“Por que eu escrevo?
Porque tenho que
Porque minha voz
em todas as suas dialéticas
foi silenciada por muito tempo”
Jacob Sam-La Rose
Emerson, que viveu e cresceu em Ilha Grande, decide fazer um filme. Para isso, sequestra um cineasta, Henrique, para dirigir a história de sua vida. Somos desafiados a entender, junto a Henrique, não só como (e se) é possível filmar a história de uma vida, mas como contar/mostrar aquela vida, em específico, daquele homem preto, pobre, confinado. Assim começa Ilha, segundo longa-metragem de Ary Rosa e Glenda Nicácio, que estreou no 51 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e levou o (merecido) prêmio de melhor roteiro.
Henrique, o sequestrado, quer saber porque deveria se engajar naquela história, se submeter à agressividade, à ironia de Emerson. O desconforto e a claustrofobia de Henrique são os mesmos a que somos expostos ao acompanhar o início da história, e ele é benéfico: cumpre a função de nos fazer, como espectadores, ajustar o olhar, ajustar o foco, minuto a minuto. Em Ilha, a linguagem é rápida, quase estressora, em muitos momentos como se avisasse que algo está prestes a estourar. Tal tensão é o sentimento que Emerson impõe ao filme, por sua indefinição, por sua dilacerante tentativa de recriar cinematograficamente a própria vida, por sua recusa em deixar Henrique escapar ao envolvimento com aquela história, com aquelas imagens/cenas da vida do homem que nunca deixou a ilha.
À medida que Emerson se revela em meio à escolha do elenco de seu filme, entre ensaios e filmagens de momentos chave de sua vida, aquele personagem, homem preto, pobre, confinado àquele lugar, vai se complexificando, torna-se difícil confina-lo ao histórico papel do Outro reservado às pessoas negras, racializadas, marcadas. Somos obrigados, se quisermos tentar compreender (verdadeiramente) Emerson, a abrir mão de inúmeras imagens, discursos, histórias preconcebidas sobre quem ele é, o que quer, o que pode fazer, que sonhos pode ter, se tem direito à sobrevivência. “Quem é o homem preto?”, ecoava na minha cabeça ao sair da sala de cinema. Pode esse homem preto falar?
“Eu não posso ir ao cinema. Eu espero por mim. Ele [o branco] espera pelo(a) Negro(a) selvagem, pelo(a) Negro(a) bárbaro(a), pelos(as) serviçais Negros(as), pelas Negras prostitutas, putas e cortesãs, pelos Negros(as) criminosos(as), assassinos(as) e traficantes. Ele espera por aquilo que ele não é.”
Franz Fanon
Emerson fala, e fala muito, é verborrágico, sua verborragia é a trilha do filme, dita o ritmo. Tem na garganta entalada uma história própria para contar e ela não é fácil de colocar em uma caixa. Para nós, pretos, é um encontro de imagens que exprimem afetos não permitidos, pouco vislumbrados imageticamente, apagados pela subalternidade que o cinema, historicamente, reproduz muito bem. Ary Rosa e Glenda Nicácio constroem em Ilha esse retrato desconcertante, cru, da urgência voraz de um homem que não pede licença, é agressivo, mas também amoroso, pesaroso. Se revela traficante, envolve-se sexualmente com Henrique, confessa que fora violentado. Mas antes que se possa pensar “então esse é Emerson” ele se revela sempre mais. Perfeccionista, angustiado, carinhoso, genial.
Ilha, ao recusar-se a definir, acaba por denunciar a precariedade das imagens que aceitamos, ou que nos são introjetadas continuamente. Tem imagens e discurso que desafiam o imaginário branco, ou as fantasias brancas do que deveria ser a negritude, a sexualidade e afetividade do homem negro diante de outro homem negro. Sobretudo nesse aspecto, seria ambicioso da minha parte tentar delinear todos os signos ali presentes dessa masculinidade, para isso é bem melhor confrontar-se com o filme, e mais ainda com o filme dentro do filme, realizado por Emerson. Ali está uma tentativa dilacerante em entender a si mesmo, diante das imagens da mãe, do pai violento e abusador, do cão assassinado. Que menino preto foi aquele, preso na Ilha, que queria fazer cinema, atado à morte? Sobreviver era uma escolha?
Emerson, ao tentar apropriar-se de si, das próprias imagens, da própria vida, por fim revira Henrique por dentro até que cineasta reencontra propósito no fazer cinematográfico. O que se constrói entre os dois homens, a mistura e o desnudamento – literal e metafórico – a que se entregam no processo de feitura do filme, é também a própria representação do exercício de humanização profunda que os diretores realizam em Ilha. Através de Emerson e Henrique, um silêncio é quebrado, e torna-se evidente: confinar o homem preto é um enorme desperdício de possibilidades, de potência, de vida. Como humanidade, perdemos todos.
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