava em meu país e que logo voltaria ao Chile”.   

Diante do espelho, Mallet tira a maquiagem e a voz do marido, Michael, ecoa em off: “Você sabe, quando eu te conheci, você era uma exilada chilena, na embaixada canadense, e havia gente atirando em você, e agora você é apenas uma dona de casa com filho”. Em outro momento cotidiano, Mallet está sentada em um balcão numa lanchonete acompanhada do filho Nicolás e uma vez mais a voz em off do marido a acompanha, dizendo que ela deveria sentir-se contente por viver no Canadá, longe de toda a situação de seu país natal. “[Aqui] Não tem todos esses problemas. Você não tem que se preocupar com gente atirando, golpe de Estado, governo caindo”. Essa voz que ecoa em seu pensamento revela parte de seu dilema interior: de um lado, uma vida mais tranquila, segura e materialmente estável, mas também solitária e egoísta; do outro, um mal-estar por não apenas estar distante fisicamente da situação de seu país de origem, mas por se dar conta que aquela realidade a afeta cada vez menos. 

Através da primeira pessoa no filme, a cineasta revela a transformação de sua própria experiência, em que a luta política vivenciada de forma coletiva torna-se memória, substituída por uma vida familiar em um país do norte global. “Quando alguém não tem país, ocupa-se de sua casa”, a voz de Mallet narra em seguida. Não ter um país significa, também, não ter um propósito pelo qual lutar neste país.  “Aqui, me tranco muitas vezes a cada ano, deixo passar as tempestades, a neve, e o pouco de sol. Habito o interior”. Há uma cena em que Michael veda as janelas para impedir o frio de entrar na casa. Ela o observa enquanto questiona que, caso ele faça isso em todas as janelas, eles não conseguirão mais ver o céu e ficarão completamente enclausurados. Durante a maior parte do tempo a vida de Mallet se resumiria ao seu interior, sem que lhe fosse possível avistar para além dos limites de sua casa. 

Ao longo do filme, portanto, a realizadora expõe seus dilemas interiores e coloca a si mesma no centro do relato, um gesto artístico raro nos países latino-americanos do período, quando se priorizavam questões referentes ao grupo e à ideologia. Enquanto o cinema em primeira pessoa surgia na Europa, os filmes documentais latino-americanos eram a expressão privilegiada de um cinema político e militante, cuja preocupação era de intervir sobre o real visando a transformação social. Neste sentido, a subjetividade da direção, a autobiografia, as fissuras discursivas e as incertezas quase não tinham lugar. O filme de Mallet rompe com este paradigma, abrindo caminho para essa linguagem futuramente se consolidar na produção documental da região.1

PAISAGEM E MELANCOLIA

É possível pensar que a utilização da primeira pessoa no documentário latino-americano das últimas décadas se apoia na impossibilidade de os documentários de anos anteriores – em que predominava o tom objetivo e de denúncia e a linguagem expositiva – dar conta dos fatos traumáticos produzidos durante as ditaduras. Assim, diferentemente dos documentários políticos dos anos 1960-1970, as narrativas fílmicas em primeira pessoa transitam de um espaço íntimo para o coletivo, em que a câmera deixa de ser uma arma para se tornar um instrumento da memória e da história (CUEVAS, 2005). 


Após os sucessivos golpes militares nos países do Cone Sul, que interromperam o sonho da construção do socialismo democrático (como no caso do Chile), os movimentos revolucionários orientados à transformação social sofrem um baque que coloca em xeque a crença de que as utopias poderiam ser transformadas em projetos realizáveis a longo prazo. 

“Para quem não escolheu o desencantamento resignado ou a reconciliação com a ordem dominante, o mal-estar é inevitável (…). A utopia deixa então de aparecer como um “ainda não” para ser encaixada em um lugar não existente, uma utopia destruída que torna-se objeto de uma arte da melancolia”

– Enzo Traverso.

Ao longo do filme Diário Inacabado, Mallet expressa sua experiência profunda de isolamento no exílio após o golpe no Chile, quando foi obrigada a viver num país ao qual ela sentia não pertencer completamente. A sequência inicial do documentário projeta na tela algumas fotografias de diferentes espaços vazios em Quebec cobertos pela neve, um elemento que se torna paisagem dominante no filme e que expressa, não um significado idílico, mas a ausência de um calor humano sentido na luta política do Chile do passado. “Eu teria gostado de um pouco de calor, do movimento, até mesmo da poeira”, a cineasta narra. A paisagem, portanto, funciona como a expressão de uma melancolia, derivada do fracasso de uma experiência política que ficou no passado e não mais será. A neve, que a empurra para o interior da casa, se torna o símbolo do exílio marcado pela ausência pelo que lutar, onde o pessoal, o íntimo e o privado se sobrepõem ao calor humano da luta política na esfera pública.

A sequência posterior talvez expresse ainda mais nitidamente esse estado de ânimo em que, logo após a imagem de uma estrada canadense vazia coberta pela neve nas laterais, o insert da imagem de arquivo de um ônibus pegando fogo numa via remetem ao clima político agitado das manifestações e confrontos nas ruas de seu país natal. 

Esse estado de ânimo também se expressa através de uma confissão íntima de Mallet na cama com o marido que é compartilhada com um público mais amplo através do filme.

“Eu me dou conta que a cada dia me torno mais indiferente. Não sei… acho que mudei, que me tornei mais egoísta, que penso somente em mim, que me despolitizo. (…) Eu sinto que eu não participo dessa sociedade (…). Lá [no Chile] havia uma vida coletiva”.

Em Diário Inacabado as questões sobre exílio, imigração, gênero e a própria linguagem cinematográfica vão sendo perpassadas pelo sentimento principal que emerge do filme: o fato de a vida privada no Canadá, no presente, cada vez mais sobressair à vida coletiva no Chile do passado. A neve funciona como a expressão melancólica de um branco vazio, que faz Mallet questionar o rumo de sua vida no exílio.


Referências

CUEVAS, Efrén, “Diálogo entre el documental y la vanguardia en clave autobiográfica” in Josetxo Cerdán, Casimiro Torreiro (orgs.), Documental y vanguardia, Madri: 2005.

LEBOW, Alisa (2012). “Introduction” em Alisa Lebow (editora), The Cinema of Me: The Self and Subjectivity in First Person Documentary. New York/Chichester: Columbia University Press.

MALLET, Marilú. Entrevista acessada em: https://lafuga.cl/marilu-mallet/619

PIEDRAS, Pablo (2014). El cine documental en primera persona. Buenos Aires: Paidós.

TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.


Diário Inacabado está disponível aqui.

Notas de rodapé

  1. TEDESCO, Marina (2021). “Valendo-nos da literatura que analisa a cinematografia de Argentina e Chile, países de nosso subcontinente que têm uma produção expressiva de obras não ficcionais autobiográficas, encontramos as películas pioneiras que apresentaremos a seguir. No exílio chileno, Marilú Mallet realizou Journal Inachevé (1982), ‘uma das peças cinematográficas pioneiras no exercício de tensionar a violência política (encarnada no exílio) e a experiência cotidiana (encarnada na pequena história doméstica e emocional da diretora e sua família)’ (Pinto e Ríos, 2016: 218).

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